O "neurologista" Miguel Bombarda ou... a epilepsia nos finais do século XIX
Sociedade Portuguesa de Neurologia
Fórum de Neurologia 2005, Luso
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Este armazém foi criado para guardar e partilhar textos (e contextos) que tenho escrito ou traduzido, quase todos ao longo da “terceira” metade da minha vida, mas também antes. Até aos 35 anos formei-me e cresci, até aos 70 exerci e aprendi, agora deu-me para isto... 😊
O "neurologista" Miguel Bombarda ou... a epilepsia nos finais do século XIX
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in Livro Básico da Epilepsia, pp. 355-61, LPCE (2007)
Por ter caráter crónico ou vitalício e por ter manifestações súbitas e mal explicadas, a epilepsia é, talvez, a condição médica que mais vezes se associa a implicações de âmbito social.
Este facto é por demais conhecido e reflete uma tradição
secular em que o "epilético" aparece ligado a forças ocultas e
estranhas que o impelem a movimentos violentos e assustadores.
Nas últimas décadas o conceito que as pessoas sem
formação científica têm a respeito da pessoa com epilepsia modificou-se
radicalmente. A Liga Portuguesa contra a Epilepsia terá, de algum modo,
contribuído para essa mudança através das suas ações de divulgação e informação
sobre a doença.
Apesar disso, subsiste na sociedade portuguesa, assim
como nas sociedades dos outros países europeus, um preconceito negativo em
relação à epilepsia que se traduz em várias áreas e comporta diversas
discriminações, em clara violação do princípio constitucional da igualdade que
emana do art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) (1).
São algumas destas áreas, cujas experiências riquíssimas temos contactado diretamente,
que trataremos de ora em diante.
1. EMPREGO
O acesso ao mundo laboral é consabidamente um percurso
complicado, atribulado e, acima de tudo, de perseverança. Hodiernamente, as
habilitações apenas não chegam, sendo necessário aliar outros fatores como a
idade, a experiência, a adequação do candidato à função e também a aptidão
física e psíquica do mesmo.
Ora, a pessoa com epilepsia esconde frequentemente a sua
condição quando se candidata a um emprego. E, por seu lado, o empregador que
entrevista candidatos a determinada função, classifica com extrema facilidade
como inapto ou inapropriado, o candidato que revele ter epilepsia. Esta conduta
discriminatória é, infelizmente, usual na nossa sociedade em que há tanta
ignorância nesta e noutras matérias de saúde pública.
Poderemos dizer que isto resulta de uma interpretação
alargada do conceito de epilepsia para o comum dos cidadãos, ou seja,
considera-se que toda a pessoa com epilepsia tem todos os componentes
considerados negativos para o trabalho e esquece-se como são variadas as formas
com que a epilepsia se apresenta. Será importante não esquecer que o candidato
a emprego não tem a obrigatoriedade de informar a entidade patronal da sua
epilepsia (2), a menos que esta influa decisivamente nas tarefas que
vai desempenhar, como poderemos constatar no art. 97.º, n.º 2 do Código do
Trabalho (Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto) “O trabalhador tem o
dever de informar o empregador sobre aspetos relevantes para a prestação da atividade
laboral.”.
Os valores constitucionais da reserva da intimidade da
vida privada e familiar e da proteção legal contra quaisquer formas de
discriminação do art. 26.º da CRP deverão prevalecer.
A par de casos de controlo completo sob medicação regular
existem epilepsias cuja frequência de crises é tão baixa que apenas acarretam
riscos mínimos, bem como há várias formas de epilepsia que têm crises tão
subtis que não interferem de todo com o desempenho de muitas tarefas e atividades.
A informação que importa passar, desde logo aos próprios
doentes e às suas famílias, é a de saberem se a perturbação de natureza epilética
que lhes foi diagnosticada interfere ou não com esta ou com aquela profissão.
Por outro lado, a entidade patronal dispõe hoje dos
exames médicos de admissão para aferir da aptidão ou não do candidato para a
prestação de trabalho, exames esses que se encontram estabelecidos no art. 245º
da Regulamentação do Código do Trabalho (Lei nº 35/2004, de 29 de Julho), por
remissão do art. 276º CT (3).
É sabido que, numa sociedade com taxas de desemprego
elevadas, as pessoas com desvantagens, ainda que pequenas, são as primeiras a
sofrer na competição do acesso ao trabalho. Por isso, a mensagem que é
necessário repetir é a de que, na seleção dum candidato a um emprego, a
primeira coisa a avaliar pela entidade patronal deve ser a aptidão, ou seja,
aferir se o candidato tem a formação necessária e se sabe realizar a tarefa, e
só após a aplicação desse critério se poderá escolher o melhor candidato entre
os melhores.
A grande maioria das profissões é acessível às pessoas
com epilepsia. As pessoas com epilepsia correm, regra geral, os mesmos riscos
quer trabalhem, quer não trabalhem, e a maioria prefere, naturalmente,
trabalhar (4).
2. REFORMA POR INVALIDEZ
A invocação de epilepsia como diagnóstico para obter a
reforma por invalidez, não falando dos casos em que à epilepsia estão
associados outros problemas (défices intelectuais ou motores), levanta muitas
vezes a pergunta sobre a razão por que uma situação que sempre existiu passa a
ser motivo para a invalidez. Também aqui a influência da situação social sobre
as motivações dos cidadãos é notória. Além disso, verifica-se que enquanto uns
médicos procuram insistentemente o controlo das crises e a adaptação dos
doentes às situações sem completo controlo, há outros que apoiam mais
facilmente a pretensão de obter algum ganho económico, cuidando menos de
avaliar se o “defeito” condiciona ou não a incapacidade real para o
trabalho.
Obviamente que muitos trabalhadores portugueses sofrem de
epilepsia e trabalham diariamente sem que tal afete a sua rentabilidade ou
ponha em risco a sua segurança laboral, contudo o agravamento da sua epilepsia
pode tornar impossível a manutenção da relação laboral quando põe em causa a
saúde do próprio e a segurança dos demais trabalhadores. Nesse caso, outra
solução não resta que não seja a reforma por invalidez.
Cada situação terá de ser avaliada em separado mas não
deixa de ser verdade que é chocante que, a um jovem inteligente e bem formado,
com 2 ou 3 convulsões por ano, eventualmente mal motivado para os estudos e não
conseguindo obter trabalho, se atribua o estatuto de deficiente só para que
entrem mais uns euros no escasso rendimento familiar.
