17 janeiro 2022

O Impacto da Inteligência Artificial na Relação Médico-Doente

O Impacto da Inteligência Artificial na Relação Médico-Doente

Brent Mittelstadt

Tradução parcial do texto 
The impact of artificial intelligence  on the doctor-patient relationship
(ver a versão completa em inglês AQUI e em francês AQUI)

PONTOS PRINCIPAIS 

1. Em resposta a um pedido do Comité de Bioética (DH-BIO) [Comissão substituída pela Comissão Executiva para os Direitos Humanos nas áreas da Biomedicina e da Saúde (CDBIO=Steering Committee for Human rights in the fields of Biomedicine and Health)] para o elaborar com confiança, segurança e transparência, este relatório investiga os impactos conhecidos e potenciais dos sistemas de inteligência artificial (IA) na relação médico-doente. Este impacto é enquadrado pelos princípios dos direitos humanos referidos na Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina (CEDHB) de 1997, também conhecida como ‘Convenção de Oviedo’ e as suas subsequentes emendas.

2. A utilização de IA nos cuidados clínicos continua a ser incipiente. A eficácia clínica foi estabelecida para relativamente poucos sistemas, quando comparada com a significativa investigação sobre aplicações de IA em cuidados de saúde. A investigação, desenvolvimento e testes-piloto muitas vezes não se traduzem em eficácia clínica comprovada, comercialização ou implantação generalizada. A generalização para a prática clínica do desempenho obtido nos ensaios permanece geralmente não comprovada.

3. Uma característica que define a medicina é a ‘relação de cura’ entre clínicos e doentes. Esta relação é aumentada com a introdução da IA. Contudo, o papel do doente, os fatores que levam as pessoas a procurar assistência médica e a vulnerabilidade do doente não são alterados pela introdução da IA como mediador ou prestador de cuidados médicos. Pelo contrário, o que muda são os meios de prestação de cuidados, como podem ser prestados e por quem. A mudança de competências e responsabilidades de cuidados para os sistemas de IA pode ser perturbadora de muitos modos.

4. O potencial impacto nos direitos humanos da IA na relação médico-doente pode ser categorizado de acordo com seis temas: (1) Desigualdade no acesso a cuidados de saúde de alta qualidade; (2) Transparência para profissionais de saúde e doentes; (3) Risco de distorção social nos sistemas de IA; (4) Diluição da narrativa do doente sobre o bem-estar; (5) Risco de viés de automatização, de desqualificação e de responsabilidade deslocada; (6) Impacto sobre o direito à privacidade.

5. No que diz respeito a (1), como tecnologia emergente, a implantação de sistemas de IA não será imediata ou universal em todos os Estados-membros ou sistemas de saúde. A implantação nas instituições e nas regiões será inevitavelmente inconsistente em termos de escala, velocidade e estabelecimento de prioridades.

6. Os impactos da IA nos cuidados clínicos e na relação médico-doente permanecem incertos e seguramente irão variar em função da aplicação e de cada caso. Os sistemas de IA podem revelar-se mais eficientes do que os cuidados humanos, mas também proporcionam cuidados de menor qualidade por haver menos interações presenciais.

7. A expansão inconsistente de sistemas de IA com impactos incertos sobre o acesso e a qualidade dos cuidados de saúde representa um risco de criação de novas desigualdades na saúde nos Estados-membros.

8. O artigo 4.º da Convenção de Oviedo aborda os cuidados prestados por profissionais de saúde vinculados a normas profissionais. Ainda não está claro se os criadores, fabricantes e prestadores de serviços de sistemas de IA estarão vinculados aos mesmos padrões profissionais.

9. Deve ser dada especial atenção ao papel pelos profissionais de saúde vinculados por normas profissionais ao incorporar sistemas de IA que interagem diretamente com os doentes.

