Tradução espontânea de partes do artigo publicado em
21.05.2024 na revista Bioethics
Four shades
of paternalism in doctor–patient communication and their ethical implications
Resumo
O presente estudo visa explorar as formas que a
comunicação paternalista pode assumir nas interações médico-doente e como devem
ser consideradas numa perspetiva normativa. No debate filosófico contemporâneo,
o problema do paternalismo é muitas vezes entendido como sendo o de prejudicar
a autonomia (o problema da autonomia) ou o de o paternalista considerar o seu
julgamento como superior (o problema da superioridade). Em ambos os casos, o
paternalismo é problematizado principalmente num sentido geral e teórico. Em
contrapartida, este trabalho investiga encontros específicos entre médicos e
doentes, revelando tipos distintos de comunicação paternalista. Para este
estudo, analisei encontros gravados em vídeo num hospital norueguês para
detetar o paternalismo – especificamente, médicos que se sobrepõem às
preferências expressas pelos doentes, presumivelmente para beneficiar ou
proteger os doentes. Identifiquei variações nos estilos de comunicação
paternalista – denominados modos paternalistas – que categorizei em quatro
tipos: o lutador, o defensor, o simpatizante e o pescador.
Com base nestes resultados, pretendo introduzir diferenças no debate sobre o
paternalismo. Especificamente, defendo que cada modo de paternalismo tem as
suas próprias implicações normativas e que os problemas da autonomia e da
superioridade se manifestam de forma diferente consoante os modos. Além disso,
ao ilustrar o paternalismo na comunicação através de casos da vida real,
pretendo alcançar uma compreensão mais abrangente do que entendemos por médicos
paternalistas.
(…)
3. Resultados
3.1. Os paternalistas
No presente estudo, identificámos quatro modos
paternalistas distintos. Estes quatro modos não constituem necessariamente uma
lista exaustiva de todos os estilos de comunicação paternalista. Foram
categorizados com base num conjunto limitado de encontros hospitalares, e é
possível que a análise de conjuntos de dados diferentes ou mais extensos possa
hipoteticamente revelar outros estilos de comunicação ou estilos adicionais.
A seguir, analisarei cada modo paternalista,
exemplificando.
3.1.1. O lutador
O lutador insiste e confronta-se com o que pensa que
os doentes devem escolher. Em vez de recorrer calmamente aos argumentos a favor
de um determinado tratamento, um médico em modo lutador está em desacordo
aberto e potencialmente acalorado com o seu doente e “luta” pelo caminho que
acredita ser o melhor.
Caso A: Uma mulher de 48 anos pretende remover o útero (histerectomia) devido a
distúrbios menstruais pesados e muito incómodos. O médico explica que, na
maioria dos casos, a remoção do útero provoca aderências e, frequentemente,
dores crónicas, e sugere que tente primeiro outros métodos.
“Se estes não ajudarem”, diz assertivamente, “então
pode dizer, ok, então a única saída é remover o útero. [...] Não passe
diretamente para a remoção do útero de uma vez”.
“Mas, bem, já falei com várias mulheres que o fizeram
e que ganharam uma vida completamente nova.” [...] Então penso, agora também
mereço ter uma vida nova.”
“[...] Mas [...] tento transmitir-lhe que, primeiro,
tente outras coisas que possam ajudar.” O médico sugere, em vez disso, uma
histeroscopia, que é um procedimento mais pequeno, combinado com um implante
hormonal.
“Isso é doloroso! [...] Já me disseram que é muito
doloroso!”, desabafa a doente.
“Mas é com anestesia”, contrapõe o médico. “Estou
apenas a informá-la, não posso obrigá-la a fazer nenhum tratamento, é a si que
cabe decidir”, diz antes de acrescentar com insistência: [...] “Faça-a [uma
histerectomia] em último recurso. Confie em mim”.
“Estou MUITO decidida”, diz a doente, cruzando os
braços e levantando o peito, como se estivesse a tomar uma posição em relação
ao médico. “Não aguento mais!”
Depois de examinar fisicamente a doente, o médico
conclui que a vai encaminhar para uma histeroscopia. Pergunta-lhe então, talvez
meio a brincar: “Ainda somos amigos?”