3. SEGUROS
As pessoas com epilepsia que pretendem fazer um contrato
de seguro de acidentes pessoais ou de vida, são obrigadas pelas companhias
seguradoras a preencher um inquérito de saúde, muitas vezes realizado ao balcão
de um banco ou em outro local e, regra geral, sem a devida informação.
Mais uma vez a discriminação acontece quando o tomador do
seguro refere que sofre duma doença cardiovascular, de epilepsia ou outra. Pelo
que a solução mais simples é a de não assumir a doença e omitir esse facto à
contraparte. Nada de mais errado!
A pessoa que sofre de epilepsia deve assumir a sua
condição e não negá-la. A declaração verdadeira habitualmente condiciona um
agravamento do prémio de seguro ou, por vezes, a recusa de contratar, o que
será legítimo. Em tais casos, os doentes devem pedir ao seu neurologista que
faça uma declaração formal sobre o seu caso específico com referência aos
riscos específicos de crise e/ou de acidente. Uma declaração destas pode ajudar
a inverter atitudes tomadas por companhias de seguros ainda influenciadas pelo
preconceito referido acima.
Ao invés, diz-nos a experiência que caso seja acionada a
apólice de seguro, a companhia seguradora imediatamente fará uma investigação
para verificar se o segurado padece de alguma doença, como é o caso da
epilepsia, caso em que declarará o contrato de seguro nulo, por inexatidões ou
omissões no preenchimento do inquérito de saúde, nos termos do art. 429.º do
Código Comercial.
Na prática o segurado além de perder o direito à
indemnização ou prestação que iria auferir, perde ainda todos os prémios de
seguro que tinha pago até essa altura, bem como poderá tornar-se uma situação
complicada aqueles casos em que o seguro de vida está associado a um crédito à
habitação.
4. ENSINO
Esta será talvez a área onde mais progressos se fizeram
nos últimos tempos.
Graças à real eficácia dos esquemas terapêuticos atuais –
após os anos 70 do século passado – as crianças com epilepsia deixaram
praticamente de ser rejeitadas na escola, pese embora o facto de os pais das
crianças que sofrem de epilepsia sentirem frequentemente dificuldade em aceitar
de modo adequado o seu filho doente (5).
Mesmo aquelas crianças que têm, além da epilepsia,
défices devidos a atrasos de desenvolvimento intelectual ou físico, têm
encontrado alguma resposta tanto dos serviços oficiais (embora em algumas
regiões insuficiente) como das associações de pais e amigos, o que é justo
salientar e homenagear.
Curiosamente ainda há médicos que aconselham os pais a
não revelarem na escola uma epilepsia diagnosticada a um filho. Perde-se assim
uma boa ocasião para ensinar aos professores e aos colegas da criança conceitos
corretos sobre as epilepsias e desperdiça-se uma excelente oportunidade para
desfazer na própria criança o tabu. O tabu – coisa de que se não fala ou que é
proibida, sagrada, interdita, perigosa – começa a gerar-se na criança que, não
percebendo o que tem, desconfia que deve ser coisa grave.
Outro dos problemas no ensino prende-se com os
pré-requisitos de admissão às Universidades e Escolas Superiores. A questão que
usualmente se coloca é a de saber se a epilepsia poderá ser considerada um
obstáculo ou um fator a ter em conta nos pré-requisitos de admissão às
Universidades.
Em termos de legislação, os pré-requisitos de admissão às
Universidades e Escolas Superiores encontram-se plasmados no art. 22.º do
Regime de Acesso e Ingresso no Ensino Superior (Dec.-Lei n.º 296-A/98, de 25 de
Setembro, alterado posteriormente pelos Dec.-Lei n.º 99/99, de 30 de Março,
Dec.-Lei n.º 26/2003, de 7 de Fevereiro, Dec.-Lei n.º 76/2004, de 27 de Março e
Dec.-Lei n.º 158/2004, de 30 de Junho), sendo resumidamente os seguintes:
1.º Ser titular de um curso de ensino secundário;
2.º Ter sido considerado apto no pré-requisito do grupo;
3.º Ter a nota mínima na prova de ingresso.
O pré-requisito que interessa abordar é o segundo, o da
aptidão do candidato no pré-requisito de grupo.
Neste particular este pré-requisito consiste numa seleção,
em que se garanta no candidato a ausência de deficiência psíquica, sensorial ou
motora, que interfira gravemente com a capacidade funcional e de comunicação
interpessoal a ponto de impedir a aprendizagem própria ou alheia. Como é
simples de perceber o candidato pode sofrer de epilepsia e estudar normalmente
como qualquer outro universitário, aprendendo e interrelacionando-se com os
seus colegas e professores.
Esta forma de comprovação do pré-requisito é feita
através de atestado médico, sob a forma de resposta a um questionário, nos
termos do Regulamento publicado como Anexo III da Deliberação n.º 2/2004 da Comissão
Nacional de Acesso ao Ensino Superior.
Esse questionário individual de saúde tem diversas
rubricas, nomeadamente, sobre o sistema músculo-esquelético, sobre a visão, a
audição, a sensibilidade, o sistema neuromuscular, o comportamento, a
comunicação interpessoal e a medicação.
Sabemos da heterogeneidade e das sequelas da doença em
cada uma das pessoas que padecem de epilepsia, contudo, ninguém melhor que o
médico está em condições de determinar se o candidato possui aptidões físicas e
psíquicas para se candidatar ao Ensino Superior.
No final desse questionário o médico atestará se o
candidato está ou não apto.
Em suma, referindo-se no atestado que o candidato com
epilepsia está apto a concorrer ao Ensino Superior não pode, nem deve existir
qualquer entrave ou barreira na candidatura.
Em termos jurídico-legais são estas, resumidamente, as
condicionantes dos pré-requisitos de admissão às Universidades e Escolas
Superiores, mesmo assim, deveremos estar alerta para formas obscuras, que por
vezes existem, de criar obstáculos à integração das pessoas que padecem de
epilepsia na sociedade e numa sua componente tão essencial como é o Ensino
Universitário.
