Ahmed al-Awamer, médico de cuidados paliativos no Princess Margaret Cancer Centre em Toronto
“Quero morrer.”
Foi assim que ouvi o meu primeiro pedido de suicídio
assistido. Jean era uma mulher solteira de 50 anos com um cancro avançado.
Tinham acabado de lhe dizer que não poderia receber mais quimioterapia e que
era recomendável um plano de tratamentos paliativos. “Vi a minha mãe a morrer e
não quero passar por isso.
Ficar numa cadeira de rodas é, para mim, já morrer”,
afirmou. Eu estava no fim do meu primeiro semestre do internato de medicina
paliativa. Colhi uma história detalhada e tentei garantir à minha doente que, embora
o suicídio medicamente assistido não fosse uma opção, nós – a equipa de
cuidados paliativos – trataríamos bem dela. Pedi uma consulta urgente de
psiquiatria. Apesar de todos os nossos esforços, ao fim de 2 meses ela
continuava a insistir no seu pedido para morrer e tornou-se mais perturbada à
medida que ficava mais dependente. A equipa de cuidados começou a debater se
deveria oferecer-lhe uma sedação paliativa contínua. Contudo, ela faleceu
confortada, mais cedo do que esperávamos.
Foi um caso muito desafiador para mim. Ainda ouço as
palavras de Jean sempre que estou numa reunião em que se discute um pedido para
apressar a morte ou um pedido de suicídio medicamente assistido. Também recordo
a frustração da equipa que nos referenciou a doente acerca do “fracasso” dos
cuidados paliativos em mudar a opinião de Jean sobre o suicídio. A expectativa
de que a equipa de cuidados paliativos deve mudar a opinião do doente também
paira sobre o polémico debate a propósito da legalização do suicídio medicamente
assistido no Canadá. Infelizmente, este debate descarrilou muitas vezes devido
às tentativas de enaltecer ou desacreditar a importância dos cuidados
paliativos. Os opositores à legalização sugerem que cuidados paliativos “apropriados”
fazem com que o suicídio medicamente assistido não seja necessário. Os apoiantes
argumentam que os cuidados paliativos não satisfazem totalmente as necessidades
dos doentes terminais e propõem que o suicídio medicamente assistido seja uma
opção em cuidados paliativos. Eu defendo que os cuidados paliativos não são um “antídoto”
do suicídio medicamente assistido e que, igualmente verdadeiro, os insucessos
dos cuidados paliativos não levam a pedidos de suicídio medicamente assistido e
eutanásia.
Antes de expor melhor o meu argumento, tenho de declarar
a minha inclinação pessoal. Não apoio a legalização do suicídio medicamente
assistido porque as minhas crenças religiosas não apoiam qualquer forma de
ajuda à antecipação da morte. Não quero aprofundar aqui este debate. Defendo
que os cuidados paliativos têm um papel principal no alívio do sofrimento de
todos os doentes terminais e que não há relação causal entre cuidados
paliativos e pedidos de suicídio medicamente assistido. Por outras palavras, os
pedidos sustentados de suicídio medicamente assistido em doentes terminais não
se relacionam com a qualidade dos cuidados paliativos 1. Os pedidos para apressar a morte são desejos pessoais
complexos que geralmente refletem os valores e as perceções do que faz uma vida
ser boa e uma morte ser boa, e não representam um fracasso dos cuidados
paliativos1-4.
Pedidos
para apressar a morte não estão relacionados com a dor
Os pedidos para apressar a morte são raros e
desafiadores. Tradicionalmente, as pessoas identificam os doentes que exprimem
um desejo de suicídio medicamente assistido com os que sofrem dores cruéis.
Mas, como os cuidados paliativos possibilitam o controlo de dores e de
sintomas, a maioria dos doentes terminais que querem ajuda para morrer não
estão tomados de dores intratáveis1,3-5. Os dados dos programas de morte e dignidade do Oregon e
de Washington – programas que providenciam a opção pelo suicídio medicamente
assistido a doentes terminais – mostraram que a maioria dos doentes que optaram
pelo suicídio medicamente assistido fê-lo por causa dos receios de perda de
autonomia (90%), perda de dignidade (70%) e dependência (52%) 6. A dor foi realçada como razão para a procura de
suicídio medicamente assistido apenas em 22% dos casos. Além disso, os dados
sobre eutanásia de doentes na Holanda mostraram que a dor era a razão para a
eutanásia apenas em 36% dos doentes7. Contudo, Raus e colegas sugerem que, devido aos
inquiridos responderem a perguntas de escolha múltipla sobre os motivos por que
pedem suicídio medicamente assistido, estes dados indicam que o número de
doentes que optam pela eutanásia apenas devido à dor deve ser inferior8. Além disso, na Holanda, apesar da possibilidade de
optar por eutanásia e suicídio medicamente assistido, a maioria dos doentes
terminais com sintomas físicos intoleráveis, como dores, escolhe a sedação
paliativa contínua para controlo dos sintomas7. Acresce que outros estudos conduziram a observações
semelhantes sobre as relações ente dores e pedidos para apressar a morte5.
Bons
cuidados paliativos não evitam pedidos para apressar a morte
Mais, se achamos que o fracasso dos cuidados paliativos é
uma causa do pedido para apressar a morte, então assumimos que os bons cuidados
paliativos evitam esses pedidos. Contudo, a realidade não apoia esta hipótese.
No seu relatório “A Qualidade da Morte”9, The Economist classifica a qualidade dos programas de cuidados
paliativos existentes no mundo. Os países com melhores pontuações em sistemas
de cuidados paliativos (como a Bélgica) têm mais casos de suicídio medicamente
assistido quando comparados com o Canadá, por exemplo, que só recentemente o
legalizou9.
