30 junho 2024

Dupla efeméride

Dupla efeméride em dia incerto

490 anos, em 1534, o Auto de Mofina Mendes , de Gil Vicente, foi “representado ao excelente príncipe e muito poderoso rei dom João terceiro” e, 

60 anos, em 1964, foi representado no Festival de Teatro Universitário de Lisboa.

A Virgem era Fernanda Canossa e o José era eu (a foto mostra como começou e terminou a minha ‘fulgurante’ carreira de ator...). Mofina era Manuela Melo, a encenação e adaptação foi de António Pedro, Teatro Universitário do Porto, 1964.

24 junho 2024

Dia de S. João

Hoje é dia de São João

«E a propósito: alguém sabe explicar muito bem como é que de São João Batista, um anacoreta que viveu longos anos retirado nas agruras do deserto, onde jejuava frequentemente ou se alimentava somente de gafanhotos e mel silvestre, e a quem Herodes, a pedido de Salomé, mandou cortar a cabeça, como é que, perguntava eu, de um personagem tão austero se fez um santo galhofeiro, pimpão, amorudo e, até, brejeiro? [...] Pois, mas não há São João como o do Porto.» [Porto – Viagem ao Passado, Germano Silva. Porto Editora, 2013, p. 181]

São João Batista

«A recapitação de uma escultura de S. João Baptista do séc. XVIII, de que se desconhece o autor e a proveniência. Encontrava-se na Torre da Calçada de Pedro Pitões. Em 1974, a agitação que se viveu resultou na sua decapitação e exposição às intempéries. A cabeça foi recolhida no Seminário Maior e o corpo foi retirado mais tarde pela Câmara Municipal do Porto, já bastante danificado. Agora, descobertas as duas partes nos trabalhos de pesquisa para exposição, já restauradas pela Oficina de Restauro da Escola das Artes da Universidade Católica, vai proceder-se à “estranha” operação de devolver a cabeça ao mais célebre decapitado da História, nos jardins do Hospital de S. João.» Cinquentenário do Hospital de S. João

20 junho 2024

Quando os internos invocam "falsa doença"


Quando os internos invocam “falsa doença”
Vinay Prasad

Tradução espontânea do texto
When residents call out “fake sick”
publicado em 09.06.2024 na página Sensible Medicine

Afinal de contas, “é apenas um emprego”

Recentemente, ouvi falar de um programa de internato onde há o hábito de invocar “falsas doenças”. Por outras palavras, se um interno tiver um dia particularmente longo ou difícil, se sentir que precisa de descansar – mesmo na ausência de febre, arrepios, suores noturnos ou vómitos – diz que está “doente”. É interessante constatar que os falsos dias de baixa são geralmente ao fim de semana ou em dias adjacentes (segundas e sextas-feiras), e que este facto é muito mais frequente do que em anos anteriores.

É incrível como os tempos mudaram. Fiz a minha formação em medicina interna no Northwestern Medical Center, em Chicago, entre 2009 e 2012. Se alguma vez invocasse “falsa” doença, o meu diretor dava-me uma “valente sova”.

A doença “falsa” é algo sobre que, reconhecidamente, não temos dados públicos, mas é do conhecimento geral. Seria fácil deduzir os falsos dias de baixa analisando as taxas de doença por dia de calendário – como sugerido. A doença real não discrimina entre quarta-feira e sábado, mas a doença falsa sim. Os diretores de programas – especialmente de grandes programas – deveriam fazer esta análise nas suas equipas. Suspeito que muitos já o fizeram. Aposto que os programas onde este é problema cultural têm diretores que estão menos dispostos a estudá-lo.

Outros programas não têm uma cultura de doença “falsa”, mas têm dias de “saúde mental”. Um dia de saúde mental pode ser gozado por qualquer motivo e em qualquer altura e, como tal, é semelhante a um dia de doença “falsa” – uma diferença sem distinção.

No Reddit, há muitos postais interessantes em que os internos debatem esta prática.