5. CONDUÇÃO DE VEÍCULOS
As restrições genéricas assentes num diagnóstico genérico
são causa de injustiças, discriminações e resultam regra geral em sistemáticas
infrações da lei.
A lei portuguesa era o exemplo do que acaba de se referir
– a lei proibia a condução a pessoas com epilepsia e as pessoas com epilepsia
escondiam a sua condição para poderem conduzir. Esta realidade levava, e
aparentemente ainda há restos disso, a que pessoas que não deviam conduzir
conduzissem e a que muitos que podiam conduzir estivessem limitados nessa atividade
essencial dos nossos dias.
Em vários países europeus o processo de modificação da
legislação sobre condução de veículos sofreu evoluções mais ou menos aceleradas
e, em Portugal, só em 1998 foi finalmente publicada uma legislação que
diferencia as situações consoante elas sejam ou não fator de risco.
A Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) e a
Agência Internacional para a Epilepsia (IBE) (6) têm procurado
influenciar os decisores europeus a nível da Comissão Europeia e os decisores
nacionais tendo em vista o estabelecimento de normas similares neste grande
espaço económico e social. As tradições e as diferenças culturais não têm
permitido que todos sigam o mesmo percurso. Embora a União Europeia tenha
publicado em 1991 uma Diretiva que deveria estar transcrita para o direito português
passados dois anos, essa Diretiva ficou aquém do que a Inglaterra (7)
e a Holanda, por exemplo, já praticavam.
A legislação atual em Portugal sobre as limitações de
saúde para a condução está regulada pelo Dec.-Lei n.º 45/2005, de 23 de
Fevereiro que transpõe uma outra Diretiva europeia de 2000. Assim, tal como
desde 1998, a presença de algumas doenças do sistema nervoso (incluindo a
epilepsia) continua a ser incompatível com o exercício de condução de veículos
a motor. O referido decreto prevê que, no caso de condutores de veículos
ligeiros, “a carta de condução pode ser emitida ou renovada” mas a autoridade
de saúde “julgará da situação da epilepsia ou de outras perturbações da
consciência, da sua forma e sua evolução clínica (não ter havido crises desde
há dois anos, por exemplo), do tratamento seguido e dos resultados
terapêuticos”. Quanto aos condutores de veículos pesados e profissionais, a
“carta de condução não deve ser emitida ou renovada a qualquer candidato ou
condutor que apresente ou possa apresentar crises de epilepsia”.
A questão do tempo de controlo das crises tem levantado
algumas dúvidas e suscitado alguma polémica. Por um lado, está a possibilidade
de o doente esconder do médico a existência de crises e, por outro, o receio
que o médico tem de, ajudando à concessão de direito a conduzir, estar a
introduzir um risco demasiado grande para o seu doente e para a sociedade.
É neste desiderato que entra em jogo a confidencialidade
e a relação médico-doente. Só mentirá o doente que não confia no seu médico. Só
estando a par da frequência das crises o médico pode corrigir as suas propostas
de tratamento. Importa, pois, estabelecer uma relação com base em informações
verdadeiras para que seja útil ao doente.
O clínico deve ser capaz de convencer o seu doente quando
achar que ele não está em condições de conduzir. O segredo profissional deve
ser respeitado o mais possível. Antes de o quebrar, por razões ponderosas e de
interesse público, pode ainda o médico usar o argumento de que, caso continue a
conduzir e caso tenha um acidente, não poderá contar com a sua colaboração para
o ajudar a fugir às responsabilidades. Há ainda o argumento de que as
companhias seguradoras hão de fazer as suas investigações e descobrir que algo
de errado se passou.
É por essa razão que atualmente, os impressos para a
primeira carta já têm uma declaração do candidato onde este afirma, sob
compromisso de honra, que são verdadeiras as informações prestadas ao
examinador. Essa pode ser uma fórmula que o médico deve utilizar quando emitir
um atestado para apoiar uma revalidação em pessoa com epilepsia controlada há
mais de 2 anos, ou seja, pedir ao interessado que assine uma declaração similar
no próprio atestado médico.
Concluiremos, por fim, que a epilepsia
não é um mal tout court que deva ser escondido ou ocultado a “sete
chaves”. Na vida em sociedade, a informação e a transmissão da informação são fundamentais
para a defesa da dignidade da pessoa humana e, em particular, da defesa das
pessoas que padecem de epilepsia. Saber usar essa informação é fundamental na
defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais para que a
discriminação social não vingue e se prossigam os ideais duma sociedade mais
justa e fraterna.
com Paula Breia
in Livro Básico da Epilepsia, pp. 111-9, LPCE (2007)
1. Introdução
Ao longo dos
tempos, muitos têm sido os termos usados para descrever crises e epilepsia. A
proliferação de palavras descritivas conduziu a alguma confusão desnecessária
quer entre os doentes quer entre os próprios técnicos de saúde. Neste capítulo
revê-se a terminologia e a classificação das crises e dos síndromos Epiléticos.
A palavra
crise é frequentemente usada de modo vago para descrever um acontecimento súbito,
catastrófico, especialmente se a sua origem precisa é desconhecida. Outros
termos são usados com o mesmo significado como desmaio ou ataque. Neste livro,
a crise epilética é definida como “uma ocorrência de sinais e/ou
sintomas, limitada no tempo, resultante de atividade neuronal cerebral anómala
e excessiva ou síncrona”1.
A maioria das
crises não é epilética, isto é, não tem uma origem primariamente cerebral. As
crises não epiléticas podem ser orgânicas ou psicogénicas. As crises não epiléticas
orgânicas traduzem uma resposta do sistema nervoso a um distúrbio externo, como
por exemplo a hipoxia, a febre, a hipoglicemia ou a ação de tóxicos. As crises
não epiléticas psicogénicas são frequentemente uma reação ao stress psíquico.
Um dos mais
importantes desenvolvimentos da epileptologia foi a adoção das Classificações
Internacionais das Crises (1981)2 e dos Síndromos Epiléticos (1989)3 pela Liga Internacional contra a Epilepsia.
O esquema
central da classificação das crises é o reconhecimento de duas categorias principais:
as que se iniciam numa região específica do cérebro (parciais ou focais) e as
que afetam globalmente todo o cérebro desde o início (generalizadas).
Adicionalmente às características clínicas, o eletroencefalograma (EEG) é
complementar na classificação das crises: as parciais têm descargas focais,
enquanto as generalizadas apresentam apenas descargas generalizadas.
