in Livro Básico da Epilepsia, pp. 355-61, LPCE (2007)
Por ter caráter crónico ou vitalício e por ter manifestações súbitas e mal explicadas, a epilepsia é, talvez, a condição médica que mais vezes se associa a implicações de âmbito social.
Este facto é por demais conhecido e reflete uma tradição
secular em que o "epilético" aparece ligado a forças ocultas e
estranhas que o impelem a movimentos violentos e assustadores.
Nas últimas décadas o conceito que as pessoas sem
formação científica têm a respeito da pessoa com epilepsia modificou-se
radicalmente. A Liga Portuguesa contra a Epilepsia terá, de algum modo,
contribuído para essa mudança através das suas ações de divulgação e informação
sobre a doença.
Apesar disso, subsiste na sociedade portuguesa, assim
como nas sociedades dos outros países europeus, um preconceito negativo em
relação à epilepsia que se traduz em várias áreas e comporta diversas
discriminações, em clara violação do princípio constitucional da igualdade que
emana do art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) (1).
São algumas destas áreas, cujas experiências riquíssimas temos contactado diretamente,
que trataremos de ora em diante.
1. EMPREGO
O acesso ao mundo laboral é consabidamente um percurso
complicado, atribulado e, acima de tudo, de perseverança. Hodiernamente, as
habilitações apenas não chegam, sendo necessário aliar outros fatores como a
idade, a experiência, a adequação do candidato à função e também a aptidão
física e psíquica do mesmo.
Ora, a pessoa com epilepsia esconde frequentemente a sua
condição quando se candidata a um emprego. E, por seu lado, o empregador que
entrevista candidatos a determinada função, classifica com extrema facilidade
como inapto ou inapropriado, o candidato que revele ter epilepsia. Esta conduta
discriminatória é, infelizmente, usual na nossa sociedade em que há tanta
ignorância nesta e noutras matérias de saúde pública.
Poderemos dizer que isto resulta de uma interpretação
alargada do conceito de epilepsia para o comum dos cidadãos, ou seja,
considera-se que toda a pessoa com epilepsia tem todos os componentes
considerados negativos para o trabalho e esquece-se como são variadas as formas
com que a epilepsia se apresenta. Será importante não esquecer que o candidato
a emprego não tem a obrigatoriedade de informar a entidade patronal da sua
epilepsia (2), a menos que esta influa decisivamente nas tarefas que
vai desempenhar, como poderemos constatar no art. 97.º, n.º 2 do Código do
Trabalho (Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto) “O trabalhador tem o
dever de informar o empregador sobre aspetos relevantes para a prestação da atividade
laboral.”.
Os valores constitucionais da reserva da intimidade da
vida privada e familiar e da proteção legal contra quaisquer formas de
discriminação do art. 26.º da CRP deverão prevalecer.
A par de casos de controlo completo sob medicação regular
existem epilepsias cuja frequência de crises é tão baixa que apenas acarretam
riscos mínimos, bem como há várias formas de epilepsia que têm crises tão
subtis que não interferem de todo com o desempenho de muitas tarefas e atividades.
A informação que importa passar, desde logo aos próprios
doentes e às suas famílias, é a de saberem se a perturbação de natureza epilética
que lhes foi diagnosticada interfere ou não com esta ou com aquela profissão.
Por outro lado, a entidade patronal dispõe hoje dos
exames médicos de admissão para aferir da aptidão ou não do candidato para a
prestação de trabalho, exames esses que se encontram estabelecidos no art. 245º
da Regulamentação do Código do Trabalho (Lei nº 35/2004, de 29 de Julho), por
remissão do art. 276º CT (3).
É sabido que, numa sociedade com taxas de desemprego
elevadas, as pessoas com desvantagens, ainda que pequenas, são as primeiras a
sofrer na competição do acesso ao trabalho. Por isso, a mensagem que é
necessário repetir é a de que, na seleção dum candidato a um emprego, a
primeira coisa a avaliar pela entidade patronal deve ser a aptidão, ou seja,
aferir se o candidato tem a formação necessária e se sabe realizar a tarefa, e
só após a aplicação desse critério se poderá escolher o melhor candidato entre
os melhores.
A grande maioria das profissões é acessível às pessoas
com epilepsia. As pessoas com epilepsia correm, regra geral, os mesmos riscos
quer trabalhem, quer não trabalhem, e a maioria prefere, naturalmente,
trabalhar (4).
