Alex John London, PhD e Christopher W. Seymour, MD, MSc
Tradução espontânea do artigo
The Ethics of Clinical Research / Managing Persistent Uncertainty,
publicado em 20.03.2023
Face aos novos agentes patogénicos, ao conhecimento
incompleto e ao desacordo sobre os méritos dos tratamentos médicos, a conversão
do dever de cuidar em benefícios concretos para os doentes depende da nossa
capacidade de agir rapidamente em função do dever de aprender.1
A aprendizagem é um processo dinâmico cujo objetivo, na investigação médica, é
gerar as provas necessárias para reduzir a incerteza e levar os cuidados para
uma prática mais segura, eficaz e eficiente. É também um processo social que
requer a cooperação de múltiplos intervenientes, incluindo financiadores,
investigadores, profissionais de saúde, sistemas de saúde, organismos
reguladores e doentes. Os interesses destes intervenientes podem entrar em
conflito e a exigência de equipolência (*) clínica é vista como uma forma de assegurar que a
investigação promove o progresso médico sem comprometer os interesses dos
participantes no estudo. O requisito de equipolência faz com que (i) as
investigações dirigidas à incerteza ou às opiniões médicas divergentes de
especialistas conscientes e informados são suscetíveis de ter valor social e (ii)
a submissão de indivíduos a intervenções com tais conflitos ou incertezas é
consistente com o respeito pelos seus direitos ou bem-estar.2
Mas quando é que a equipolência clínica deixa de ser válida?
A
importância desta questão é ilustrada pelo relatório de Naggie et al.
publicado no JAMA.3 Os autores referem os resultados
da plataforma Accelerating Covid-19 Therapeutic Interventions and Vaccines 6
(ACTIV-6), em que 1206 participantes com COVID-19 leve a moderada foram
aleatorizados para receberem uma dose máxima de 600 μg/kg de ivermectina
diariamente durante 6 dias em comparação com placebo. Este ensaio investigou
uma dose mais elevada e uma duração mais longa de ivermectina do que estudos
anteriores. A maioria dos participantes (84%) recebeu pelo menos 2 doses de
vacina COVID-19 e 60% receberam o medicamento em estudo no prazo de 5 dias após
o início dos sintomas. O tempo médio para a recuperação foi de 11 dias no grupo
da ivermectina em comparação com 11 dias no grupo do placebo, não havendo
benefício significativo da ivermectina para quaisquer resultados secundários ou
em análises de subgrupos.
Estes
resultados são consistentes com investigações anteriores, incluindo três outros
ensaios aleatórios de diferentes doses e duração da ivermectina. Apesar disso,
existem presentemente mais de dez ensaios com ivermectina a recrutar participantes
no portal ClinicalTrials.gov. Depois de analisarmos os fatores que podem
influenciar a persistência de equipolência clínica, defendemos que as decisões
sobre as investigações a empreender devem corresponder ao relativo valor social
de continuar a reduzir a incerteza de uma intervenção e, também, que os
intervenientes devem ponderar se o tempo, os recursos e o esforço dos
participantes, sendo escassos, poderiam ser melhor utilizados analisando outras
questões.
O que é Equipolência Clínica?
A equipolência clínica defende que é eticamente
admissível aleatorizar participantes num estudo para receberem uma intervenção alternativa
para uma dada indicação se houver incerteza ou conflito em relação aos méritos
terapêuticos, profiláticos ou de diagnóstico das intervenções e não houver
consenso de que os interesses dos participantes estariam mais protegidos se
recebessem a intervenção alternativa. Explícita neste requisito está a ideia de
que é inadmissível aleatorizar participantes para receberem formas de
tratamento médico que se sabe serem piores do que uma alternativa disponível. A
exigência de pareceres médicos divergentes ou de incertezas sobre os méritos
relativos das intervenções promove o respeito pelo bem-estar dos participantes.
Na prática
médica e em investigação, há frequentemente mais incertezas ou desacordos
profissionais do que possibilidades de realizar ensaios clínicos. A incerteza
por si só não é suficiente para assegurar que os estudos colmatam uma lacuna de
conhecimentos crítica para o avanço da capacidade de os clínicos e sistemas de
saúde servirem os interesses dos doentes de forma eficaz e equitativa. Isto
exige esforços para assegurar que as provas que um ensaio pretende atingir estejam
relacionadas com uma necessidade prioritária dos doentes ou dos sistemas de
saúde a eles destinados. Compreender quando a equipolência já não existe é difícil
por muitos fatores, incluindo a aquisição de novos conhecimentos, a
complexidade dos tratamentos médicos e as mudanças no contexto em que as
intervenções são avaliadas.