As crises epiléticas
surgem portanto de áreas cerebrais distintas e são causadas por uma disfunção
global dos mecanismos bioquímicos.
As crises epiléticas
distinguem-se das não epiléticas fundamentalmente por serem estereotipadas e
repetitivas, faltando-lhes a modulação típica do comportamento voluntário. Por
exemplo, uma crise tónica envolve contração máxima muscular, seguida de
relaxamento, repetindo-se o mesmo ciclo várias vezes por segundo. Trata-se de
um padrão de movimento muito primitivo que não cumpre nenhuma função útil, em
contraste com a atividade habitualmente complexa e modulada que o mesmo grupo
muscular é capaz de desempenhar.
As crises
tónico-clónicas generalizadas podem sê-lo desde o início ou evoluírem de crises
focais que entretanto se propagaram aos dois hemisférios cerebrais. Esta
distinção é importante porque acarreta decisões terapêuticas e prognósticos
diferentes.
Mais
frequentes do que as crises tónico-clónicas generalizadas são as crises focais
ou parciais. Estas podem ser simples ou complexas, consoante esteja conservada
ou alterada a corrente de consciência do doente. O primeiro tipo pode evoluir
para o segundo e ambos para crises tónico-clónicas secundariamente
generalizadas.
2.
Classificação das Crises Epiléticas
2.1. Crises
Focais ou Parciais
As crises
focais podem apresentar-se de modos diferentes: com sinais motores e/ou
sintomas somatossensitivos, sensoriais, autonómicos ou psíquicos. A pessoa
mantém-se consciente enquanto o fenómeno ocorre; movimentos clónicos rápidos de
um membro ou da hemiface ou versivos da cabeça ou do tronco (crise motora);
sensação tátil, parestesias, flashes ou distorções visuais, sintomas auditivos,
olfativos, gustativos ou vertiginoso (crise somatossensorial); sensação
epigástrica, sudorese, “flushing”, piloereção, midríase (crise autonómica); os
sintomas psíquicos incluem medo, raiva, estados crepusculares e sensações de
“déjà vu” ou de “déjà vécue” (crise psíquica). Estes episódios são por vezes
difíceis de distinguir de fenómenos psiquiátricos. No entanto, as crises epiléticas
ocorrem geralmente sem aviso prévio, sem precipitantes conhecidos, duram menos
de um minuto e geralmente em doentes sem patologia psiquiátrica prévia (embora
possam coexistir).
Um indivíduo com crises parciais pode ter um comportamento aparentemente adequado, interagir até com o meio circundante, mas pode estar também desajustado da realidade, não entendendo o que se passa consigo nem ao seu redor e não memorizando o acontecimento. Por vezes é difícil saber até que ponto há perturbação da consciência e quando ocorrem manifestações complexas (daí o ainda usado termo de crises parciais complexas), isso deve-se a alteração do funcionamento dos lobos temporais mesiais, dos lobos orbitofrontais ou em áreas mais generalizadas do cérebro. As crises parciais complexas eram chamadas, no passado, “crises psicomotoras” e “equivalentes Epiléticos”, termos vagos e imprecisos que foram abandonados. Também foram designadas por “crises do lobo temporal”, mas podem ter outras origens, como vimos. Pela sua duração, geralmente breve, confundem-se por vezes com as ausências e chegaram a ser designadas por “ausências do lobo temporal”. Por conseguinte, todos estes termos imprecisos ou errados devem ser abandonados do nosso léxico quando nos queremos referir a uma crise parcial complicada de automatismos ou sintomas vivenciais. Estas crises duram geralmente de alguns segundos a poucos minutos, seguidos de um período de confusão mental e, quase sempre, de amnésia para os acontecimentos ocorridos durante a crise. Os automatismos que por vezes acompanham estas crises – movimentos simples repetitivos ou incluindo comportamentos estranhos – raramente têm um seguro valor localizador da origem do foco epilético.
Qualquer tipo
de crise focal pode evoluir para uma crise generalizada tónico-clónica. As
pessoas que sofrem de crises focais apresentam-se frequentemente ao clínico
após terem sofrido uma crise tónico-clónica generalizada secundária. Este será
o caso da maioria das crises ocorridas em adultos. Não deve, portanto, ser logo
assumido que uma crise é sempre primariamente generalizada. A história clínica
– preferencialmente com ajuda de testemunhas, se o doente não se recordar da
crise – e o exame neurológico fornecem pistas valiosas.
2.3. Crises
primariamente generalizadas
As crises
primariamente generalizadas podem ser convulsivas ou não convulsivas.
As ausências
são mais frequentes na infância e adolescência e manifestam-se por
interrupção breve da consciência, pestanejo, olhar parado e outros movimentos
faciais minor. Duram geralmente segundos a um minuto. No entanto, como
podem ocorrer várias vezes ao dia, em sucessão rápida, interrompendo a
continuidade das atividades em curso, acarretam frequentemente significativo
compromisso cognitivo. Apresentam um padrão eletroencefalográfico típico de
ponta-onda a 3 Hz.
As crises
mioclónicas caracterizam-se por movimentos musculares bruscos e rápidos
unilaterais ou bilaterais. A consciência nem sempre está alterada. Fazem
geralmente parte de síndromos Epiléticos específicos. A atividade mioclónica
pode no entanto ocorrer associada a outras doenças neurológicas (doença de
Creutzfeldt-Jakob, anoxia).
As crises
tónicas consistem em espasmos tónicos da musculatura axial e facial
associada a flexão das extremidades superiores e a extensão dos membros
inferiores. Podem surgir em qualquer idade, mas são mais frequentes nas
crianças e resultam geralmente em queda.
As crises clónicas, também mais frequentes em crianças, assemelham-se a mioclonias, mas associam-se sempre a perda de vigília e o padrão de repetição do movimento é mais lento que nas mioclonias.
As crises atónicas são caracterizadas por perda súbita do tónus dos músculos posturais, resultando invariavelmente em queda, sem qualquer aviso prévio. Geralmente duram segundos e associam-se geralmente a perda da consciência. São frequentes sobretudo em crianças com síndromo de Lennox-Gastaut. Por vezes é difícil a distinção entre crises tónicas e atónicas.