2. REFORMA POR INVALIDEZ
A invocação de epilepsia como diagnóstico para obter a
reforma por invalidez, não falando dos casos em que à epilepsia estão
associados outros problemas (défices intelectuais ou motores), levanta muitas
vezes a pergunta sobre a razão por que uma situação que sempre existiu passa a
ser motivo para a invalidez. Também aqui a influência da situação social sobre
as motivações dos cidadãos é notória. Além disso, verifica-se que enquanto uns
médicos procuram insistentemente o controlo das crises e a adaptação dos
doentes às situações sem completo controlo, há outros que apoiam mais
facilmente a pretensão de obter algum ganho económico, cuidando menos de
avaliar se o “defeito” condiciona ou não a incapacidade real para o
trabalho.
Obviamente que muitos trabalhadores portugueses sofrem de
epilepsia e trabalham diariamente sem que tal afete a sua rentabilidade ou
ponha em risco a sua segurança laboral, contudo o agravamento da sua epilepsia
pode tornar impossível a manutenção da relação laboral quando põe em causa a
saúde do próprio e a segurança dos demais trabalhadores. Nesse caso, outra
solução não resta que não seja a reforma por invalidez.
Cada situação terá de ser avaliada em separado mas não
deixa de ser verdade que é chocante que, a um jovem inteligente e bem formado,
com 2 ou 3 convulsões por ano, eventualmente mal motivado para os estudos e não
conseguindo obter trabalho, se atribua o estatuto de deficiente só para que
entrem mais uns euros no escasso rendimento familiar.
3. SEGUROS
As pessoas com epilepsia que pretendem fazer um contrato
de seguro de acidentes pessoais ou de vida, são obrigadas pelas companhias
seguradoras a preencher um inquérito de saúde, muitas vezes realizado ao balcão
de um banco ou em outro local e, regra geral, sem a devida informação.
Mais uma vez a discriminação acontece quando o tomador do
seguro refere que sofre duma doença cardiovascular, de epilepsia ou outra. Pelo
que a solução mais simples é a de não assumir a doença e omitir esse facto à
contraparte. Nada de mais errado!
A pessoa que sofre de epilepsia deve assumir a sua
condição e não negá-la. A declaração verdadeira habitualmente condiciona um
agravamento do prémio de seguro ou, por vezes, a recusa de contratar, o que
será legítimo. Em tais casos, os doentes devem pedir ao seu neurologista que
faça uma declaração formal sobre o seu caso específico com referência aos
riscos específicos de crise e/ou de acidente. Uma declaração destas pode ajudar
a inverter atitudes tomadas por companhias de seguros ainda influenciadas pelo
preconceito referido acima.
Ao invés, diz-nos a experiência que caso seja acionada a
apólice de seguro, a companhia seguradora imediatamente fará uma investigação
para verificar se o segurado padece de alguma doença, como é o caso da
epilepsia, caso em que declarará o contrato de seguro nulo, por inexatidões ou
omissões no preenchimento do inquérito de saúde, nos termos do art. 429.º do
Código Comercial.
Na prática o segurado além de perder o direito à
indemnização ou prestação que iria auferir, perde ainda todos os prémios de
seguro que tinha pago até essa altura, bem como poderá tornar-se uma situação
complicada aqueles casos em que o seguro de vida está associado a um crédito à
habitação.
4. ENSINO
Esta será talvez a área onde mais progressos se fizeram
nos últimos tempos.
Graças à real eficácia dos esquemas terapêuticos atuais –
após os anos 70 do século passado – as crianças com epilepsia deixaram
praticamente de ser rejeitadas na escola, pese embora o facto de os pais das
crianças que sofrem de epilepsia sentirem frequentemente dificuldade em aceitar
de modo adequado o seu filho doente (5).
Mesmo aquelas crianças que têm, além da epilepsia,
défices devidos a atrasos de desenvolvimento intelectual ou físico, têm
encontrado alguma resposta tanto dos serviços oficiais (embora em algumas
regiões insuficiente) como das associações de pais e amigos, o que é justo
salientar e homenagear.
Curiosamente ainda há médicos que aconselham os pais a
não revelarem na escola uma epilepsia diagnosticada a um filho. Perde-se assim
uma boa ocasião para ensinar aos professores e aos colegas da criança conceitos
corretos sobre as epilepsias e desperdiça-se uma excelente oportunidade para
desfazer na própria criança o tabu. O tabu – coisa de que se não fala ou que é
proibida, sagrada, interdita, perigosa – começa a gerar-se na criança que, não
percebendo o que tem, desconfia que deve ser coisa grave.
