01 junho 2024

Quatro graus de paternalismo


Quatro graus de paternalismo na comunicação médico-doente e as suas implicações éticas
Anniken Fleisje
Centro de Estudos das Profissões, Universidade Metropolitana de Oslo, Noruega

Tradução espontânea de partes do artigo publicado em 21.05.2024 na revista Bioethics

Four shades of paternalism in doctor–patient communication and their ethical implications

Resumo

O presente estudo visa explorar as formas que a comunicação paternalista pode assumir nas interações médico-doente e como devem ser consideradas numa perspetiva normativa. No debate filosófico contemporâneo, o problema do paternalismo é muitas vezes entendido como sendo o de prejudicar a autonomia (o problema da autonomia) ou o de o paternalista considerar o seu julgamento como superior (o problema da superioridade). Em ambos os casos, o paternalismo é problematizado principalmente num sentido geral e teórico. Em contrapartida, este trabalho investiga encontros específicos entre médicos e doentes, revelando tipos distintos de comunicação paternalista. Para este estudo, analisei encontros gravados em vídeo num hospital norueguês para detetar o paternalismo  especificamente, médicos que se sobrepõem às preferências expressas pelos doentes, presumivelmente para beneficiar ou proteger os doentes. Identifiquei variações nos estilos de comunicação paternalista – denominados modos paternalistas – que categorizei em quatro tipos: o lutador, o defensor, o simpatizante e o pescador. Com base nestes resultados, pretendo introduzir diferenças no debate sobre o paternalismo. Especificamente, defendo que cada modo de paternalismo tem as suas próprias implicações normativas e que os problemas da autonomia e da superioridade se manifestam de forma diferente consoante os modos. Além disso, ao ilustrar o paternalismo na comunicação através de casos da vida real, pretendo alcançar uma compreensão mais abrangente do que entendemos por médicos paternalistas.

(…)

3. Resultados

3.1. Os paternalistas

No presente estudo, identificámos quatro modos paternalistas distintos. Estes quatro modos não constituem necessariamente uma lista exaustiva de todos os estilos de comunicação paternalista. Foram categorizados com base num conjunto limitado de encontros hospitalares, e é possível que a análise de conjuntos de dados diferentes ou mais extensos possa hipoteticamente revelar outros estilos de comunicação ou estilos adicionais.

A seguir, analisarei cada modo paternalista, exemplificando.

3.1.1. O lutador

O lutador insiste e confronta-se com o que pensa que os doentes devem escolher. Em vez de recorrer calmamente aos argumentos a favor de um determinado tratamento, um médico em modo lutador está em desacordo aberto e potencialmente acalorado com o seu doente e “luta” pelo caminho que acredita ser o melhor.

Caso A: Uma mulher de 48 anos pretende remover o útero (histerectomia) devido a distúrbios menstruais pesados e muito incómodos. O médico explica que, na maioria dos casos, a remoção do útero provoca aderências e, frequentemente, dores crónicas, e sugere que tente primeiro outros métodos.

“Se estes não ajudarem”, diz assertivamente, “então pode dizer, ok, então a única saída é remover o útero. [...] Não passe diretamente para a remoção do útero de uma vez”.

“Mas, bem, já falei com várias mulheres que o fizeram e que ganharam uma vida completamente nova.” [...] Então penso, agora também mereço ter uma vida nova.”

“[...] Mas [...] tento transmitir-lhe que, primeiro, tente outras coisas que possam ajudar.” O médico sugere, em vez disso, uma histeroscopia, que é um procedimento mais pequeno, combinado com um implante hormonal.

“Isso é doloroso! [...] Já me disseram que é muito doloroso!”, desabafa a doente.

“Mas é com anestesia”, contrapõe o médico. “Estou apenas a informá-la, não posso obrigá-la a fazer nenhum tratamento, é a si que cabe decidir”, diz antes de acrescentar com insistência: [...] “Faça-a [uma histerectomia] em último recurso. Confie em mim”.

“Estou MUITO decidida”, diz a doente, cruzando os braços e levantando o peito, como se estivesse a tomar uma posição em relação ao médico. “Não aguento mais!”

Depois de examinar fisicamente a doente, o médico conclui que a vai encaminhar para uma histeroscopia. Pergunta-lhe então, talvez meio a brincar: “Ainda somos amigos?”

No Caso A, a conversa vai e vem entre a doente a expressar a sua preferência e o médico a dizer o que acha melhor. As partes discordam abertamente uma da outra, e o médico insiste continuamente na sua sugestão de tratamento. A pergunta no final mostra uma consciência por parte do médico de que não se tratou apenas de uma troca calma de opiniões, mas, talvez, de uma interação que se assemelha a uma luta ou que está a ser vivida como tal.