Até agora
abordámos a classificação das crises epiléticas que são afinal um sintoma inespecífico
de várias doenças do sistema nervoso central, cujo diagnóstico deve ser
aprofundado. O clínico deve assim tentar determinar qual o síndromo Epilético
subjacente, o que tem implicações diretas no tratamento e no prognóstico. A
Liga Internacional contra a Epilepsia (LICE) desenvolveu (2001)4 uma nova proposta de classificação das epilepsias e dos síndromos
Epiléticos na tentativa de melhor orientar o diagnóstico da situação patológica
subjacente. Muitos destes síndromos têm uma idade própria de início e
características clínicas e eletroencefalográficas específicas. Sendo embora
muito usada a classificação de 1989, esta manifestou-se no entanto insuficiente
ao longo dos anos quer porque alguns síndromos não encontravam lugar na
classificação, quer porque a evolução do conhecimento genético e neurofisiológico
deu origem a novos síndromos não facilmente classificáveis. Surgiu então uma
proposta de nova classificação que é aqui abordada.
Epilepsia,
neste livro, define-se como um “distúrbio do cérebro caracterizado por uma predisposição
para a ocorrência persistente de crises epiléticas e pelas consequências neurobiológicas,
cognitivas, psicológicas e sociais associadas” 1.
O primeiro
passo na identificação de um síndromo Epilético é a identificação correta do tipo
de crise que a pessoa apresenta. Um síndromo Epilético pode ser
caracterizado por um só tipo de crise (ex: epilepsia de ausências juvenil
apenas com ausências) ou mais de que um (ex.: epilepsia mioclónica juvenil
incluindo mioclonias, ausências e crises tónico-clónicas generalizadas).
Na nova
classificação da LICE, a primeira distinção é baseada no tipo de crise, focal
ou generalizada. Os síndromos focais são frequentemente causados por lesões
identificáveis, enquanto os generalizados são idiopáticos ou primários,
isto é de causa desconhecida, muitos deles genéticos.
Muitas das
causas da epilepsia são identificáveis e permitindo classificá-las como secundárias
ou sintomáticas. O termo criptogénico (não consensual na
nova proposta de classificação) é usado quando se desconhece a etiologia,
admitindo-se contudo uma causa subjacente ainda não identificada.
Para além
do(s) tipo(s) de crise(s) e da etiologia outros fatores são determinantes na identificação
de um síndromo Epilético: a história familiar, o EEG ictal e interictal, os
exames de imagem, em especial a Ressonância Magnética (RM) encefálica, a
resposta à terapêutica e a história natural da doença.
3.1.
Síndromos Epiléticos Focais
Os síndromos
focais são descritos como idiopáticos ou sintomáticos. Na categoria idiopática
(possivelmente genética), foram identificados apenas alguns síndromos
específicos com aparecimento na infância e características clínicas e EEG
próprias. Vários síndromos sintomáticos foram identificados.
3.1.1.
Idiopáticos
Epilepsia
benigna da infância com pontas centro-temporais (antiga epilepsia rolândica) é um
síndromo frequente, correspondendo a 25% das epilepsias em idade escolar.
Inicia-se entre os 3 e os 13 anos. As crises têm um início focal simples,
geralmente motor ou sensitivo com início numa hemiface. Ocorrem geralmente ao
adormecer e generalizam frequentemente para crise tónico-clónica generalizada.
A criança tem exame neurológico normal e não apresenta doenças associadas. O
EEG é típico e revela pontas e ondas abruptas de grande amplitude na região
central ou centro-temporal, sobretudo durante a sonolência. A clínica e o EEG
são tão característicos e diagnósticos que os exames de imagem são
habitualmente dispensados. A etiologia é genética, autossómica dominante para o
“traço” eletroencefalográfico, embora menos de 25% das pessoas com as
alterações elétricas venham a ter crises. O prognóstico é excelente, mesmo sem
tratamento e a maioria dos jovens não apresenta crises depois dos 15 anos.
Epilepsia
da infância com pontas occipitais é muito mais rara, embora sub-identificada. É caracterizada
por crises diurnas de experiências visuais, seguidas de crises parciais complexas.
Após a crise o doente tem frequentemente uma cefaleia. O EEG mostra descargas bilaterais
de ponta-onda de grande amplitude na região occipital. A evolução é favorável.
3.1.2.
Sintomáticos
As epilepsias
sintomáticas focais são as mais frequentes nos adultos e têm múltiplas causas
identificáveis (vasculares, infeciosas, tumorais, degenerativas, congénitas,
traumáticas e criptogénicas). Apesar das causas diversas, as crises são
geralmente focais e, se não tratadas, progridem para crises tónico-clónicas
secundariamente generalizadas. Portanto, a fenomenologia da crise dirige a
atenção do clínico para uma patologia identificável e potencialmente tratável,
mas nada acrescenta quanto a essa etiologia, que deve ser investigada pelos
meios complementares de diagnóstico disponíveis. Nos últimos anos a RM de alta
resolução permitiu caracterizar melhor alguns quadros como a esclerose mesial
temporal e revelar a etiologia de síndromos que eram classificados como
criptogénicos, identificando por exemplo heterotopias e displasias corticais.
3.2.
Epilepsias e Síndromos Epiléticos Generalizados
As epilepsias
generalizadas são mais comuns em idade pediátrica. Alguns síndromos idiopáticos
(genéticos) têm vindo a ser identificados recentemente e mapeados
geneticamente, cimentando o conceito de síndromos identificáveis específicos.
3.2.1.
Idiopáticos com início relacionado com a idade
Convulsões
benignas neonatais familiares constituem um síndromo raro caracterizado por crises
generalizadas que ocorrem durante a primeira semana de vida. Deve ser
diferenciado de uma longa lista de crises neonatais sintomáticas graves. Existe
uma história familiar inequívoca e as crises remitem espontaneamente após
alguns dias. Foi identificada uma deleção no cromossoma 20q13.3 e o X dessa
região codifica um canal de potássio, evidenciando assim uma relação clara
entre o produto do gene e o síndromo clínico.
Epilepsia
mioclónica benigna da infância é também um síndromo pouco frequente e é diferenciado por um
EEG com surtos de ponta-onda generalizados sobrepostos numa atividade elétrica
basal normal. A evolução é benigna, sem compromisso neurológico.