Sou um interno de pediatria num programa de média a longa dimensão. Desde meados de dezembro, estive 12 semanas seguidas de serviço no internamento dos pisos gerais, no que é, obviamente, a época alta das doenças respiratórias. Os nossos horários tendem a ser uma mistura de 12 horas com 2 folgas e 6 horas com 1 folga. Alguns dos meus superiores encorajam a prática de tirar um dia de saúde mental. No entanto, o nosso sistema de apoio já está extremamente sobrecarregado, ao ponto de se estar a falar em dar a cada interno uma ou duas semanas extras de descanso. E, infelizmente, os casos de covid começaram a disparar na minha zona, por isso imagino que as coisas só vão piorar.
Qual é o sentimento geral em relação a tirar um “dia pessoal” ou de “saúde mental”? Qual é a melhor forma de o fazer? Ou não deve ser feito de todo?

Entre as respostas que me chamaram a atenção:

Vou contrariar a tendência óbvia – se precisas de um dia de folga, tira um dia de folga.
isto.é.apenas.um.emprego. Talvez o meu velho e cansado coiro já não se importe, mas, por amor de Deus, parem de se martirizar porque “o trabalho tem de ser feito” ou porque “alguém tem de fazer o que é preciso”
bem-vindo à vida real!
Se os vossos superiores estão a tentar fazer-vos isso, então é óbvio que já é uma coisa estabelecida.
O vosso bem-estar não é menos do que quaisquer deveres para com os doentes. Que se dane essa infeliz mentalidade.

Teria curiosidade em ler a candidatura dessa pessoa à faculdade de medicina. Esses textos contêm normalmente frases como “a medicina é uma vocação”, “uma profissão”, “as pessoas põem as suas vidas nas nossas mãos”, “é uma arte antiga e de confiança”. Pergunto-me como é que esse sentimento se transforma em “isto é apenas um emprego”.

Outra resposta chamou-me a atenção:

Dia de saúde mental? Basta dizeres que precisas de ir ao dentista como fazem todos…

Nos últimos 5 anos da minha carreira, nunca vi tantos estagiários a terem de ir ao dentista – uma epidemia de cáries que têm de ser resolvidas durante as visitas à enfermaria ou as consultas. Não é uma piada, é uma verdade: fui ao dentista antes de começar a faculdade de medicina e quando me tornei professor.

Um dos desafios da minha área de trabalho (oncologia) é o facto de experimentarmos toda a gama de emoções humanas numa única manhã. O primeiro doente é alguém com mieloma múltiplo, cujo cancro cresceu apesar de todas as terapias e agora vai certamente morrer. Temos de aconselhar essa mulher e a sua filha sobre esta notícia e sobre o que esperar. Depois, entramos numa sala e, 30 segundos mais tarde, temos de entrar no quarto de alguém com linfoma de Burkitt no abdómen, que jurávamos que ia morrer, mas que atingiu uma remissão completa e pode até estar curado.

Da agonia ao êxtase em menos de um minuto, e ambos os doentes precisam que eu esteja lá para eles – totalmente presente – emocionalmente disponível. Não há nenhum dia de saúde mental no meio, nem depois. Porque amanhã está agendado outro doente com leucemia recidivante, cuja doença está a explodir e não tem mais terapias disponíveis, e que quer falar comigo, e não com qualquer médico.

Tenho pena do estagiário que acaba o internato médico a pensar “isto é apenas um emprego” – algures pelo caminho não lhe mostrámos porque é que não é.