3.1.2. O defensor

O defensor argumenta a favor da sua recomendação de ação de uma forma calma, equilibrada e sóbria, sem a intensidade acalorada que está associada ao modo de lutador. Especificamente, o defensor enfatiza os argumentos racionais a favor do rumo sugerido.

Caso B: Uma mulher (51 anos) que recuperou de um cancro do pulmão grave vem fazer um check-up. Depois de verificar que todos os resultados dos testes são normais, o médico pergunta-lhe se a doente fuma, e ela confirma.

“Gosta de o fazer [fumar]?

“Gosto, mas o meu corpo não gosta.”

“Não, não gosta, sabe”, diz o médico sem rodeios, virado para o computador. [...] “Já foi operada uma vez a um cancro do pulmão [...] e, infelizmente, não pode pensar que 'agora que tive um cancro do pulmão, já não é perigoso, posso fumar'“.

Calmamente e de forma informativa, continua a explicar – quase sempre ainda de costas para a doente: “Se já teve cancro do pulmão uma vez, o risco de ele [o cancro] voltar é maior do que antes”. E acrescenta: “Portanto, isso é algo em que tem de [...] trabalhar. [...] Isso é extremamente importante [...] para o seu futuro.”

Mais tarde no encontro, o médico volta ao tema do tabagismo:

“É a sua saúde, e é você que a está a administrar. [...] Mas eu vejo-me como, tipo, um seu defensor.”

No Caso B, a tentativa do médico de fazer com que a doente mude os seus hábitos baseia-se num argumento racional contra o tabagismo: Os fumadores com cancro do pulmão no passado correm um risco acrescido; por conseguinte, os doentes devem deixar de fumar se quiserem evitar o cancro no futuro. Assim, apela às capacidades racionais da doente e a sua abordagem é calma e sem emoção, não mostrando sinais de aborrecimento nem de empatia. Neste caso específico, a atitude contínua do médico de se afastar da doente deixa que as suas palavras falem por si.

3.1.3. O simpatizante

O simpatizante concentra-se no estado emocional do doente e expressa empatia, cuidado e conforto pelo que pode ser psicologicamente desafiador para o doente. Enquanto o defensor apela às capacidades racionais, o simpatizante também apela às emoções do doente ao tentar que este consinta nas sugestões.

Caso C: Um doente foi submetido a um tratamento para o cancro colorretal.

“Já passou por muita coisa [desde a última vez]”, começa a médica. Tem um tom suave e está de frente para o doente. Falam sobre o estado do doente e o tempo de espera para obter os resultados, que “[deve] ser um terror psicológico”, como diz a médica. De seguida, apresenta duas opções de tratamento: os medicamentos Fliri e Flox – igualmente eficazes, mas com efeitos secundários diferentes. Enquanto o Flox pode causar dormência nos braços e nas pernas, o Fliri pode causar diarreia e o perfil médico da doente torna-a especialmente vulnerável a esta situação. A doente prefere o Fliri, mas a médica – apesar de dizer que a decisão cabe à doente – repete com firmeza que acha que o Flox é preferível no seu caso.

“Já vi alguns casos de diarreia grave com [...] Fliri”, diz a médica lentamente, como se estivesse a pensar em como enquadrar o que diz da forma mais sensível possível. “Posso assustá-la [...] ao dizer isto, não era essa a minha intenção, mas [...] sentir-me-ia mais confortável se começássemos com Flox.” Depois acrescenta: “Eu tenho três ‘órgãos’ que [...] utilizo: a competência, [...] o instinto [...] e o coração”.

A médica do Caso C refere-se repetidamente, de forma implícita, à natureza emocionalmente desafiante do diagnóstico e do curso de tratamento do doente. Num tom suave e sensível, reconhece que o doente passou por algo que pode ter sido desagradável a vários níveis (i.e., “passou por muito”); que a espera por informações sobre a evolução da doença é extremamente difícil do ponto de vista emocional (i.e., “terror psicológico”); e que falar sobre efeitos secundários potencialmente graves pode ser assustador (i.e., “Agora posso assustá-lo”). De notar que, no Caso C, a médica não apela apenas às emoções do doente, mas também às suas próprias emoções – nomeadamente, o seu “instinto” e o seu “coração”. Assim, os estados emocionais de ambas as partes desempenham um papel na tentativa de fazer com que o doente obedeça.

3.1.4. O pescador

O pescador caracteriza-se por sugerir forte e repetidamente a opção que pensa ser a melhor – ele “pesca” o consentimento dos doentes. Este estilo de comunicação equivale a uma forma de incitamento. O tratamento preferido é levantado subtilmente, em vez de ser discutido completa e abertamente. Assim, o pescador não é confrontacional como o lutador, não enfatiza explicitamente os argumentos racionais como o defensor e não destaca necessariamente as emoções como o simpatizante.

