Integridade
científica: o que
uma revista pode e não pode fazer
Thomas F Lüscher,
Kim Fox, Christian Hamm, Rickey E Carter,
Stefano Taddei, Maarten Simoons,
Filippo Crea
Revisão por pares e qualidade científica
Hoje, a
ciência avança a uma velocidade sem precedentes. O número de publicações
científicas atingiu um nível considerável, com tendência a ser cada vez maior em
cada ano. Com este aumento de volume, a revisão de alta qualidade é ainda mais
importante do que alguma vez foi. De facto, as revistas científicas de boa
reputação devem proporcionar aos seus leitores o melhor da ciência disponível
na sua área.1 Este é um verdadeiro serviço aos seus leitores, uma
vez que se tornou impossível ler todos os artigos publicados. Consequentemente,
todas as revistas de alto impacto utilizam o sistema de revisão por pares para
determinar a qualidade dos manuscritos submetidos e chegar a decisões
cientificamente rigorosas sobre o que publicam.2 O sistema de
revisão por pares baseia-se nas recomendações de peritos na área, confrontando o
que foi anteriormente publicado e avaliando o grau de novidade, bem como a
qualidade de um determinado artigo (Figura 1). Assim, é-lhes pedido que
determinem se a metodologia é de ponta, a análise estatística é a apropriada, o
artigo está escrito de forma legível, bem como está ilustrado com figuras e
tabelas apropriadas. Globalmente, entre as principais revistas, a taxa de
aceitação resultante da revisão por pares é usualmente inferior a 10% dos
manuscritos submetidos. Como tal, é ambição e intenção das revistas de alto
impacto que estes manuscritos sejam da mais alta qualidade possível, proporcionando
informação nova, clinicamente importante e fiável.
Ninguém e nada é perfeito
Obviamente, o
processo de revisão pelos pares não é perfeito, é apenas tão bom como os
revisores e editores que estão envolvidos no mesmo. Como tal, a revisão
pós-publicação pelos leitores e especialistas na matéria é bem-vinda e
necessária para o avanço da ciência. Contudo, uma limitação chave do processo
de revisão pelos pares que é difícil de ultrapassar é a de só poder avaliar o
que foi submetido. De facto, a revisão por pares não pode prover a validação de
dados de origem, nem pode evitar ser enganada por autores fraudulentos.3
Infelizmente, as retratações, particularmente em revistas de alto impacto,
aumentaram acentuadamente ao longo dos anos.4 O escândalo das
células estaminais é apenas um exemplo recente desta tendência.5
Vários programas apresentaram meios para ‘otimizar’ western blots ()
e outros conjuntos de dados originais em artigos científicos o que torna
difícil que os revisores detetem essa má conduta. Alguns dos conjuntos de dados
mais obviamente fabricados no famoso caso John Darsee escaparam mesmo à atenção
de revisores experientes do New England Journal of Medicine.6,7
Do mesmo modo, os artigos de revisão sistemática e as metanálises são difíceis
de avaliar, uma vez que a abstração e a reanálise dos dados exigiriam esforços
consideráveis que estão fora do âmbito da revisão regular pelos pares. A um
certo nível, é necessário tomar os dados pelo seu valor facial e verificar se
os processos de maior nível que conduzem ao conjunto de dados apresentado são
sólidos. Globalmente, contudo, o processo de revisão por pares tem tido elevada
aceitação entre autores e leitores, e continua a ser considerado o mais alto
padrão que temos atualmente.
Publicação e depois
Sempre que
aparecem publicações, particularmente quando relatam descobertas desafiantes ou
inesperadas, surgem discussões alargadas no seio da comunidade científica. Esta
é uma parte importante do processo científico, na medida em que avalia a
validade e a importância dos dados. As descobertas controversas, sobretudo, são
discutidas em mais profundidade ou mesmo condenadas (como o exemplo seminal de
Galileu Galilei demonstrou de forma convincente). Isto não mudou atualmente e a
maioria dos periódicos, entre os quais o European Heart Journal, acolhe
favoravelmente a discussão, uma vez que estimula e fomenta o processo
científico. Para o efeito, introduzimos o ‘Fórum de Discussão’ onde qualquer
autor, leitor ou cientista, que queira comentar artigos publicados na revista,
é bem-vindo. Desde que os seus argumentos e raciocínios respeitem a decência e
estilo, os editores não restringem qualquer crítica. Graças a esta política, o ‘Fórum
de Discussão’ tem publicado um número cada vez maior de contribuições de
autores de todo o mundo.