Outros tipos definidos pela localização e etiologia
Epilepsia
de ausências da infância (antigo “Pequeno-mal”) corresponde a 2 a 4% das crianças com
epilepsia. As suas características foram já descritas e o diagnóstico
diferencial é feito com crises parciais complexas breves. O EEG é típico e são
geralmente desnecessários estudos estruturais. Existe uma predisposição
genética forte e suspeita-se de um locus genético específico.
Epilepsia
mioclónica juvenil tem
o seu início na adolescência e é caracterizada por uma tríade de crises
(mioclónicas, ausências e tónico-clónicas generalizadas). As crises mioclónicas
são habitualmente matinais e envolvem as extremidades superiores. A queixa mais
comum é a falta de jeito matinal com quedas de objetos durante a higiene ou o
pequeno-almoço – que deve ser inquirida, pois é geralmente desvalorizada pelo
próprio e familiares – e exacerbada pelo stress. O diagnóstico é frequentemente
feito apenas quando ocorre uma crise tónico-clónica generalizada matinal. As
crises de ausências são por vezes difíceis de detetar e a pessoa pode não ter
todos os tipos de crises. A história clínica típica e o EEG são diagnósticos. O
síndromo deve ser diferenciado de outros com origem focal porque a terapêutica
a instituir é diferente.
3.2.2.
Sintomático e/ou Idiopático Este grupo de epilepsias generalizadas consiste numa
diversidade grande de síndromos clínicos, unidos por manifestações clínicas
semelhantes. Algumas crianças destes grupos têm causas identificáveis,
sintomáticas, enquanto noutras a etiologia é idiopática ou criptogénica. Ao
contrário do grupo anterior, no qual as crises ocorrem num contexto de
inteligência normal, neste o atraso mental é comum.
Síndromo
de West ou Espasmos Infantis inicia-se entre os 4 e os 12 meses. É caracterizado por um
espasmo que tipicamente consiste na flexão da cabeça, bacia e membros, com abdução
ou adução dos membros superiores. São rápidos (cerca de um segundo) e ocorrem
em salvas, por vezes dezenas por dia. As crianças têm um desenvolvimento
psicomotor normal até ao início dos espasmos, começando então a regredir ou a
não progredir. Cerca de 2/3 apresentam um padrão de hipsarritmia no EEG –
desorganização da atividade de base e sobreposição de pontas e de ondas lentas
difusas. O prognóstico depende da doença subjacente e da resposta à
terapêutica. O síndromo idiopático que responde rapidamente à terapêutica tem o
melhor prognóstico. Os que têm uma encefalopatia grave subjacente têm pior evolução.
A mortalidade é de 20% antes dos 5 anos de idade e 75% a 93% dos sobreviventes
têm atraso mental; 50% têm epilepsia mais tarde e metade destes evolui para um
Síndromo de Lennox-Gastaut.
Síndromo
de Lennox-Gastaut compreende
uma combinação de crises tónicas axiais, tónico-clónicas, ausências atípicas e
atónicas associadas a atraso mental e a EEG de ponta e onda lenta (<2,5 Hz).
O início ocorre entre os 1 e 8 anos de idade. É frequentemente refratário à
terapêutica médica.
3.3.
Epilepsias indeterminadas quanto à origem focal ou generalizada
Este grupo
incluiu vários síndromos pediátricos cuja natureza clínica não foi
completamente elucidada e que envolvem padrões clínicos e EEG com componentes
mistos de crises focais ou generalizadas. Compreende várias epilepsias
mioclónicas com atraso mental.
3.4. Síndromos Especiais
Este grupo
compreende situações em que as crises não ocorrem espontaneamente, mas são
desencadeadas por estímulos específicos. Ao contrário dos outros
síndromos descritos, o tratamento para estas situações consiste em evitar ou
estímulo e/ou tratar na fase de provocação. Neste grupo incluem-se também
pessoas que têm crises isoladas e que apresentam simplesmente um baixo limiar
epileptogénico.
Crises
relacionadas com algumas situações
Convulsões
febris ocorrem
dos 3 meses aos 5 anos em crianças que têm febre sem evidência de outras
causas. Há frequentemente uma história familiar de crises (8 % a 22% dos pais e
9% a 17% dos irmãos). Uma mutação na subunidade β1 do canal de sódio no
cromossoma 19q13.1 é a responsável pelo quadro em algumas famílias, embora
outros genes tenham sido já identificados. Os estudos de base populacionais
prospetivos indicam que as convulsões febris são relativamente benignas. Não se
associam a risco aumentado de atraso mental ou a compromisso neurológico. Cerca
de 3% das crianças podem vir a ter epilepsia pelos 7 anos e aproximadamente 7%
poderá ter crises pelos 25 anos. O risco de recorrência de convulsões febris é
de 34%, sendo maior nas crianças mais pequenas. O tratamento é, no entanto controverso.
Muitos neuropediatras não recomendam o tratamento crónico convulsões febris simples,
mas apenas o diazepam retal como preventivo na subida da temperatura.
4. Esquema
diagnóstico
Este trabalho pretende apresentar da forma mais simples possível uma realidade difícil e complexa. Na verdade, sob a palavra Epilepsia estão numerosas epilepsias muito diferentes entre si. A divisão dicotómica dos conceitos em chavetas ou o arrumo dos casos em gavetas é uma tarefa sempre dificultada pela existência de múltiplos fatores. Daí que tenhamos usado ainda muitos conceitos e termos das classificações antigas e tenhamos colocado em quadro as propostas da nova classificação de Engel4. Salientemos agora o principal contributo que a LICE apresenta – o conceito de esquema diagnóstico. Mais do que classificar cada caso, mais do que impor terminologias rígidas, embora necessárias, defende-se que o diagnóstico individual assenta ou deve assentar em cinco eixos:
O recurso à tecnologia informática pelos profissionais da
saúde é cada vez maior. As vantagens do arquivo e da circulação da informação
em suporte eletrónico são enormes. São óbvios os ganhos na clareza dos dados e
na velocidade de acesso, assim como na economia de meios.
Acresce que a entrada da informática se faz sentir cada
vez mais no interior do próprio ato médico com comprovadas mais-valias, entre
as quais o apoio à decisão, as implicações epidemiológicas e os avanços da
investigação clínica.