Se a dor e o sofrimento físico não são causa de pedidos
para se apressar a morte, então qual é a causa? Uma revisão sistemática feita
por Monforte-Royo et al 2 conclui que o pedido para apressar a morte é um fenómeno
complexo e multifatorial. Implica uma mistura de diferentes conceitos como medo
de sofrer e de morrer, reação ao sofrimento total (físico, psicológico e
espiritual), necessidade de um plano de fuga, perda de sentido da vida2. Os estudos mostram que o pedido para apressar a morte
não é sempre um desejo sustentado de morrer e que esses pedidos podem ser
entendidos como um “grito por ajuda”2,10 ou por representarem um medo de ficar paralisado pela dor
ou ficar dependente. Estes doentes querem um plano de fuga para o caso de
precisarem. De facto, nos programas de morte e dignidade do Oregon e de Washington,
40% dos doentes que receberam receitas para levantar medicações letais não as
usaram6. As equipas de cuidados paliativos
têm por objetivo lidar com estes medos.
Os
valores influenciam a escolha
Apesar da extensão da rede e da utilização de cuidados
paliativos multidisciplinares, há doentes – como no caso de Jean – que querem
firmemente controlar as suas vidas e mortes. São doentes racionais e capazes de
decidir que não estão deprimidos e que querem morrer mais cedo com fundamento
nos seus valores e opiniões pessoais sobre sofrimento e vida. Estas vontades
não são mantidas por um fracasso de cuidados paliativos mas por um desejo de
viver nos “seus próprios termos”. Na revisão de Monforte-Royo et al, todos os pedidos para apressar a morte derivavam do
desejo de os doentes controlarem as suas vidas2. Este desejo de controlo e autodeterminação é um valor
prevalente na ética médica ocidental e na lei canadiana.
Os doentes têm, obviamente, valores diferentes: alguns
preferem concentrar-se na qualidade de vida; outros preferem prolongar as suas
vidas mesmo quando os prestadores de cuidados de saúde consideram que a qualidade
de vida é pobre. Por exemplo, uma das minhas doentes, Sara, tinha esclerose
lateral amiotrófica. Estava completamente dependente e necessitava de
ventilador para respirar e de uma sonda nasogástrica para se alimentar. Não
podia comer, beber ou falar adequadamente. Comunicava abrindo e fechando os olhos.
A minha primeira reação foi que Sara tinha uma vida desgraçada. Quando estava a
conversar sobre os objetivos dos seus cuidados, ela disse que sentia
convictamente que a sua qualidade de vida era boa e queria viver a sua vida até
ao último minuto. Apesar da dor e do atingimento funcional, os valores
religiosos de Sara davam-lhe força para continuar a viver a sua vida. Quando
debatia as minhas recomendações com a equipa que nos referenciou esta doente,
senti a mesma frustração sobre o papel da equipa de cuidados paliativos e sobre
o desejo de Sara continuar com medidas de apoio à sua vida. Tanto Jean como
Sara fizeram escolhas baseadas nos seus valores e crenças. Muitos fatores
contribuíram para o pedido de Jean, mas o desejo de controlar a situação e ter
autonomia era central. Comparativamente, Sara tinha diferentes valores pessoais
e religiosos que configuraram o seu desejo de cuidados combativos. Como médicos
temos o dever de reconhecer que os valores dos doentes – sejam pessoais,
religiosos ou culturais – influenciem todas as suas decisões de fim de vida.
Consequências
no debate sobre suicídio medicamente assistido
Defendi acima que os pedidos sustentados para se apressar
a morte se não relacionavam com a qualidade dos cuidados paliativos. Gostaria
agora de acrescentar um comentário suplementar sobre o efeito do debate sobre
suicídio medicamente assistido nos cuidados paliativos. Embora alguns
especialistas defendam que o debate sobre o suicídio medicamente assistido
melhora a perceção pública sobre morte e morrer, defendo que debater cuidados
paliativos no contexto do suicídio medicamente assistido reforça a ideia de que
os cuidados paliativos se limitam apenas ao período próximo da morte. Apesar
dos benefícios comprovados dos cuidados paliativos precoces11, muitos doentes e profissionais de saúde resistem a
referenciar precocemente porque pensam que cuidados paliativos se destinam a
doentes prestes a morrer. Muitos doentes terminais veem negada a referenciação
porque “é muito cedo”, pois ainda não estão a morrer. Este debate sobre o suicídio
medicamente assistido reforça esta mensagem errada e pode já ter impedido a
administração precoce desses cuidados.
Conclusão
A polémica sobre a legalização do suicídio medicamente
assistido no Canadá resulta, claramente, do conflito entre os nossos valores e
princípios. Os cuidados paliativos proporcionam uma vida boa a pessoas gravemente
doentes durante o maior tempo possível. Os cuidados paliativos não podem arcar
com o ónus do desacordo na medida em que isso deforma a sua própria imagem.
Exigir expectativas e objetivos irrealistas às equipas de cuidados paliativos –
como corrigir os valores dos doentes – é fazer com que o fracasso e o descrédito
dos cuidados afetem doentes graves e vulneráveis9. Cuidados paliativos e suicídio medicamente assistido
são coisas distintas e não devem ser parte do mesmo debate.
1. Ferrand E, Dreyfus JF, Chastrusse M, Ellien F, Lemaire F, Fischler M. Evolution of requests to hasten death among patients managed by palliative care teams in France: a multicentre cross-sectional survey (DemandE). Eur J Cancer 2012;48(3):368–76. Epub 2011 Oct 28.
4. Ganzini L, Goy ER, Dobscha SK. Oregonians’ reasons for requesting physician aid in dying. Arch Intern Med 2009;169(5):489–92. Erratum in: Arch Intern Med 2009;169(6):571.