Preocupações com precisão científica ou integridade
Em alguns
casos, leitores e cientistas submetem duras críticas aos métodos e, por outro
lado, à precisão dos dados ou mesmo à suspeita de fraude científica. Não há
dúvida de que, embora a maioria dos cientistas subscreva o princípio de relatar
a verdade e nada mais que a verdade, outros, embora uma minoria, podem não
aderir a este princípio.3 É uma experiência infeliz de qualquer
editor enfrentar tais situações. O European Heart Journal segue as
orientações inscritas nas Core Practices do COPE (Committee on
Publication Ethics)e subscreve as Recomendações do Comité Internacional de
Editores de Revistas Médicas (ICJME) para a Conduta, Relato, Edição e
Publicação do Trabalho Académico em Revistas Médicas. É expectável que todas as
partes envolvidas na publicação de conteúdos na Revista sigam estas diretrizes.
Além disso, o European Heart Journal conta com a Comissão de Ética das
Revistas da ESC (European Society of Cardiology) há quase uma década.8
Os editores estão muito gratos pelos conselhos inestimáveis que esta comissão deu
ao longo dos anos em situações delicadas e difíceis. Infelizmente, o número de
casos que tiveram de ser submetidos à Comissão de Ética das Revistas aumentou
constantemente ao longo do tempo, principalmente devido a acusações por
denunciantes, meios de comunicação social ou cartas ao editor. É justo dizer
que o público leitor de investigação médica evoluiu, incluindo mais do que
apenas investigadores e médicos, devido à disseminação global através dos meios
de comunicação social e canais de notícias. Uma base tão alargada levou
inevitavelmente a um processo de revisão pós-publicação mais escrutinado.
Preocupações quanto à integridade científica
Sempre que são suscitadas questões sobre a integridade
científica dos manuscritos submetidos – ou mesmo daqueles já publicados – os
editores do European Heart Journal, bem como os de outras revistas da ESC,
recorrem à Comissão de Ética das Revistas.8 Com base nos seus
conselhos, os autores são confrontados com perguntas específicas e as suas
respostas avaliadas. Em muitos casos, o processo de investigação terminará
nesta fase. Contudo, se tiverem sido levantadas acusações mais graves, a
instituição dos autores poderá ser contactada e solicitadas mais informações e
ajuda (Figura 2). Infelizmente, nem todas as universidades têm responsáveis
pela conformidade ou comissões de ética que lidam com tais questões, o que
torna este processo por vezes difícil, ou mesmo impossível. No entanto, o European
Heart Journal tem sido bem sucedido em muitos casos ao receber toda a base
de dados para reavaliação ou análise estatística independente, bem como
documentos ou protocolos para posterior revisão por investigadores ou clínicos
experientes.