10. No que diz respeito a (2), a transparência e o consentimento informado são valores-chave na relação médico-doente mediada pela IA. A complexidade da IA levanta uma pergunta: como devem os sistemas de IA explicar-se, ou ser explicados, aos médicos e aos doentes? Esta pergunta tem muitos significados possíveis: (i) Como é que um sistema ou modelo de IA funciona? Como é que um sistema de IA produziu um resultado específico? (ii) Como foi concebido e testado um sistema de IA? Como é governado? (iii) Que informação é necessária para investigar o comportamento dos sistemas de IA? Podem ser necessárias as respostas a cada uma destas perguntas para se obter o consentimento informado nos cuidados mediados por IA.

11. Nos casos em que os sistemas de IA proporcionam alguma forma de competência clínica, por exemplo, recomendando um diagnóstico específico ou interpretando tomografias, este requisito para explicar a tomada de decisões seria aparentemente transferido do médico para sistema de IA ou, pelo menos, para o fabricante do sistema de IA. A dificuldade de explicar como os sistemas de IA transformam as entradas em saídas representa um desafio fundamental para o consentimento informado. Para lá da capacidade de o doente em compreender a funcionalidade dos sistemas de IA, em muitos casos, os doentes simplesmente não têm níveis suficientes de consciencialização que tornem possível o consentimento livre e esclarecido. Os sistemas de IA utilizam volumes sem precedentes de dados para tomar as suas decisões e interpretam estes dados utilizando técnicas estatísticas complexas, ambas aumentando a dificuldade e o esforço necessário para se perceber o âmbito total do processamento de dados e da análise clínica que dá forma ao diagnóstico e tratamento.

12. Os sistemas de IA que interagem diretamente com os doentes devem autoidentificar-se como um sistema artificial. Uma questão mais difícil é saber se a utilização de sistemas de IA em ambientes de cuidados de saúde deve ser sempre revelada aos doentes pelos clínicos e pelas instituições de saúde.

13. No que diz respeito a (3), está amplamente reconhecido que os sistemas de IA sofrem de distorções nas suas entradas, processamento e saídas. As decisões enviesadas e injustas ocorrem frequentemente não por razões técnicas ou regulamentares, mas antes por refletirem os preconceitos e desigualdades sociais subjacentes. Por exemplo, as amostras de ensaios clínicos e de estudos de saúde têm sido historicamente distorcidas por excesso de sujeitos masculinos brancos, o que significa que os resultados são menos suscetíveis de se aplicarem a mulheres e pessoas de cor.

14. Os vieses sociais nos sistemas de IA podem levar a uma distribuição desigual dos resultados entre populações de doentes e grupos demográficos protegidos. As sociedades ocidentais têm sido marcadas há muito tempo por uma desigualdade social significativa. Estas tendências históricas e contemporâneas influenciam a formação dos futuros sistemas. Sem intervenção, estes padrões no acesso a oportunidades e recursos de cuidados de saúde serão aprendidos e reforçados pelos sistemas de IA.

15. A deteção de vieses nos sistemas de IA não é simples. Regras tendenciosas de tomada de decisão podem ser escondidas em modelos de ‘caixa negra’. Anonimizar apenas os dados de saúde pode não ser uma solução adequada para mitigar os vieses devido à influência da desigualdade histórica e à existência de fortes substitutos de atributos protegidos (por exemplo, código postal como substituto da etnicidade). Os vários desafios oriundos de vieses sociais, discriminação e desigualdade sugerem que os profissionais e as instituições de saúde enfrentam uma tarefa difícil para garantirem que a utilização dos sistemas de IA não promove as desigualdades existentes e não cria novas formas de discriminação.

16. No que diz respeito a (4), o desenvolvimento da confiança numa relação médico-doente pode ficar inibido pela mediação tecnológica. Como mediadores colocados entre o médico e o doente, os sistemas de IA podem inibir no doente a compreensão tácita da sua saúde e bem-estar e encorajar tanto o clínico como o doente a ver a saúde apenas em quantidades mensuráveis ou em termos interpretáveis por máquinas.

17. No que diz respeito a (5), para garantir a segurança dos doentes e substituir a proteção dada pela competência clínica humana, umas normas robustas de teste e validação deveriam ser um requisito essencial prévio à implantação de sistemas de IA em contextos de cuidados clínicos. Ainda não existem provas de eficácia clínica para muitas aplicações de IA nos cuidados de saúde, o que provou, justificadamente, ser um obstáculo à implantação generalizada.

