20 junho 2024

Quando os internos invocam "falsa doença"


Quando os internos invocam “falsa doença”
Vinay Prasad

Tradução espontânea do texto
When residents call out “fake sick”
publicado em 09.06.2024 na página Sensible Medicine

Afinal de contas, “é apenas um emprego”

Recentemente, ouvi falar de um programa de internato onde há o hábito de invocar “falsas doenças”. Por outras palavras, se um interno tiver um dia particularmente longo ou difícil, se sentir que precisa de descansar – mesmo na ausência de febre, arrepios, suores noturnos ou vómitos – diz que está “doente”. É interessante constatar que os falsos dias de baixa são geralmente ao fim de semana ou em dias adjacentes (segundas e sextas-feiras), e que este facto é muito mais frequente do que em anos anteriores.

É incrível como os tempos mudaram. Fiz a minha formação em medicina interna no Northwestern Medical Center, em Chicago, entre 2009 e 2012. Se alguma vez invocasse “falsa” doença, o meu diretor dava-me uma “valente sova”.

A doença “falsa” é algo sobre que, reconhecidamente, não temos dados públicos, mas é do conhecimento geral. Seria fácil deduzir os falsos dias de baixa analisando as taxas de doença por dia de calendário – como sugerido. A doença real não discrimina entre quarta-feira e sábado, mas a doença falsa sim. Os diretores de programas – especialmente de grandes programas – deveriam fazer esta análise nas suas equipas. Suspeito que muitos já o fizeram. Aposto que os programas onde este é problema cultural têm diretores que estão menos dispostos a estudá-lo.

Outros programas não têm uma cultura de doença “falsa”, mas têm dias de “saúde mental”. Um dia de saúde mental pode ser gozado por qualquer motivo e em qualquer altura e, como tal, é semelhante a um dia de doença “falsa” – uma diferença sem distinção.

No Reddit, há muitos postais interessantes em que os internos debatem esta prática.

Sou um interno de pediatria num programa de média a longa dimensão. Desde meados de dezembro, estive 12 semanas seguidas de serviço no internamento dos pisos gerais, no que é, obviamente, a época alta das doenças respiratórias. Os nossos horários tendem a ser uma mistura de 12 horas com 2 folgas e 6 horas com 1 folga. Alguns dos meus superiores encorajam a prática de tirar um dia de saúde mental. No entanto, o nosso sistema de apoio já está extremamente sobrecarregado, ao ponto de se estar a falar em dar a cada interno uma ou duas semanas extras de descanso. E, infelizmente, os casos de covid começaram a disparar na minha zona, por isso imagino que as coisas só vão piorar.
Qual é o sentimento geral em relação a tirar um “dia pessoal” ou de “saúde mental”? Qual é a melhor forma de o fazer? Ou não deve ser feito de todo?

Entre as respostas que me chamaram a atenção:

Vou contrariar a tendência óbvia – se precisas de um dia de folga, tira um dia de folga.
isto.é.apenas.um.emprego. Talvez o meu velho e cansado coiro já não se importe, mas, por amor de Deus, parem de se martirizar porque “o trabalho tem de ser feito” ou porque “alguém tem de fazer o que é preciso”
bem-vindo à vida real!
Se os vossos superiores estão a tentar fazer-vos isso, então é óbvio que já é uma coisa estabelecida.
O vosso bem-estar não é menos do que quaisquer deveres para com os doentes. Que se dane essa infeliz mentalidade.

Teria curiosidade em ler a candidatura dessa pessoa à faculdade de medicina. Esses textos contêm normalmente frases como “a medicina é uma vocação”, “uma profissão”, “as pessoas põem as suas vidas nas nossas mãos”, “é uma arte antiga e de confiança”. Pergunto-me como é que esse sentimento se transforma em “isto é apenas um emprego”.

Outra resposta chamou-me a atenção:

Dia de saúde mental? Basta dizeres que precisas de ir ao dentista como fazem todos…

Nos últimos 5 anos da minha carreira, nunca vi tantos estagiários a terem de ir ao dentista – uma epidemia de cáries que têm de ser resolvidas durante as visitas à enfermaria ou as consultas. Não é uma piada, é uma verdade: fui ao dentista antes de começar a faculdade de medicina e quando me tornei professor.

Um dos desafios da minha área de trabalho (oncologia) é o facto de experimentarmos toda a gama de emoções humanas numa única manhã. O primeiro doente é alguém com mieloma múltiplo, cujo cancro cresceu apesar de todas as terapias e agora vai certamente morrer. Temos de aconselhar essa mulher e a sua filha sobre esta notícia e sobre o que esperar. Depois, entramos numa sala e, 30 segundos mais tarde, temos de entrar no quarto de alguém com linfoma de Burkitt no abdómen, que jurávamos que ia morrer, mas que atingiu uma remissão completa e pode até estar curado.

Da agonia ao êxtase em menos de um minuto, e ambos os doentes precisam que eu esteja lá para eles – totalmente presente – emocionalmente disponível. Não há nenhum dia de saúde mental no meio, nem depois. Porque amanhã está agendado outro doente com leucemia recidivante, cuja doença está a explodir e não tem mais terapias disponíveis, e que quer falar comigo, e não com qualquer médico.

Tenho pena do estagiário que acaba o internato médico a pensar “isto é apenas um emprego” – algures pelo caminho não lhe mostrámos porque é que não é.

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