No Caso A, a conversa vai e vem entre a doente a
expressar a sua preferência e o médico a dizer o que acha melhor. As partes
discordam abertamente uma da outra, e o médico insiste continuamente na sua
sugestão de tratamento. A pergunta no final mostra uma consciência por parte do
médico de que não se tratou apenas de uma troca calma de opiniões, mas, talvez,
de uma interação que se assemelha a uma luta ou que está a ser vivida como tal.
3.1.2. O defensor
O defensor argumenta a favor da sua recomendação de
ação de uma forma calma, equilibrada e sóbria, sem a intensidade acalorada que
está associada ao modo de lutador. Especificamente, o defensor enfatiza os
argumentos racionais a favor do rumo sugerido.
Caso B: Uma mulher (51
anos) que recuperou de um cancro do pulmão grave vem fazer um check-up.
Depois de verificar que todos os resultados dos testes são normais, o médico
pergunta-lhe se a doente fuma, e ela confirma.
“Gosta de o fazer [fumar]?
“Gosto, mas o meu corpo não gosta.”
“Não, não gosta, sabe”, diz o médico sem rodeios,
virado para o computador. [...] “Já foi operada uma vez a um cancro do pulmão
[...] e, infelizmente, não pode pensar que 'agora que tive um cancro do pulmão,
já não é perigoso, posso fumar'“.
Calmamente e de forma informativa, continua a explicar
– quase sempre ainda de costas para a doente: “Se já teve cancro do pulmão uma
vez, o risco de ele [o cancro] voltar é maior do que antes”. E acrescenta: “Portanto,
isso é algo em que tem de [...] trabalhar. [...] Isso é extremamente importante
[...] para o seu futuro.”
Mais tarde no encontro, o médico volta ao tema do
tabagismo:
“É a sua
saúde, e é você que a está a administrar. [...] Mas eu vejo-me como, tipo, um seu
defensor.”
No Caso B, a tentativa do médico de fazer com que a
doente mude os seus hábitos baseia-se num argumento racional contra o
tabagismo: Os fumadores com cancro do pulmão no passado correm um risco
acrescido; por conseguinte, os doentes devem deixar de fumar se quiserem evitar
o cancro no futuro. Assim, apela às capacidades racionais da doente e a sua
abordagem é calma e sem emoção, não mostrando sinais de aborrecimento nem de
empatia. Neste caso específico, a atitude contínua do médico de se afastar da
doente deixa que as suas palavras falem por si.
3.1.3. O simpatizante
O simpatizante concentra-se no estado emocional do
doente e expressa empatia, cuidado e conforto pelo que pode ser
psicologicamente desafiador para o doente. Enquanto o defensor apela às capacidades
racionais, o simpatizante também apela às emoções do doente ao tentar que este
consinta nas sugestões.
Caso C: Um doente foi submetido a um tratamento para o cancro colorretal.
“Já passou por muita coisa [desde a última vez]”,
começa a médica. Tem um tom suave e está de frente para o doente. Falam sobre o
estado do doente e o tempo de espera para obter os resultados, que “[deve] ser
um terror psicológico”, como diz a médica. De seguida, apresenta duas opções de
tratamento: os medicamentos Fliri e Flox – igualmente eficazes, mas com efeitos
secundários diferentes. Enquanto o Flox pode causar dormência nos braços e nas
pernas, o Fliri pode causar diarreia e o perfil médico da doente torna-a
especialmente vulnerável a esta situação. A doente prefere o Fliri, mas a
médica – apesar de dizer que a decisão cabe à doente – repete com firmeza que
acha que o Flox é preferível no seu caso.
“Já vi alguns
casos de diarreia grave com [...] Fliri”, diz a médica lentamente, como se
estivesse a pensar em como enquadrar o que diz da forma mais sensível possível.
“Posso assustá-la [...] ao dizer isto, não era essa a minha intenção, mas [...]
sentir-me-ia mais confortável se começássemos com Flox.” Depois acrescenta: “Eu
tenho três ‘órgãos’ que [...] utilizo: a competência, [...] o instinto [...] e
o coração”.