Exemplos de fatores que afetam a equipolência durante a
COVID-19
A pandemia revelou numerosos fracassos na produção
e síntese de provas em medicina e saúde pública e vimos muitos exemplos de
fatores que influenciam a existência de equipolência clínica.4
No início
da pandemia, estudos pequenos e de baixa qualidade promoveram o interesse por
um punhado de tratamentos propostos para finalidades diferentes das
inicialmente previstas.5 A maioria destes tratamentos
mostrar-se-ia subsequentemente desprovida de valor clínico em estudos maiores e
mais rigorosos. À medida que os peritos plenamente informados e conscienciosos
atualizavam as suas opiniões, perante novas provas, as suas recomendações por
vezes diferiam da prática comum ou das preferências dos doentes. Este tipo de
incerteza ou desacordo, que reflete a aceitação incompleta de toda uma gama de comprovativos
médicos disponíveis, não constitui uma equipolência clínica.
Noutros
casos, mesmo os peritos informados e conscienciosos continuaram entusiasmados
com intervenções cujos méritos não foram justificados em ensaios bem
concebidos. Os ensaios não testam todas as utilizações de um medicamento,
apenas um específico “conjunto do tratamento” (ou seja, uma dose específica, uma
duração, uma população, uma finalidade).6 Quando um tal
conjunto falha, alguns proponentes podem concluir que estudar uma dose, duração
ou população diferente produzirá os resultados desejados para o mesmo cenário
de utilização. Por exemplo, o estudo de Naggie et al. 3
aumentou a dose e duração da ivermectina enquanto avaliava doentes e objetivos finais
semelhantes a ensaios anteriores. Noutros casos, o interesse pode passar para
um cenário de utilização diferente, por exemplo, do tratamento de doentes
graves para a redução do curso da doença ou para a sua prevenção.
Talvez
contraintuitivamente, as mudanças no contexto clínico podem também alterar a
relevância de intervenções anteriormente descartadas. Por exemplo, uma
intervenção pode não demonstrar um grande efeito terapêutico no início de uma
pandemia, mas após mudanças na imunidade da população e o desenvolvimento bem
sucedido de tratamentos alternativos, os especialistas podem considerar se a
intervenção tem um efeito terapêutico menor em doentes que recebam um melhor tipo
de cuidados.
Estes e
outros fatores podem levar à persistência de incertezas ou discordâncias informadas
sobre se um fármaco é suscetível de fazer parte de um tratamento eficaz. Mas, o
valor social relativo da realização de investigação para resolver estas
incertezas pode não persistir nestes cenários.
Gerir a incerteza persistente
Os estudos que satisfazem os requisitos de
equipolência clínica para os participantes podem carecer de valor social se as
lacunas de conhecimento que investigam forem de valor marginal em comparação
com questões alternativas. Embora as comissões de revisão institucionais sejam
incumbidas de assegurar que os protocolos não prejudicam conscientemente os
participantes no estudo e não violam o dever de cuidar, o sistema que visa
alinhar o dever de aprender com as lacunas de conhecimento prioritárias precisa
de ser reforçado.
Para
assegurar que a incerteza ou conflito refletem um compromisso imparcial com
todas as provas relevantes, as partes interessadas devem promover a produção de
uma síntese abrangente através de revisões reais e sistemáticas. Apesar dos
repetidos apelos a tais reformas, uma amostra aleatória de protocolos de
investigação de 2022 concluiu que “nenhum continha afirmações que indiciassem
uma busca sistemática de evidência clínica relevante”.7 As
agências de financiamento e os conselhos de revisão institucionais deveriam
exigir que as alegações relacionadas com a equipolência clínica e a importância
das lacunas de conhecimento investigadas se justificam frente ao pano de fundo
de tais revisões, especialmente para os casos em que o mesmo fármaco é o alvo
de investigação clínica repetida para indicações semelhantes.
(*)
NT: «Equipolência é a tradução para o português da palavra inglesa Equipoise.
[...] A sua utilização na Ética da Pesquisa foi proposta pelo filósofo Benjamin
Freedman em 1987 (Equipoise and the ethics of clinical research. N Engl
J Med 1987 Jul 16;317(3):141-5) para explicar o estado no qual especialistas em
uma determinada área ficam indecisos entre diversos tratamentos possíveis.
[...] A Equipolência não implica uma equivalência entre os métodos ou
procedimentos, mas sim um estado de incerteza, de falta de convicção para
estabelecer uma escolha.» José Roberto Goldim