Na entrevista médica surge assim uma nova e incontornável
presença – o computador – o qual, por vezes, ganha um estatuto tal que se
interpõe perversamente entre o médico e o doente. Começam a surgir queixas de
utentes que manifestam incómodo por se sentirem, aparentemente, menos
importantes que o computador no decurso de uma consulta. Nalguns casos
extremos, não chega a haver verdadeiro diálogo, limitando-se a entrevista ao
preenchimento de formulários, sem espaço para o estabelecimento de uma comunicação
com empatia.
É conhecida de todos a importância da entrevista médica e
dos requisitos que ela deve ter – desde o utente se fazer acompanhar por pessoa
de sua livre escolha, passando pela dignidade do espaço onde se realiza, não
esquecendo a adequada importância do toque físico e terminando na garantia de
confidencialidade.
Para que isto tudo se verifique, o computador não é, nem
pode ser, um fator de perturbação. O seu uso não anula as exigências gerais da
boa consulta. O profissional deve fazer sentir ao seu interlocutor que a
atenção que temporariamente presta ao computador é feita no seu interesse e com
a sua anuência.
Assim, vimos recomendar que, na Instituição que V. Ex.ª
dirige, seja promovida a discussão ativa desta temática e adotadas medidas para
que o uso do equipamento informático não
cesse de crescer mas que, em paralelo, os profissionais
(médicos e outros) treinem e melhorem as posturas necessárias a evitar que o computador desumanize a entrevista. Para tal,
estamos a remeter para divulgação junto de todos os profissionais, pelos meios ao
Vosso dispor, o documento sobre “Cortesia” que se anexa.
CORTESIA
O direito a um tratamento cortês faz parte integrante do
primeiro direito da Carta dos Direitos e Deveres do Doente editada pela
Direção-Geral da Saúde: “O doente tem direito a ser tratado no respeito pela
dignidade humana”.
A cortesia é a arte de lidar com o outro,
usando os termos que melhor se adequam à pessoa e à circunstância.
Os adultos são tratados, em princípio, pelo
nome da sua preferência precedido de Senhor ou Dona. Os profissionais de saúde,
ao atender uma pessoa, procuram saber o nome por que esta prefere ser tratada
e, se tal ainda não tiver sido feito antes, assinalam essa preferência na capa
do processo ou ficha, para memória futura.
Quando se desconheça a preferência, os homens
são chamados pelo último nome e as senhoras pelo primeiro ou primeiros. Em
alternativa ou em ocasiões mais formais, são utilizados o primeiro e último
nome.
O tratamento por tu está limitado a crianças
ou jovens de acordo com as regras gerais da etiqueta, não esquecendo que há
jovens que se sentem melhor com um tratamento por você, pelo primeiro nome, sem
necessidade do uso de Senhor ou Dona. Os tratamentos pretensamente carinhosos
(como “avozinho”, “querida” ou “minha filha”) são evitados.
Quando se reconheça uma profissão geralmente
referida em tratamento coloquial, é sempre usado o título – exemplos: Doutor/a
(juízes, professores do ensino secundário, médicos, etc.), Engenheiro/a,
Enfermeiro/a, Arquiteto/a – precedido de Senhor ou Senhora, conforme for mais
adequado.
As expressões “faça favor”, “dê-me licença” e
outras equivalentes são usadas sem limites.
Os profissionais adotam medidas para que a sua
identificação e grupo profissional sejam facilmente reconhecidos por qualquer
utente.
Todos os profissionais zelam e contribuem para
que não haja barulhos desnecessários nos locais onde estão utentes e
providenciam ou mandam providenciar para que as condições de temperatura,
luminosidade e higiene geral das instalações não contribuam para agravar o
incómodo resultante de estar numa unidade de saúde.
Evita-se, sempre que possível, interromper uma
consulta ou uma conversa. Os profissionais, quando há interrupções, procuram
minimizar os seus efeitos.
Quando se registam atrasos na efetivação de atos
marcados, a apresentação de desculpas é feita, ainda que não caibam
responsabilidades diretas ao profissional envolvido. Sempre que adequado, é
dada uma explicação sumária que justifique a demora de um atendimento. Quando
há impedimentos temporários para atender uma pessoa, o profissional indica,
sempre que possível, o tempo previsto para a espera.
Perante uma reclamação nunca é negado ou
desencorajado o acesso ao Livro de Reclamações, embora seja tentado o possível
esclarecimento.
Quando se adivinham ou registam desacordos, a
busca dos entendimentos é sempre feita em ambiente que permita um mínimo de
privacidade.
O sorriso, longe de ser obrigatório, é
considerado um elemento crucial para prevenir ou atenuar desacordos. O mesmo se
aplica ao tom de voz e à postura adotada.
A cortesia e o bom senso são devidos mesmo
quando o utente não é cortês ou sensato.
Todo o atendimento começa por uma saudação e
uma postura de atenção personalizada. A passagem ao uso de equipamento
informático é sempre precedida de uma breve explicação da sua necessidade.
Sinapse, maio de 2007, n.º 1, vol. 7
Comunicação: Epilepsia e legislação
Resumo: A propósito dos direitos especiais que as pessoas com
epilepsia (PcE) têm, o autor desenvolve algumas explicações sobre o direito a
conduzir automóveis e as condições que a lei prevê. Depois de uma breve
referência aos antecedentes históricos sobre a matéria e ao panorama de outros
países, são referidas também as conhecidas limitações decorrentes de certas
formas de epilepsia e os deveres das PcE no que se refere à segurança
rodoviária. Aborda-se também a problemática do sigilo médico em contraponto com
o valor social da proteção da vida de terceiros. Relacionando a questão dos
atestados de incapacidade com a das declarações de aptidão, o autor dedica
algum tempo aos possíveis conflitos de interesse em que PcE pretendem usufruir,
ao mesmo tempo, dos benefícios derivados da incapacidade e dos direitos gerais
próprios de quem não tem limitações. São referidos exemplos de aposentação por
invalidez, benefícios fiscais e outros, desenvolvendo-se algumas considerações
sobre as especificidades que as Epilepsias condicionam no quotidiano das
pessoas, estejam elas no ativo ou não. A situação das PcE no que se refere à
necessidade de tomarem, na quase totalidade dos casos, medicação durante toda a
vida, leva o autor a tecer considerações sobre o regime de comparticipação do
Estado no preço dos medicamentos e a descrever os direitos nesse campo
existentes. Termina com palavras sobre o papel que o movimento associativo, em
especial a EPI pode ter no reivindicar responsável em defesa dos legítimos
interesses das PcE.