18. No que diz respeito a (6), a IA põe vários desafios únicos ao direito humano de privacidade e aos respetivos regulamentos de proteção de dados. Estes direitos procuram proporcionar aos indivíduos uma maior transparência e controlo sobre as formas automatizadas de tratamento de dados. Sem dúvida que proporcionarão uma proteção valiosa aos doentes em vários casos de utilização de IA médica.

19. A Convenção de Oviedo estabelece uma aplicação específica do direito à privacidade (artigo 8.º), reconhecendo a natureza particularmente sensível das informações pessoais de saúde e estabelecendo o dever de confidencialidade para os profissionais de saúde.

20. É necessário desenvolver normas éticas em torno da transparência, imparcialidade, confidencialidade e eficácia clínica para proteger os interesses dos doentes quanto ao consentimento informado, igualdade, privacidade e segurança. Tais normas poderiam servir de base para a instalação de IA nos cuidados de saúde que facilitem em vez de dificultarem a relação de confiança entre médicos e doentes.

21. Sempre que se possa observar que a IA tem um claro impacto nos direitos e proteções estabelecidos na Convenção de Oviedo, é apropriado que o Conselho da Europa produza recomendações e requisitos vinculativos para os signatários relativamente à forma como a IA é implantada e governada. As recomendações devem centrar-se no mais elevado padrão positivo de cuidados no que diz respeito à relação médico-doente, para garantir que não seja indevidamente perturbada pela introdução da IA em ambientes de cuidados.

22. O Conselho da Europa poderia estabelecer normas sobre quais e como devem ser comunicadas ao doente as informações sobre recomendações de um sistema de IA relativas ao seu diagnóstico e tratamento. Estas normas deveriam igualmente abordar o papel do médico na explicação das recomendações de IA aos doentes e como os sistemas de IA podem ser concebidos para apoiar o médico neste papel.

23. A capacidade da IA de substituir ou aumentar os conhecimentos clínicos humanos utilizando análises altamente complexas e volumes e variedades de dados sem precedentes sugere que o seu impacto na relação médico-doente também pode ser sem precedentes.

24. O grau em que os sistemas de IA inibem a ‘boa’ prática médica depende do modelo de serviço. Se a IA for utilizada apenas para complementar a competência dos profissionais de saúde vinculados pelas obrigações de confiança próprias da relação médico-doente, o impacto da IA na fiabilidade e na qualidade humana dos encontros clínicos pode revelar-se reduzido. Simultaneamente, se a IA for utilizada para aumentar ou substituir fortemente a competência clínica humana, o seu impacto na relação de cuidados é mais difícil de prever. É inteiramente possível que novas normas amplamente aceites para ‘bons’ cuidados surjam através de uma maior confiança nos sistemas de IA, com os clínicos a passarem mais tempo frente a frente com os doentes e a confiarem fortemente em recomendações automatizadas. O impacto da IA na relação médico-doente permanece, no entanto, altamente incerto. É pouco provável que nos próximos cinco anos se assista a uma reconfiguração radical dos cuidados de saúde no sentido de os conhecimentos humanos serem completamente substituídos por inteligência artificial.

25. Uma reconfiguração radical da relação médico-doente do tipo imaginado por alguns comentadores, em que os sistemas artificiais diagnosticam e tratam os doentes diretamente com o mínimo de interferência de clínicos humanos, continua a parecer muito distante.

26. Assim, o modelo ideal de cuidados clínicos e de implantação da IA nos cuidados de saúde é aquele que utiliza os melhores aspetos da competência clínica humana e do diagnóstico da IA.

27. A relação médico-doente é a pedra angular da ‘boa’ prática médica e, no entanto, parece estar a ser transformada numa tríplice relação médico-doente-inteligência artificial. O desafio enfrentado pelos prestadores de IA, reguladores e decisores políticos é estabelecer normas e requisitos robustos para este novo tipo de ‘relação de cura’, assegurando que os interesses dos doentes e a integridade moral da medicina como profissão não sejam fundamentalmente prejudicados pela introdução da IA.