Descrição de
um caso recente
Em
14 de junho de 2019, investigadores da Universidade de Vigo em Espanha
submeteram ao European Heart Journal um manuscrito com o título ‘O
tratamento da hipertensão à hora de deitar diminui o risco cardiovascular:
ensaio de cronoterapia Hygia’. O artigo relatava um ensaio que
randomizou 19 084 doentes hipertensos (10 614 homens e 8 470 mulheres, 60,5 ± 13,7
anos de idade), em modo 1:1, que tomavam os seus medicamentos anti-hipertensores
à hora de dormir (n = 9 552) ou ao acordar (n = 9 532). Os resultados foram
realmente desafiantes; os autores relataram a impressionante redução de 45% no
risco relativo dos principais eventos cardiovasculares se os anti-hipertensores
fossem administrados à noite e não de manhã (taxa de risco ajustada 0,55,
intervalo 0,50-0,61, P < 0,001). O artigo foi extensivamente revisto por
cinco revisores, incluindo por um editor estatístico, todos especialistas na
matéria, e finalmente foi aceite uma versão revista a 1 de outubro de 2019 e
publicada online a 22 de outubro de 2019.9
Quando
este artigo foi publicado, foi alvo de um intenso escrutínio por colegas
interessados no campo da hipertensão, bem como na imprensa, meios de
comunicação social e afins. Para alguns, os resultados foram não só
surpreendentes, mas também incríveis, e a alguns olhos inacreditáveis (‘demasiado
bom para ser verdade’). Como consequência, o European Heart Journal
recebeu um número substancial de cartas, e-mails e comentários relativos
ao ensaio Hygia. Para garantia de transparência, os editores decidiram
publicar todas as reações, a menos que fossem repetidas, na secção ‘Fórum de
Discussão’.10-19 Assim, o processo científico estava a funcionar da
forma que deveria – os leitores de todo o mundo estavam a interagir com o
artigo e procuravam compreender melhor os dados. Afinal, a mudança relatada na
mortalidade poderia ter um impacto profundo no horário da medicação anti-hipertensora
e eventualmente nas recomendações das Diretrizes. Depois de terem proporcionado
transparência sobre a controvérsia, os editores confrontaram o principal
investigador com as críticas levantadas. O Dr. Ramon Hermida respondeu em pormenor
às questões em várias cartas que esclareceram algumas, mas não todas, as
questões. Por conseguinte, a Comissão de Ética das Revistas recomendou
contactar a instituição, especificamente o Professor Manuel Reigosa, Reitor da
Universidade de Vigo em Espanha. Felizmente, ele disponibilizou-se a fornecer
todos os documentos que a Comissão exigia para chegar a uma decisão justa e
equilibrada.
Assim
que o European Heart Journal recebeu o conjunto de dados dos doentes do
ensaio Hygia e os seus resultados, o Editor Chefe pediu uma análise
independente a um estatístico experiente de uma instituição de prestígio nos
EUA, para evitar quaisquer conflitos de interesse. Esta análise confirmou que a
avaliação estatística e a apresentação dos resultados no manuscrito eram
consistentes, num grau satisfatório, com os dados fornecidos. É óbvio que a
revista, o seu estatista independente e a Comissão de Ética das Revistas da ESC
não puderam verificar os dados de origem, pois isso exigiria enormes recursos
que estariam muito além das expectativas do processo de revisão pelos pares. No
entanto, os editores recomendaram ao Reitor da Universidade de Vigo a
realização de tal investigação num futuro próximo e a elaboração de um
relatório sobre o seu resultado.
Outro
aspeto do ensaio que foi questionado foi se se tratava verdadeiramente de um ensaio
aleatório. Para o efeito, os editores exigiram documentação apropriada do
protocolo e do formulário de consentimento informado do doente por parte da
instituição. Como estes documentos foram redigidos em espanhol, pedimos a um investigador
americano competente nessa língua que avaliasse estes documentos. Com base nos
documentos, ele confirmou que os doentes, quando assinaram o seu consentimento,
tinham sido devidamente informados sobre a conceção do ensaio e a necessária randomização
1:1 para cada grupo que tomava os seus medicamentos anti-hipertensores, de
manhã ou à noite.
Finalmente,
muitos estavam preocupados por o ensaio não ter previsto uma regra de paragem,
nem os investigadores terem criado um Conselho de Dados e Segurança (DSMB = Data and Safety Board). De facto, alguns
interrogavam-se porque é que o ensaio não foi interrompido mais cedo quando o
efeito significativo do tratamento na hora de dormir se tornou aparente, mas
continuou durante algum tempo depois de alguns resultados terem sido relatados num
artigo anterior, embora com outro foco.20 Aparentemente, a Hygia
era um ensaio pragmático, subfinanciado, que se baseava principalmente na
documentação do historial do doente. A agregação de dados no estudo abrangeu
uma década entre 2008 e 2018, complicando ainda mais o financiamento e a
manutenção de uma infraestrutura robusta de ensaios clínicos durante tanto
tempo. Embora algumas das operações do estudo possam ficar aquém dos padrões
atuais, o diálogo com a equipa de investigação forneceu respostas satisfatórias
e não houve indicações que sugerissem que o ensaio ou os dados tivessem natureza
fraudulenta.
