O melhor lugar para morrer:
uma reflexão sobre dignidade
e contexto
Bianca Sakamoto R. Paiva, Talita C. O. Valentino, Harvey M. Chochinov*, Carlos
E. Paiva
Tradução espontânea para partilha sem fins
lucrativos do artigo
The best place to die: A reflection
on dignity and context
publicado em 29 dezembro 2025 na revista
Palliative & Supportive Care, Volume 24,
2026, e16
https://doi.org/10.1017/S1478951525101338
Os debates, investigações e reflexões sobre o local da morte têm sido, há muito tempo, centrais nos cuidados paliativos, onde são frequentemente considerados um indicador-chave de qualidade. Morrer em casa é frequentemente considerado o ‘padrão de excelência’ de uma boa morte (Tang e Bruera, 2020; Wachterman et al., 2022), representando um importante indicador de qualidade no fim da vida. Esta suposição é reforçada por profissionais de saúde, modelos de cuidados, políticas públicas e sistemas de saúde, que muitas vezes enquadram a morte em casa como o cenário ideal. No entanto, dados crescentes da investigação e da prática clínica (Tang e Bruera, 2020; Vidal et al., 2022; Wachterman et al., 2022) mostram que o melhor lugar para morrer não é universal. Não é, por definição, a casa, o hospital, o hospício ou qualquer outro local específico. É, antes, o local que se alinha com os valores, necessidades, preferências e circunstâncias do doente, refletindo fatores pessoais e contextuais. Por outras palavras, a questão não é tanto ‘onde’, mas sim ‘como’ permitimos que as pessoas morram, com segurança, significado e dignidade.
A preferência por morrer em casa tem sido historicamente
associada à autonomia, à dignidade e ao conforto de estar rodeado por entes queridos
num ambiente familiar (Higginson
et al., 2017; Pike et al., 2025). Como tal, esse ideal está profundamente enraizado nos modelos
de cuidados, enquadramentos políticos e discursos académicos dentro dos cuidados
paliativos. No entanto, essa noção – às vezes romantizada – muitas vezes não tem
em conta os desafios estruturais relacionados com o ambiente doméstico, incluindo
condições físicas inadequadas ou inseguras para necessidades complexas de cuidados;
restrições logísticas e sociais, como a falta de acesso a cuidados paliativos domiciliares
ou a ausência de cuidadores familiares treinados; tal como o fardo emocional imposto
às famílias que podem não se sentir preparadas para as responsabilidades do cuidar.
Essas realidades contextuais influenciam significativamente se morrer em casa é
realmente uma opção viável ou desejável para cada doente. Para alguns, o lar representa
amor e pertença; para outros, representa medo, isolamento e ausência de apoio profissional.
Num país em desenvolvimento como o Brasil, caracterizado
por desigualdades sociais, tabus culturais em torno da morte e acesso limitado aos
cuidados de saúde, a implantação dos cuidados paliativos torna-se especialmente
difícil. O país ocupa a 42.ª posição entre 80 no Índice Global de Qualidade da Morte,
refletindo grandes lacunas na disponibilidade e qualidade desses serviços.(1)
Num estudo longitudinal que publicámos recentemente
(Valentino et
al., 2023), observámos que
a forma como as conversas eram iniciadas sobre as preferências relativas ao local
de morte e os fatores que influenciavam essas preferências eram cruciais para promover
um diálogo significativo e facilitar a recolha de dados. Para apoiar este processo,
desenvolvemos e validámos um texto introdutório cuidadosamente redigido, concebido
para criar um ambiente acolhedor e ajudar a superar as barreiras iniciais da conversa:
Há um ditado
bem conhecido que diz que a única certeza na vida é que um dia todos nós vamos morrer.
Esse pensamento torna-se ainda mais tangível quando alguém é diagnosticado com uma
doença terminal, como o cancro. A medicina moderna esforça-se constantemente para
prolongar a vida e melhorar a sua qualidade. No entanto, em alguns casos avançados,
também tem de se concentrar em oferecer conforto e aliviar o sofrimento tanto dos
doentes como das suas famílias, respeitando sempre a sua autonomia em todas as fases
da vida.
Com base nessa premissa, de que a morte é uma
experiência inevitável para todos, os participantes foram convidados a refletir
sobre quais os fatores que consideravam mais importantes ao tomar decisões sobre
os seus momentos finais. As perguntas do inquérito incluíam opções de resposta estruturadas
e classificadas, bem como perguntas abertas. Os participantes foram incentivados
a considerar aspetos das suas próprias vidas, como redes de apoio familiar, condições
de moradia, status socioeconómico e acesso a serviços de saúde. A partir
dessa perspetiva, foram questionados sobre o local e as condições preferidas para
cuidados de fim de vida, caso a sua saúde se deteriorasse significativamente. Além
disso, as preferências foram exploradas em quatro cenários específicos: (1) deterioração clínica grave sem especificações
adicionais, (2)
deterioração clínica com sintomas
graves, (3) deterioração clínica com visitas domiciliares
e (4) deterioração clínica com visitas domiciliares
e sintomas graves. Os participantes também foram questionados sobre os locais onde
não gostariam de morrer em qualquer circunstância.