15 junho 2024

Ciberataques aos cuidados de saúde

Vol 403 May 25, 2024 2263

Ciberataques aos cuidados de saúde – uma ameaça crescente

Tradução do editorial do Lancet

Cyberattacks on health care—a growing threat

“O ciberataque da Change Healthcare é o incidente mais significativo e consequente do seu género contra o sistema de saúde dos EUA em toda a história”, afirma Rick Pollack, presidente e diretor executivo da American Hospital Association (AHA). O ciberataque de fevereiro deste ano ao maior sistema de faturação e pagamentos dos EUA levou a interrupções no processamento de receitas e nos serviços a milhões de doentes, atrasando o acesso a medicamentos e cuidados. Mesmo dois meses após o ataque, um inquérito da AHA revelou que muitas clínicas enfrentavam a possibilidade de encerramento devido à perda de receitas decorrentes de pedidos de indemnização não pagos, pondo em risco o acesso dos doentes aos serviços. Este ciberataque de grande envergadura veio mais uma vez realçar a ameaça crescente dos ciberataques à saúde. Sempre que os sistemas de saúde são atacados, a prestação de cuidados sofre atrasos e, inevitavelmente, põe em risco a segurança dos doentes. Em maio de 2017, o ataque global do software malicioso WannaCry perturbou mais de um terço dos hospitais do SNS inglês e quase 7 000 consultas foram canceladas. O pessoal médico não conseguiu aceder a quaisquer dados, não pôde prestar cuidados médicos e os serviços ambulatórios tiveram de ser cancelados. Para um doente individual, uma perturbação tão súbita pode ser angustiante e ter consequências graves, especialmente se os doentes estiverem, por exemplo, em unidades de cuidados intensivos ou precisarem de cuidados de imediatos. Os sistemas de saúde têm sob sua proteção uma enorme quantidade de informações sensíveis sobre os doentes. Mas quando estes sistemas são violados, os dados dos doentes podem ser roubados ou perdidos. Em maio de 2021, um ciberataque ao Ministério da Saúde e ao Health Service Executive (HSE) da Irlanda afetou mais de 80% da infraestrutura de informática e levou ao cancelamento de milhares de serviços, tendo sido roubados os dados pessoais de quase 100 000 pessoas. As perdas financeiras após um ciberataque podem ser consideráveis. Prevê-se que a pirataria informática contra a Change Healthcare nos EUA tenha custado entre 1 e 6 mil milhões de dólares. Estes ataques fazem parte de uma tendência crescente e alarmante de ciberataques contra os cuidados de saúde. O European Repository of Cyber Incidents registou um aumento global de 32 eventos em 2022 para 121 em 2023.

Os números estão a aumentar devido às crescentes vulnerabilidades dos sistemas de cuidados de saúde. Os registos de saúde eletrónicos, os dispositivos médicos, os serviços laboratoriais, as farmácias, os sistemas de apoio à decisão clínica e muitas outras aplicações e serviços estão interligados digitalmente e são utilizados por muitos utentes diferentes. A utilização de novas tecnologias digitais, como a mHealth, a telessaúde e as ferramentas de diagnóstico apoiadas por IA, acelerou durante a pandemia de COVID-19 e foi introduzida com pouca consideração pelas questões de segurança. Ao mesmo tempo, muitos prestadores e serviços de saúde ainda utilizam tecnologias e software desatualizados. Esta interligação torna os sistemas de cuidados de saúde um alvo fácil - os cibercriminosos só precisam de encontrar um ponto de entrada fraco para paralisar todo o sistema. À medida que aumentam as dependências das soluções digitais interligadas, aumenta também a necessidade de compreender os riscos. Mas há uma escassez de dados sistematicamente analisados para medir os riscos e vulnerabilidades específicos a nível local, o que torna muito mais difícil quantificar os danos diretos nos doentes e os dados perdidos. O setor da saúde está muito atrasado em relação à maioria dos setores de infraestruturas essenciais, como a energia, os transportes, a energia nuclear ou a água, no que respeita à investigação para compreender os riscos e desenvolver planos específicos para proteger, responder e recuperar de ciberataques. No caso da HSE Ireland, a incapacidade de compreender suficientemente os riscos da dependência tecnológica e a falta de planeamento prévio para tais eventos significou que se perdeu tempo e os cuidados de saúde foram desnecessariamente atrasados, prejudicando muitos doentes.