Caso D: Uma mulher de 75 anos usa um anel pessário contra o prolapso uterino. A alternativa é a cirurgia.

“Mas será que uma mulher jovem e saudável como a Senhora deve andar com um pessário [...]?”, pergunta o médico.

“Não sei?”, responde-lhe a doente.

[...]

“Mas o que é que acha da cirurgia, então?”.

A doente diz que o uso do anel pessário não a incomoda. O médico responde-lhe:

“Não... [...] Então, para já, prefere usar o anel a expor-se a uma cirurgia [...]?”

“Sim, não sei.”

“Não... Mas não é que seja completamente negativa à cirurgia...?”

Antes de terminar a consulta, o médico acrescenta que não precisa de operar se os doentes não quiserem.

O médico do Caso D está sempre a voltar ao assunto da cirurgia, mas não o discute abertamente nem explica os riscos e benefícios de forma exaustiva. Embora não seja visível no pequeno extrato acima, o médico mencionou “cirurgia”/“operar” 18 vezes no total durante a consulta. No entanto, poucas destas menções se aproximaram de uma pergunta explícita sobre se a doente quer ou não ser operada. A sua referência a uma doente de 75 anos como “uma jovem [...] mulher” também pode ser vista como um incitamento manipulador, uma vez que está a usar uma caraterização que pode não ser adequada para levar a doente no sentido da cirurgia.

(…)

Para esclarecer melhor o que torna estes médicos paternalistas, os quatro casos acima descritos podem ser comparados com dois exemplos de abordagens não paternalistas: um exemplo de tomada de decisão partilhada e outro daquilo a que chamo evitar o paternalismo, exemplificados a seguir.

4.1.1. A decisão partilhada

Caso E: Uma mulher está grávida pela terceira vez. Tem uma lesão de parto da sua segunda gravidez que tem um grande impacto na sua vida quotidiana. Inicialmente, a doente queria dar à luz por via vaginal, mas agora preocupa-se com o facto de isso poder piorar a sua condição. O médico e a doente falam sobre as opções e chegam a acordo sobre uma cesariana. “Penso que [a cesariana] é a melhor solução”, conclui o médico, com base nas perspetivas que foram levantadas. A doente responde: “Eu também acho”.

4.1.2. Evitar o paternalismo

Caso F: Uma mulher idosa sente-se arrasada depois de lhe ter sido amputada uma perna. O médico pergunta-lhe se gostaria de falar com alguém, como um padre ou um psicólogo.

“Não, não”, responde-lhe a doente.

“Não. Não o vou obrigar”, diz o médico.

“Mais vale morrer.”

“Está bem... não o vou obrigar a fazer nada”, repete o médico e depois termina a conversa.

O decisor partilhado do Caso E não se sobrepõe às preferências da doente, nem deixa simplesmente que esta tome uma decisão por si própria. Em vez disso, o decisor partilhado explora as preferências da doente no contexto das alternativas disponíveis juntamente com a doente e colabora com ela para chegar a uma decisão. Em contrapartida, a pessoa que evita o paternalismo não colabora com os doentes para chegar a uma decisão conjunta. Embora o médico no Caso F faça uma sugestão – à qual a doente se opõe – acaba por deixar a doente decidir por si própria. Assim, o que partilha a decisão e o que evita o paternalismo abordam as preferências dos doentes de formas diferentes. No entanto, nenhum deles empurra os doentes para opções diferentes das que eles expressam preferir, ao contrário dos paternalistas.

Como os casos A a F envolvem questões e situações médicas bastante diferentes, a comparação direta é reconhecidamente difícil. (…)

(…)

5. Conclusão

O paternalismo é desde há muito um tema de debate tanto no contexto filosófico como no contexto médico. No entanto, a conceção de paternalismo – e os argumentos normativos que o rodeiam – nem sempre são claros no contexto prático das interações médico-doente. Este artigo, ao incorporar casos da vida real com análises estabelecidas do paternalismo, teve como objetivo lançar luz sobre as várias matizes do paternalismo não coercivo – e as implicações normativas de cada uma delas – em encontros médicos. Embora os casos reais, nas suas complexidades, possam ser imperfeitos como base para uma categorização nítida e uma teorização rigorosa, ajudam a trazer as discussões para a terra e a clarificar a forma como a teoria normativa pode ser aplicada à realidade das interações médico-doente. Esperamos que as discussões neste documento contribuam assim para realçar os benefícios de integrar análises empíricas nas análises filosóficas e normativas. <

 

Vale a pena ler o artigo original completo AQUI


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