É importante enfatizar que tais preferências não
são estáticas; elas são dinâmicas e podem evoluir ao longo da doença. O local que
parece ideal no momento do diagnóstico pode não mais se alinhar com as necessidades
ou desejos do doente à medida que a morte se aproxima. A tomada de decisão, portanto,
requer o equilíbrio de várias considerações, incluindo o desejo de não se tornar
um fardo para a família, a necessidade de tratamento especializado dos sintomas,
a procura da privacidade, dignidade e paz espiritual, bem como preocupações emocionais,
como o medo da solidão ou do abandono, independentemente do ambiente.
Reconhecendo o binómio doente-família como um
elemento central nos cuidados paliativos, torna-se claro que as famílias enfrentam
os seus próprios desafios emocionais ao considerar a sua vontade e capacidade de
prestar cuidados no fim da vida. Muitas famílias experienciam um profundo esgotamento
emocional, culpa e, por vezes, angústia traumática. Nesse contexto, o modelo de
dignidade em doentes terminais de Chochinov (Chochinov et al., 2002) torna-se especialmente relevante, enfatizando
que a dignidade não é apenas uma experiência interna, mas sim algo que é construído
em conjunto com as relações com os outros. Determinar o melhor lugar para morrer,
portanto, envolve não apenas o que é importante para o doente, mas também o que
é sustentável e significativo para aqueles que prestam cuidados. Uma morte digna,
portanto, é relacional; ela existe no espaço entre alguém que está a morrer e alguém
que deseja permanecer.
Garantir uma morte digna não se pode reduzir
a padrões pré-definidos ou suposições sobre o local. O que realmente importa é que,
independentemente do ambiente, os cuidados sejam prestados de forma a promover conforto,
respeito, amor e dignidade. Em vez de nos concentrarmos em métricas como ‘morrer
em casa’, devemos considerar as circunstâncias, necessidades e preferências únicas
de cada pessoa. Em última análise, o melhor lugar para morrer é aquele onde a pessoa
se sente segura, apoiada e onde a sua dignidade é preservada até ao fim. <
__________________
* Department of Psychiatry, Research Institute of
Oncology and Hematology, Cancer Care Manitoba, Manitoba, Canada
GPQual – Research Group on Palliative Care and
Quality of Life – Barretos Cancer Hospital, Barretos, Brazil
(1)
NT: Portugal (2021) em 75.º lugar entre 180 países - J Pain Symptom Manage 2022;63: e419−e429
Referências
Chochinov, HM, Hack, T, McClement, S, et al. (2002) Dignity in
the terminally ill: a developing empirical model. Social Science & Medicine
54(3), 433–443. doi:10.1016/S0140-6736(02)12022-8.
Higginson, IJ, Daveson, BA, Morrison, RS, et al. (2017) Social and clinical determinants
of preferences and their achievement at the end of life: prospective cohort study
of older adults receiving palliative care in three countries. BMC Geriatrics 17, 271. doi:10.1186/s12877-017-0648-4.
Pike, TD, Sargent, MJ and Freeman, S (2025)
Motivations for choosing ‘home’ as one’s preferred place of death: a scoping review.
Palliative and Supportive Care 23, e102. doi:10.1017/S147895152500029X.
Tang, M and Bruera, E (2020) Hospital deaths a poor quality metric for
patients with cancer. JAMA Oncology 6(12), 1861–1862. doi:10.1001/jamaoncol.2020.1043.
Valentino, TCO, Paiva, CE, de Oliveira, MA, et al. (2023) Preference and actual place-of-death
in advanced cancer: prospective longitudinal study. BMJ Support Palliat Care 14(1), e1402–e1412.
doi:10.1136/spcare-2023-004299.
Vidal, M, Rodriguez-Nunez, A, Hui, D, et al. (2022) Place-of-death preferences
among patients with cancer and family caregivers in inpatient and outpatient palliative
care. BMJ Support Palliat Care 12(4), e501–e504. doi:10.1136/bmjspcare-2019-002019.
Wachterman, MW, Luth, EA, Semco, RS, et al. (2022) Where Americans die – is there really ‘no place like home’? New England Journal of Medicine 386(11), 1008–1010. doi:10.1056/NEJMp2112297.

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