As vulnerabilidades mais graves nos cuidados de saúde dizem respeito aos recursos. O último inquérito da Healthcare Information and Management Systems Society mostra que as organizações de cuidados de saúde dos EUA afetam uma média de 7% das despesas com cibersegurança, enquanto o montante médio gasto em todos os setores é de cerca de 11-12%. Ao contrário do setor dos serviços financeiros, os cuidados de saúde não dispõem dos mesmos recursos para pagar igualmente bem aos peritos em cibersegurança, que são uma mão de obra difícil de encontrar. Os riscos são particularmente graves nos países de baixo e médio rendimento, onde as infraestruturas, os recursos e os quadros regulamentares necessários para a proteção contra os ciberataques são muito menos suficientes, como salientado num comentário recente da revista The Lancet Global Health. Então, o que é que os sistemas de saúde e os indivíduos podem fazer? Os investimentos em investigação e recursos no domínio da cibersegurança têm de estar ao nível de outros setores. Os cibercriminosos utilizam tecnologia sofisticada, mas a sua primeira entrada num sistema faz-se frequentemente através de simples esquemas de phishing ou da falta de mecanismos de segurança simples, como a autenticação de dois fatores. Compreender estes riscos e tomar as medidas adequadas é importante para as pessoas. As incidências de cibersegurança nos cuidados de saúde estão a aumentar e não se trata de uma questão de “se”, mas de “quando”. A cibersegurança não é apenas uma questão de tecnologias da informação. É uma questão de saúde.

The Lancet

07 junho 2024

Efeméride - 7 de junho de 1502

Foi há 522 anos que nasceu D. João III

«Às primeiras horas do dia 7 de junho [...], “terça-feira amanhecente”, veio ao mundo o príncipe D. João, filho primogénito do rei D. Manuel e de sua segunda mulher, herdeiro dos reinos e senhorios de Portugal, ficando sua mãe “com inteira saúde e boa disposição”.» 

D. João III, coleção «Reis de Portugal», vol. 15, Ana Isabel Buescu. Círculo de Leitores, 2005, p.13 

«Passa também D. João III por ser um útil reformador do ensino e, implicitamente, por amigo das letras, o que admira em face do mau recado que deu dos estudos primários. Devido a incapacidade mental ou relutância ao esforço, o latim e humanidades nunca chegaram a entrar-lhe na cachimónia. [...] Além de fomentador das ciências, foi D. João III um solícito tutelador da religião [...]. o facto mais assinalado [...] foi a instauração do Tribunal do Santo Ofício.» 

Príncipes de Portugal, suas grandezas e misérias, Aquilino Ribeiro. Livros do Brasil, 1952, pp. 145-147

D. João III, por Francisco Franco, 1950, Paço das Escolas, Coimbra

01 junho 2024

Quatro graus de paternalismo


Quatro graus de paternalismo na comunicação médico-doente e as suas implicações éticas
Anniken Fleisje
Centro de Estudos das Profissões, Universidade Metropolitana de Oslo, Noruega

Tradução espontânea de partes do artigo publicado em 21.05.2024 na revista Bioethics

Four shades of paternalism in doctor–patient communication and their ethical implications

Resumo

O presente estudo visa explorar as formas que a comunicação paternalista pode assumir nas interações médico-doente e como devem ser consideradas numa perspetiva normativa. No debate filosófico contemporâneo, o problema do paternalismo é muitas vezes entendido como sendo o de prejudicar a autonomia (o problema da autonomia) ou o de o paternalista considerar o seu julgamento como superior (o problema da superioridade). Em ambos os casos, o paternalismo é problematizado principalmente num sentido geral e teórico. Em contrapartida, este trabalho investiga encontros específicos entre médicos e doentes, revelando tipos distintos de comunicação paternalista. Para este estudo, analisei encontros gravados em vídeo num hospital norueguês para detetar o paternalismo  especificamente, médicos que se sobrepõem às preferências expressas pelos doentes, presumivelmente para beneficiar ou proteger os doentes. Identifiquei variações nos estilos de comunicação paternalista – denominados modos paternalistas – que categorizei em quatro tipos: o lutador, o defensor, o simpatizante e o pescador. Com base nestes resultados, pretendo introduzir diferenças no debate sobre o paternalismo. Especificamente, defendo que cada modo de paternalismo tem as suas próprias implicações normativas e que os problemas da autonomia e da superioridade se manifestam de forma diferente consoante os modos. Além disso, ao ilustrar o paternalismo na comunicação através de casos da vida real, pretendo alcançar uma compreensão mais abrangente do que entendemos por médicos paternalistas.