Por
último, serão credíveis os benefícios surpreendentemente grandes proporcionados
pela toma à noite de medicamentos anti-hipertensores? Com efeito, um efeito
invulgarmente impressionante observado num ensaio não pode ser, por si só, uma
prova de infração. De facto, também noutras circunstâncias, por exemplo,
ensaios com inibidores da enzima conversora da angiotensina em doentes com
doença arterial coronária, os resultados não eram sempre comparáveis. Por
exemplo, enquanto o QUIET com quinapril foi neutro,21 o HOPE com
ramipril (que, curiosamente, foi dada à noite)22 e o EUROPA com
perindopril23 foram positivos e a PEACE com trandolapril foi
novamente neutro.24 Assim, a ciência produz dados e resultados
heterogéneos devido a diferenças na conceção, populações de doentes e
medicamentos envolvidos, mas também acidentalmente e, claro, também devido as
condutas desadequadas.
A prova final
De
notar que a prova final da novidade, importância e fiabilidade dos resultados
publicados não pode ser dada pelo processo de revisão por pares. Como Sir Karl
Popper, o eminente filósofo da ciência, sublinhou na sua obra seminal
intitulada ‘A Lógica da Descoberta Científica’, publicada pela primeira vez em
alemão em 1934,25 existe apenas uma prova, ou seja, o teste do
tempo. Enquanto durante séculos, a confirmação foi considerada o critério mais
rigoroso de prova, Popper argumentou convincentemente que só a falsificação ()
separa o certo do errado (e o inventado do verdadeiro).26 Só as
descobertas que sobrevivem ao teste do tempo podem ser consideradas importantes
e convincentes.27 Na história da medicina, várias teorias foram
posteriormente falsificadas e depois abandonadas.28 Assim, o caminho
para a prova é longo e sinuoso – o teste do tempo leva tempo.29
O que uma revista pode e não pode fazer
As
revistas através dos seus revisores, editores e membros do conselho editorial
podem propiciar um processo de revisão aprofundada pelos pares, incluindo uma
revisão estatística independente dos artigos submetidos, para chegarem a uma
decisão sobre a sua publicação ou não. Quando surgem preocupações
pós-publicação, os editores podem validar as acusações e fazer perguntas
específicas aos autores e, se necessário, podem também questionar a sua
instituição. Como o exemplo acima mencionado documenta, podem também efetuar
uma análise estatística independente e completa da base de dados para desfazer
dúvidas. Além disso, o European Heart Journal tem como política
solicitar uma declaração de disponibilidade de dados junto com cada artigo
submetido. Isto aumenta a confiança e a credibilidade nos ensaios clínicos,
permite análises independentes e permite testar novas hipóteses. O European
Heart Journal tem uma política clara em torno da disponibilidade de dados e
materiais (ver https://academic.oup.com/eurheartj/pages/General_Instructions#2.9). Um repositório de dados
aberto também oferece maior transparência e permite metanálises ao nível do doente.
No entanto, os direitos de publicação de dados obtidos por outros devem
provavelmente ser clarificados, a fim de implementar esta opção com sucesso.
Conclusão
Finalmente, no caso do exemplo acima detalhado, os editores do European
Heart Journal, de acordo com a Comissão de Ética das Revista da ESC,
confirmaram que não podiam documentar qualquer má conduta científica associada
ao estudo ou ao seu relato e, portanto, publicaram uma Nota dos Editores sobre o
ensaio Hygia, de Hermida et al., absolvendo os autores. Como
sempre, continuarão a existir preocupações em relação a estas conclusões. Se os
benefícios surpreendentemente grandes proporcionados pela ingestão de
medicamentos anti-hipertensores à noite, em vez da toma matinal, sobreviverão
ao teste do tempo, isso será confirmado ou refutado pelos ensaios em curso ().
Afinal, a ciência é construída confiando que o teste do tempo permita um juízo
final. n
ver referências no artigo original