Outro dos problemas no ensino prende-se com os
pré-requisitos de admissão às Universidades e Escolas Superiores. A questão que
usualmente se coloca é a de saber se a epilepsia poderá ser considerada um
obstáculo ou um fator a ter em conta nos pré-requisitos de admissão às
Universidades.
Em termos de legislação, os pré-requisitos de admissão às
Universidades e Escolas Superiores encontram-se plasmados no art. 22.º do
Regime de Acesso e Ingresso no Ensino Superior (Dec.-Lei n.º 296-A/98, de 25 de
Setembro, alterado posteriormente pelos Dec.-Lei n.º 99/99, de 30 de Março,
Dec.-Lei n.º 26/2003, de 7 de Fevereiro, Dec.-Lei n.º 76/2004, de 27 de Março e
Dec.-Lei n.º 158/2004, de 30 de Junho), sendo resumidamente os seguintes:
1.º Ser titular de um curso de ensino secundário;
2.º Ter sido considerado apto no pré-requisito do grupo;
3.º Ter a nota mínima na prova de ingresso.
O pré-requisito que interessa abordar é o segundo, o da
aptidão do candidato no pré-requisito de grupo.
Neste particular este pré-requisito consiste numa seleção,
em que se garanta no candidato a ausência de deficiência psíquica, sensorial ou
motora, que interfira gravemente com a capacidade funcional e de comunicação
interpessoal a ponto de impedir a aprendizagem própria ou alheia. Como é
simples de perceber o candidato pode sofrer de epilepsia e estudar normalmente
como qualquer outro universitário, aprendendo e interrelacionando-se com os
seus colegas e professores.
Esta forma de comprovação do pré-requisito é feita
através de atestado médico, sob a forma de resposta a um questionário, nos
termos do Regulamento publicado como Anexo III da Deliberação n.º 2/2004 da Comissão
Nacional de Acesso ao Ensino Superior.
Esse questionário individual de saúde tem diversas
rubricas, nomeadamente, sobre o sistema músculo-esquelético, sobre a visão, a
audição, a sensibilidade, o sistema neuromuscular, o comportamento, a
comunicação interpessoal e a medicação.
Sabemos da heterogeneidade e das sequelas da doença em
cada uma das pessoas que padecem de epilepsia, contudo, ninguém melhor que o
médico está em condições de determinar se o candidato possui aptidões físicas e
psíquicas para se candidatar ao Ensino Superior.
No final desse questionário o médico atestará se o
candidato está ou não apto.
Em suma, referindo-se no atestado que o candidato com
epilepsia está apto a concorrer ao Ensino Superior não pode, nem deve existir
qualquer entrave ou barreira na candidatura.
Em termos jurídico-legais são estas, resumidamente, as
condicionantes dos pré-requisitos de admissão às Universidades e Escolas
Superiores, mesmo assim, deveremos estar alerta para formas obscuras, que por
vezes existem, de criar obstáculos à integração das pessoas que padecem de
epilepsia na sociedade e numa sua componente tão essencial como é o Ensino
Universitário.
5. CONDUÇÃO DE VEÍCULOS
As restrições genéricas assentes num diagnóstico genérico
são causa de injustiças, discriminações e resultam regra geral em sistemáticas
infrações da lei.
A lei portuguesa era o exemplo do que acaba de se referir
– a lei proibia a condução a pessoas com epilepsia e as pessoas com epilepsia
escondiam a sua condição para poderem conduzir. Esta realidade levava, e
aparentemente ainda há restos disso, a que pessoas que não deviam conduzir
conduzissem e a que muitos que podiam conduzir estivessem limitados nessa atividade
essencial dos nossos dias.
Em vários países europeus o processo de modificação da
legislação sobre condução de veículos sofreu evoluções mais ou menos aceleradas
e, em Portugal, só em 1998 foi finalmente publicada uma legislação que
diferencia as situações consoante elas sejam ou não fator de risco.
A Liga Internacional contra a Epilepsia (ILAE) e a
Agência Internacional para a Epilepsia (IBE) (6) têm procurado
influenciar os decisores europeus a nível da Comissão Europeia e os decisores
nacionais tendo em vista o estabelecimento de normas similares neste grande
espaço económico e social. As tradições e as diferenças culturais não têm
permitido que todos sigam o mesmo percurso. Embora a União Europeia tenha
publicado em 1991 uma Diretiva que deveria estar transcrita para o direito português
passados dois anos, essa Diretiva ficou aquém do que a Inglaterra (7)
e a Holanda, por exemplo, já praticavam.