(…)

3. Resultados

3.1. Os paternalistas

No presente estudo, identificámos quatro modos paternalistas distintos. Estes quatro modos não constituem necessariamente uma lista exaustiva de todos os estilos de comunicação paternalista. Foram categorizados com base num conjunto limitado de encontros hospitalares, e é possível que a análise de conjuntos de dados diferentes ou mais extensos possa hipoteticamente revelar outros estilos de comunicação ou estilos adicionais.

A seguir, analisarei cada modo paternalista, exemplificando.

3.1.1. O lutador

O lutador insiste e confronta-se com o que pensa que os doentes devem escolher. Em vez de recorrer calmamente aos argumentos a favor de um determinado tratamento, um médico em modo lutador está em desacordo aberto e potencialmente acalorado com o seu doente e “luta” pelo caminho que acredita ser o melhor.

Caso A: Uma mulher de 48 anos pretende remover o útero (histerectomia) devido a distúrbios menstruais pesados e muito incómodos. O médico explica que, na maioria dos casos, a remoção do útero provoca aderências e, frequentemente, dores crónicas, e sugere que tente primeiro outros métodos.

“Se estes não ajudarem”, diz assertivamente, “então pode dizer, ok, então a única saída é remover o útero. [...] Não passe diretamente para a remoção do útero de uma vez”.

“Mas, bem, já falei com várias mulheres que o fizeram e que ganharam uma vida completamente nova.” [...] Então penso, agora também mereço ter uma vida nova.”

“[...] Mas [...] tento transmitir-lhe que, primeiro, tente outras coisas que possam ajudar.” O médico sugere, em vez disso, uma histeroscopia, que é um procedimento mais pequeno, combinado com um implante hormonal.

“Isso é doloroso! [...] Já me disseram que é muito doloroso!”, desabafa a doente.

“Mas é com anestesia”, contrapõe o médico. “Estou apenas a informá-la, não posso obrigá-la a fazer nenhum tratamento, é a si que cabe decidir”, diz antes de acrescentar com insistência: [...] “Faça-a [uma histerectomia] em último recurso. Confie em mim”.

“Estou MUITO decidida”, diz a doente, cruzando os braços e levantando o peito, como se estivesse a tomar uma posição em relação ao médico. “Não aguento mais!”

Depois de examinar fisicamente a doente, o médico conclui que a vai encaminhar para uma histeroscopia. Pergunta-lhe então, talvez meio a brincar: “Ainda somos amigos?”

No Caso A, a conversa vai e vem entre a doente a expressar a sua preferência e o médico a dizer o que acha melhor. As partes discordam abertamente uma da outra, e o médico insiste continuamente na sua sugestão de tratamento. A pergunta no final mostra uma consciência por parte do médico de que não se tratou apenas de uma troca calma de opiniões, mas, talvez, de uma interação que se assemelha a uma luta ou que está a ser vivida como tal.

3.1.2. O defensor

O defensor argumenta a favor da sua recomendação de ação de uma forma calma, equilibrada e sóbria, sem a intensidade acalorada que está associada ao modo de lutador. Especificamente, o defensor enfatiza os argumentos racionais a favor do rumo sugerido.

Caso B: Uma mulher (51 anos) que recuperou de um cancro do pulmão grave vem fazer um check-up. Depois de verificar que todos os resultados dos testes são normais, o médico pergunta-lhe se a doente fuma, e ela confirma.

“Gosta de o fazer [fumar]?

“Gosto, mas o meu corpo não gosta.”

“Não, não gosta, sabe”, diz o médico sem rodeios, virado para o computador. [...] “Já foi operada uma vez a um cancro do pulmão [...] e, infelizmente, não pode pensar que 'agora que tive um cancro do pulmão, já não é perigoso, posso fumar'“.

Calmamente e de forma informativa, continua a explicar – quase sempre ainda de costas para a doente: “Se já teve cancro do pulmão uma vez, o risco de ele [o cancro] voltar é maior do que antes”. E acrescenta: “Portanto, isso é algo em que tem de [...] trabalhar. [...] Isso é extremamente importante [...] para o seu futuro.”