O presente texto é uma adaptação/actualização do que o autor publicou em 2000 no “Papel do Médico”, efémero jornal eletrónico, e é aqui apresentado a título de contribuição pessoal para uma reforma do nosso velho Código Deontológico, de onde foram extraídas as frases a azul.
O sigilo médico é condição essencial ao
relacionamento médico-doente, assenta no interesse moral, social e
profissional, pressupõe e permite uma base de verdade e de mútua confiança.
O médico deve guardar segredo de todos os
factos de que tenha conhecimento em resultado do exercício do seu mister, ou
por causa dele, e deve zelar para que os seus colaboradores
e colegas se conformem com as regras do segredo profissional,
cabendo-lhe esclarecer os membros da equipa de saúde quanto ao caráter
confidencial das informações clínicas.
O segredo profissional compreende,
especialmente, os factos revelados diretamente pela pessoa, por
outrem a seu pedido ou por terceiros com quem tenha contactado
durante a prestação de cuidados ou por causa dela; abrange também os
factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica ou de
terceiros e, ainda, os factos comunicados por outro profissional
obrigado, quanto aos mesmos, a segredo profissional.
A obrigação de segredo existe, quer o serviço
solicitado tenha ou não sido prestado, quer seja ou não remunerado, e é extensiva
a todas as categorias de doentes, qualquer que seja o estatuto do local ou da
entidade onde ocorre a relação médico-doente.
Excluem o dever de segredo profissional – para
além do consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu
representante legal (desde que a revelação não prejudique
terceiras pessoas com direito de manutenção do segredo) – o que
for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos
interesses do médico, não podendo, no entanto, o médico revelar mais do
que o necessário e sem prévia consulta ao Presidente da Ordem.
A verdade como base da relação médico-doente
O prognóstico e o diagnóstico devem, por
regra, ser sempre revelados ao doente, salvo se, por motivos
que, em sua consciência, julgue ponderosos, o médico entender não o dever fazer. Um prognóstico
fatal só pode ser revelado ao doente com as precauções aconselhadas pelo exato
conhecimento do seu temperamento, das suas condições específicas e da sua
índole moral.
Quando, por motivos que, em sua consciência, julgue ponderosos, o médico entender ocultar ao doente diagnóstico ou prognóstico fatais, é permitida, a título excecional, a sua revelação a familiar ou pessoa intimamente relacionada com o doente. No entanto, se tiver havido proibição expressa por parte do doente, o médico deve dar conhecimento desse facto à Comissão de Ética da instituição onde trabalhe ou, em alternativa, ao Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos.
A natureza essencial do sigilo
não é um valor absoluto
A obrigação do segredo profissional não impede
que o médico tome as precauções necessárias e promova ou participe em medidas
de defesa sanitária, indispensáveis à salvaguarda da vida e saúde de pessoas que
possam contactar com o doente, nomeadamente dos membros da sua família ou
outros conviventes. Depois de esgotados todos os esforços para obter o
consentimento do doente, é dever do médico proceder desse modo, mesmo que daí
resulte quebra de segredo médico. No entanto, a eventual quebra de segredo, em
caso de oposição expressa do doente, obriga a que o médico dê conhecimento do
facto à Comissão de Ética da instituição onde trabalhe ou, em alternativa, ao
Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos.
A participação a uma Comissão de Ética de qualquer quebra de segredo profissional deve ser feita antes da sua ocorrência ou, o mais tardar, nas 24 horas seguintes. Ao decidir revelar matéria de segredo profissional o médico deve estar preparado para explicar e justificar essa decisão.
O direito de acesso à
informação e o sigilo
O segredo médico deve igualmente ser
respeitado quando o médico tem de enviar doentes para entidades não vinculadas a
segredo profissional ou quando da cobrança (judicial ou extrajudicial)
de honorários.
No caso das entidades coletivas
prestadoras de serviços de saúde, públicas ou privadas, os diretores
médicos, os chefes de serviço e os médicos assistentes dos doentes
estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo profissional
quanto às informações clínicas que, constituindo objeto de segredo
profissional, constem do respetivo processo individual do doente ou
integrem bases de dados, seja qual for o suporte da informação, competindo-lhes
a identificação dos elementos dos respetivos processos clínicos que, não
estando abrangidos pelo segredo profissional, podem ser comunicados a
entidades, mesmo hierárquicas ou estranhas à instituição médica, que os tenham
solicitado.
Quando há um pedido de informações clínicas
feito por entidade que condiciona a concessão de benefícios ao conhecimento
daquelas, o médico deve, por sua vez, condicionar essa revelação ao consentimento
por parte do doente.
O médico que, nessa qualidade, seja
devidamente intimado como testemunha ou perito deverá comparecer no tribunal,
mas não poderá prestar declarações ou produzir depoimento sobre matéria de
segredo profissional.
Quando um médico alegue segredo profissional para não prestar esclarecimentos pedidos por entidade pública, deve solicitar à Ordem dos Médicos declaração que ateste a natureza inviolável do segredo em causa.
Atestados
Os atestados médicos, certificados,
relatórios ou declarações são documentos particulares de caráter pericial,
destinados a fazer fé perante terceiros, são assinados pelo seu autor de forma reconhecível,
só são emitidos a pedido do interessado, ou do seu representante legal, deles
devendo constar a menção desse pedido. No caso de atestados de doença, além da
correta identificação do interessado, devem afirmar, sendo verdade, a
existência de doença, a data do seu início, os impedimentos resultantes
e o tempo provável de incapacidade que determine; não devem
especificar o mal de que o doente sofre, salvo por solicitação expressa deste
e, nesse caso, o médico deve referir esse condicionalismo. Para
prorrogação do prazo de incapacidade deve proceder-se à emissão de novo
atestado. Constitui falta deontológica o facto de o médico emitir atestados de
complacência ou relatórios tendenciosos sobre o estado de saúde de qualquer pessoa.
É dever do médico relatar, por iniciativa
própria, sobre o internamento e sobre outros atos médicos major de que seja responsável,
informando o doente e fornecendo dados clínicos que assegurem a continuidade de
cuidados.