A legislação atual em Portugal sobre as limitações de
saúde para a condução está regulada pelo Dec.-Lei n.º 45/2005, de 23 de
Fevereiro que transpõe uma outra Diretiva europeia de 2000. Assim, tal como
desde 1998, a presença de algumas doenças do sistema nervoso (incluindo a
epilepsia) continua a ser incompatível com o exercício de condução de veículos
a motor. O referido decreto prevê que, no caso de condutores de veículos
ligeiros, “a carta de condução pode ser emitida ou renovada” mas a autoridade
de saúde “julgará da situação da epilepsia ou de outras perturbações da
consciência, da sua forma e sua evolução clínica (não ter havido crises desde
há dois anos, por exemplo), do tratamento seguido e dos resultados
terapêuticos”. Quanto aos condutores de veículos pesados e profissionais, a
“carta de condução não deve ser emitida ou renovada a qualquer candidato ou
condutor que apresente ou possa apresentar crises de epilepsia”.
A questão do tempo de controlo das crises tem levantado
algumas dúvidas e suscitado alguma polémica. Por um lado, está a possibilidade
de o doente esconder do médico a existência de crises e, por outro, o receio
que o médico tem de, ajudando à concessão de direito a conduzir, estar a
introduzir um risco demasiado grande para o seu doente e para a sociedade.
É neste desiderato que entra em jogo a confidencialidade
e a relação médico-doente. Só mentirá o doente que não confia no seu médico. Só
estando a par da frequência das crises o médico pode corrigir as suas propostas
de tratamento. Importa, pois, estabelecer uma relação com base em informações
verdadeiras para que seja útil ao doente.
O clínico deve ser capaz de convencer o seu doente quando
achar que ele não está em condições de conduzir. O segredo profissional deve
ser respeitado o mais possível. Antes de o quebrar, por razões ponderosas e de
interesse público, pode ainda o médico usar o argumento de que, caso continue a
conduzir e caso tenha um acidente, não poderá contar com a sua colaboração para
o ajudar a fugir às responsabilidades. Há ainda o argumento de que as
companhias seguradoras hão de fazer as suas investigações e descobrir que algo
de errado se passou.
É por essa razão que atualmente, os impressos para a
primeira carta já têm uma declaração do candidato onde este afirma, sob
compromisso de honra, que são verdadeiras as informações prestadas ao
examinador. Essa pode ser uma fórmula que o médico deve utilizar quando emitir
um atestado para apoiar uma revalidação em pessoa com epilepsia controlada há
mais de 2 anos, ou seja, pedir ao interessado que assine uma declaração similar
no próprio atestado médico.
Concluiremos, por fim, que a epilepsia
não é um mal tout court que deva ser escondido ou ocultado a “sete
chaves”. Na vida em sociedade, a informação e a transmissão da informação são fundamentais
para a defesa da dignidade da pessoa humana e, em particular, da defesa das
pessoas que padecem de epilepsia. Saber usar essa informação é fundamental na
defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais para que a
discriminação social não vingue e se prossigam os ideais duma sociedade mais
justa e fraterna.
(1) Nas palavras de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA “…São igualmente ilícitas as diferenciações de tratamento fundadas em outros motivos, sempre que eles se apresentem como contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou impertinentes.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 128).
(2) A epilepsia não consta das doenças de declaração obrigatória previstas na Portaria nº 1071/98, de 31/12, de acordo com o Código da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças. Sobre este assunto, veja-se, PAULA QUINTAS e HÉLDER QUINTAS, Da prática laboral à luz do novo Código do Trabalho, Almedina, 2004, pp. 56-57.
(3) Para mais desenvolvimentos, veja-se, TERESA ALEXANDRA COELHO MOREIRA, Da esfera privada do trabalhador e o controlo do empregador, Coimbra Editora, 2004, pp. 214-217. (4) Manual para treino - Epilepsia e Emprego. Editores: Jim Troxell e Rupprecht Thorbecke, Segunda Comissão sobre o Emprego do IBE, Abril 1992. Publicado por "The International Bureau for Epilepsy", P.O. Box 21, 2100 AA Heemstede, The Netherlands.
(5) SOFIA MOREIRA, DULCE SOEIRO, RAQUEL MOREIRA e RUI MOREIRA, Boletim da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia, suplemento 2, 1986.
(6) II European Working Group On Driving And Epilepsy - International Bureau For Epilepsy / European Union Association, 14-15/3/1996.
(7) Medical Aspects of Fitness To Drive - A guide for Medical Practitioners, Ed.: Dr J. F. Taylor -The Medical Commission on Accident Prevention -Fifth edition -1995.