Mais tarde no encontro, o médico volta ao tema do tabagismo:

“É a sua saúde, e é você que a está a administrar. [...] Mas eu vejo-me como, tipo, um seu defensor.”

No Caso B, a tentativa do médico de fazer com que a doente mude os seus hábitos baseia-se num argumento racional contra o tabagismo: Os fumadores com cancro do pulmão no passado correm um risco acrescido; por conseguinte, os doentes devem deixar de fumar se quiserem evitar o cancro no futuro. Assim, apela às capacidades racionais da doente e a sua abordagem é calma e sem emoção, não mostrando sinais de aborrecimento nem de empatia. Neste caso específico, a atitude contínua do médico de se afastar da doente deixa que as suas palavras falem por si.

3.1.3. O simpatizante

O simpatizante concentra-se no estado emocional do doente e expressa empatia, cuidado e conforto pelo que pode ser psicologicamente desafiador para o doente. Enquanto o defensor apela às capacidades racionais, o simpatizante também apela às emoções do doente ao tentar que este consinta nas sugestões.

Caso C: Um doente foi submetido a um tratamento para o cancro colorretal.

“Já passou por muita coisa [desde a última vez]”, começa a médica. Tem um tom suave e está de frente para o doente. Falam sobre o estado do doente e o tempo de espera para obter os resultados, que “[deve] ser um terror psicológico”, como diz a médica. De seguida, apresenta duas opções de tratamento: os medicamentos Fliri e Flox – igualmente eficazes, mas com efeitos secundários diferentes. Enquanto o Flox pode causar dormência nos braços e nas pernas, o Fliri pode causar diarreia e o perfil médico da doente torna-a especialmente vulnerável a esta situação. A doente prefere o Fliri, mas a médica – apesar de dizer que a decisão cabe à doente – repete com firmeza que acha que o Flox é preferível no seu caso.

“Já vi alguns casos de diarreia grave com [...] Fliri”, diz a médica lentamente, como se estivesse a pensar em como enquadrar o que diz da forma mais sensível possível. “Posso assustá-la [...] ao dizer isto, não era essa a minha intenção, mas [...] sentir-me-ia mais confortável se começássemos com Flox.” Depois acrescenta: “Eu tenho três ‘órgãos’ que [...] utilizo: a competência, [...] o instinto [...] e o coração”.

A médica do Caso C refere-se repetidamente, de forma implícita, à natureza emocionalmente desafiante do diagnóstico e do curso de tratamento do doente. Num tom suave e sensível, reconhece que o doente passou por algo que pode ter sido desagradável a vários níveis (i.e., “passou por muito”); que a espera por informações sobre a evolução da doença é extremamente difícil do ponto de vista emocional (i.e., “terror psicológico”); e que falar sobre efeitos secundários potencialmente graves pode ser assustador (i.e., “Agora posso assustá-lo”). De notar que, no Caso C, a médica não apela apenas às emoções do doente, mas também às suas próprias emoções – nomeadamente, o seu “instinto” e o seu “coração”. Assim, os estados emocionais de ambas as partes desempenham um papel na tentativa de fazer com que o doente obedeça.

3.1.4. O pescador

O pescador caracteriza-se por sugerir forte e repetidamente a opção que pensa ser a melhor – ele “pesca” o consentimento dos doentes. Este estilo de comunicação equivale a uma forma de incitamento. O tratamento preferido é levantado subtilmente, em vez de ser discutido completa e abertamente. Assim, o pescador não é confrontacional como o lutador, não enfatiza explicitamente os argumentos racionais como o defensor e não destaca necessariamente as emoções como o simpatizante.

Caso D: Uma mulher de 75 anos usa um anel pessário contra o prolapso uterino. A alternativa é a cirurgia.

“Mas será que uma mulher jovem e saudável como a Senhora deve andar com um pessário [...]?”, pergunta o médico.

“Não sei?”, responde-lhe a doente.

[...]

“Mas o que é que acha da cirurgia, então?”.

