06 abril 2016

Em defesa dos cuidados paliativos

Público, 06.04.2016

Despenalizar os raros casos de antecipação da morte a pedido do doente, não é ser contra os cuidados paliativos. É também ser a favor. É também defendê-los.

O debate sobre a morte medicamente antecipada tem posto os seus opositores na situação de defensores dos cuidados paliativos, parecendo que quem defende essa antecipação se opõe aos cuidados paliativos. Trata-se de uma confusão generalizada que a ninguém aproveita.

– Queres dizer que todos os depoimentos que têm surgido nos jornais e nas redes sociais padecem dessa confusão?

Sim, quase todos. Quem acha que a antecipação da morte certa deve continuar a ser proibida invoca os cuidados paliativos para dizer que nunca é precisa e quem acha o contrário parece esquecer que os cuidados paliativos desempenham um papel fundamental nos momentos finais da vida de uma pessoa.

– Queres então dizer que os cuidados paliativos, sendo essenciais, não são a solução sempre?

Sabemos, por conhecimento empírico e também de acordo com estudos realizados, que muitas pessoas na fase terminal das suas doenças, mesmo que recebam os melhores cuidados, continuam a pedir para morrer – o seu sofrimento pode ser uma dor física refratária ou ser devido a razões existenciais que ninguém tem o direito de contrariar.

– Então, mesmo que o direito a escolher o momento da morte não seja um direito constitucional, achas que essa escolha é lícita, em termos gerais?

A licitude de uma escolha dessas não tem de ter fundamento legal – parece-me antes um direito natural. Não se trata de pedir para que me matem. Trata-se, tão só, de pedir para antecipar uma morte certa, ou seja, para que a morte que se espera para amanhã aconteça hoje.

– Admitindo esse direito, haverá o dever de o satisfazer?

Pode dizer-se, sem dúvida, que é estranho que alguém prefira morrer a viver mas, se o viver acarreta um sofrimento insuportável, quando alguém pede para que o ajudem a pôr termo à vida, porque não o pode fazer sozinho, recusar essa ajuda é uma maldade. Hoje, em Portugal, como em outros países, tanto agir para a antecipação da morte certa a pedido do doente (eutanásia ativa voluntária) como agir para provocar a morte por compaixão de pessoa que sofre mas nada pede (eutanásia ativa involuntária) são crimes previstos no Código Penal. O que o Manifesto, que convictamente subscrevi, propõe é que deixe de ser crime apenas a ajuda à antecipação feita a pedido consciente da pessoa doente – que quem seja misericordioso não seja considerado criminoso.

– É assim tão diferente? Uma coisa não irá levar à outra?

A diferença reside num ponto capital: há um pedido repetido, consciente e livre da pessoa que sofre. Não havendo pedido, a prova da compaixão desinteressada é manifestamente difícil. É preciso, certamente, encontrar uma forma de evitar que alguém considere que houve esse pedido não o tendo havido. Tem de recorrer-se, como já se faz em algumas jurisdições, a normas legais: só aceitar pedidos que sejam verificados por dois médicos e/ou validados por entidades com poderes especiais; só considerar certos diagnósticos e prognósticos (expectativa de vida inferior a determinado tempo); excluir casos de doença mental confirmada; aceitar declarações antecipadas de vontade legitimamente registadas.

– Então se é lícito pedir e é lícito atender, por que hão de ser os médicos a ajudar?

Essa pergunta é enganadoramente interessante. Quem a formula está a admitir, sem querer, que os argumentos anteriores foram rebatidos. Temos visto que muitos opositores à despenalização da ajuda à antecipação da morte a pedido do doente saltam de um argumento para outro e não se dão conta que se contradizem. Se o que estamos a falar é de doentes terminais, em cuidados médicos, como se pode pensar que o gesto de antecipar a morte possa ser executado por alguém que não seja profissional de saúde?

– Mas é ou não verdade que o julgamento hipocrático impõe aos médicos que tudo façam pela vida dos seus doentes?

Sim, os profissionais de saúde tudo devem fazer para os salvar mas também os obriga anão lhes fazer mal. Se os melhores cuidados paliativos não conseguem evitar a continuação do sofrimento, persistir com medidas que, prolongando a vida, apenas prolongam o sofrer, isso é fazer o mal.

– Isso é tudo muito bonito mas não basta suspender os tratamentos fúteis, atenuar os sintomas (nem que seja com sedativos) e esperar que a morte venha? Porquê agir para a antecipar?

É verdade. Os cuidados paliativos são exatamente isso. Parar com medidas que só prolongam o sofrimento, controlar sintomas adversos, não temer o duplo efeito, reconhecer que o final se aproxima inexoravelmente – apoiar a pessoa, assistir empaticamente ao doente e à família. Perceber que não somos deuses. Com cuidados paliativos a esmagadora maioria dos doentes não pede que a morte venha depressa – simplesmente deixa-se morrer.

A conclusão – que alguns se recusam a ver – é despenalizar os raros casos de antecipação da morte a pedido do doente, depois de usados os melhores cuidados, seguindo regras bem definidas e globalmente aceites, não é ser contra os cuidados paliativos. É também ser a favor. É também defendê-los. É também exigi-los!