A doente diz que o uso do anel pessário não a incomoda. O médico responde-lhe:

“Não... [...] Então, para já, prefere usar o anel a expor-se a uma cirurgia [...]?”

“Sim, não sei.”

“Não... Mas não é que seja completamente negativa à cirurgia...?”

Antes de terminar a consulta, o médico acrescenta que não precisa de operar se os doentes não quiserem.

O médico do Caso D está sempre a voltar ao assunto da cirurgia, mas não o discute abertamente nem explica os riscos e benefícios de forma exaustiva. Embora não seja visível no pequeno extrato acima, o médico mencionou “cirurgia”/“operar” 18 vezes no total durante a consulta. No entanto, poucas destas menções se aproximaram de uma pergunta explícita sobre se a doente quer ou não ser operada. A sua referência a uma doente de 75 anos como “uma jovem [...] mulher” também pode ser vista como um incitamento manipulador, uma vez que está a usar uma caraterização que pode não ser adequada para levar a doente no sentido da cirurgia.

(…)

Para esclarecer melhor o que torna estes médicos paternalistas, os quatro casos acima descritos podem ser comparados com dois exemplos de abordagens não paternalistas: um exemplo de tomada de decisão partilhada e outro daquilo a que chamo evitar o paternalismo, exemplificados a seguir.

4.1.1. A decisão partilhada

Caso E: Uma mulher está grávida pela terceira vez. Tem uma lesão de parto da sua segunda gravidez que tem um grande impacto na sua vida quotidiana. Inicialmente, a doente queria dar à luz por via vaginal, mas agora preocupa-se com o facto de isso poder piorar a sua condição. O médico e a doente falam sobre as opções e chegam a acordo sobre uma cesariana. “Penso que [a cesariana] é a melhor solução”, conclui o médico, com base nas perspetivas que foram levantadas. A doente responde: “Eu também acho”.

4.1.2. Evitar o paternalismo

Caso F: Uma mulher idosa sente-se arrasada depois de lhe ter sido amputada uma perna. O médico pergunta-lhe se gostaria de falar com alguém, como um padre ou um psicólogo.

“Não, não”, responde-lhe a doente.

“Não. Não o vou obrigar”, diz o médico.

“Mais vale morrer.”

“Está bem... não o vou obrigar a fazer nada”, repete o médico e depois termina a conversa.

O decisor partilhado do Caso E não se sobrepõe às preferências da doente, nem deixa simplesmente que esta tome uma decisão por si própria. Em vez disso, o decisor partilhado explora as preferências da doente no contexto das alternativas disponíveis juntamente com a doente e colabora com ela para chegar a uma decisão. Em contrapartida, a pessoa que evita o paternalismo não colabora com os doentes para chegar a uma decisão conjunta. Embora o médico no Caso F faça uma sugestão – à qual a doente se opõe – acaba por deixar a doente decidir por si própria. Assim, o que partilha a decisão e o que evita o paternalismo abordam as preferências dos doentes de formas diferentes. No entanto, nenhum deles empurra os doentes para opções diferentes das que eles expressam preferir, ao contrário dos paternalistas.

Como os casos A a F envolvem questões e situações médicas bastante diferentes, a comparação direta é reconhecidamente difícil. (…)

(…)

5. Conclusão

O paternalismo é desde há muito um tema de debate tanto no contexto filosófico como no contexto médico. No entanto, a conceção de paternalismo – e os argumentos normativos que o rodeiam – nem sempre são claros no contexto prático das interações médico-doente. Este artigo, ao incorporar casos da vida real com análises estabelecidas do paternalismo, teve como objetivo lançar luz sobre as várias matizes do paternalismo não coercivo – e as implicações normativas de cada uma delas – em encontros médicos. Embora os casos reais, nas suas complexidades, possam ser imperfeitos como base para uma categorização nítida e uma teorização rigorosa, ajudam a trazer as discussões para a terra e a clarificar a forma como a teoria normativa pode ser aplicada à realidade das interações médico-doente. Esperamos que as discussões neste documento contribuam assim para realçar os benefícios de integrar análises empíricas nas análises filosóficas e normativas. <

 

Vale a pena ler o artigo original completo AQUI