A médica do Caso C refere-se repetidamente, de forma
implícita, à natureza emocionalmente desafiante do diagnóstico e do curso de
tratamento do doente. Num tom suave e sensível, reconhece que o doente passou
por algo que pode ter sido desagradável a vários níveis (i.e., “passou por
muito”); que a espera por informações sobre a evolução da doença é extremamente
difícil do ponto de vista emocional (i.e., “terror psicológico”); e que falar
sobre efeitos secundários potencialmente graves pode ser assustador (i.e., “Agora
posso assustá-lo”). De notar que, no Caso C, a médica não apela apenas às
emoções do doente, mas também às suas próprias emoções – nomeadamente, o seu “instinto”
e o seu “coração”. Assim, os estados emocionais de ambas as partes desempenham
um papel na tentativa de fazer com que o doente obedeça.
3.1.4. O pescador
O pescador caracteriza-se por sugerir forte e
repetidamente a opção que pensa ser a melhor – ele “pesca” o consentimento dos
doentes. Este estilo de comunicação equivale a uma forma de incitamento. O
tratamento preferido é levantado subtilmente, em vez de ser discutido completa
e abertamente. Assim, o pescador não é confrontacional como o lutador, não enfatiza
explicitamente os argumentos racionais como o defensor e não destaca
necessariamente as emoções como o simpatizante.
Caso D: Uma mulher de 75 anos usa um anel pessário contra o prolapso uterino. A
alternativa é a cirurgia.
“Mas será que uma mulher jovem e saudável como a
Senhora deve andar com um pessário [...]?”, pergunta o médico.
“Não sei?”, responde-lhe a doente.
[...]
“Mas o que é que acha da cirurgia, então?”.
A doente diz que o uso do anel pessário não a
incomoda. O médico responde-lhe:
“Não... [...] Então, para já, prefere usar o anel a
expor-se a uma cirurgia [...]?”
“Sim, não sei.”
“Não... Mas não é que seja completamente negativa à
cirurgia...?”
Antes de
terminar a consulta, o médico acrescenta que não precisa de operar se os
doentes não quiserem.
O médico do Caso D está sempre a voltar ao assunto da
cirurgia, mas não o discute abertamente nem explica os riscos e benefícios de
forma exaustiva. Embora não seja visível no pequeno extrato acima, o médico
mencionou “cirurgia”/“operar” 18 vezes no total durante a consulta. No entanto,
poucas destas menções se aproximaram de uma pergunta explícita sobre se a
doente quer ou não ser operada. A sua referência a uma doente de 75 anos como “uma
jovem [...] mulher” também pode ser vista como um incitamento manipulador, uma
vez que está a usar uma caraterização que pode não ser adequada para levar a
doente no sentido da cirurgia.
(…)
Para esclarecer melhor o que torna estes médicos
paternalistas, os quatro casos acima descritos podem ser comparados com dois
exemplos de abordagens não paternalistas: um exemplo de tomada de decisão
partilhada e outro daquilo a que chamo evitar o paternalismo, exemplificados a
seguir.
4.1.1. A decisão partilhada
Caso E: Uma mulher
está grávida pela terceira vez. Tem uma lesão de parto da sua segunda gravidez
que tem um grande impacto na sua vida quotidiana. Inicialmente, a doente queria
dar à luz por via vaginal, mas agora preocupa-se com o facto de isso poder
piorar a sua condição. O médico e a doente falam sobre as opções e chegam a
acordo sobre uma cesariana. “Penso que [a cesariana] é a melhor solução”,
conclui o médico, com base nas perspetivas que foram levantadas. A doente
responde: “Eu também acho”.
4.1.2. Evitar o paternalismo
Caso F: Uma mulher
idosa sente-se arrasada depois de lhe ter sido amputada uma perna. O médico
pergunta-lhe se gostaria de falar com alguém, como um padre ou um psicólogo.
“Não, não”, responde-lhe a doente.
“Não. Não o vou obrigar”, diz o médico.
“Mais vale morrer.”
“Está bem... não o vou obrigar a fazer nada”, repete o
médico e depois termina a conversa.
O decisor partilhado do Caso E não se sobrepõe às
preferências da doente, nem deixa simplesmente que esta tome uma decisão por si
própria. Em vez disso, o decisor partilhado explora as preferências da doente
no contexto das alternativas disponíveis juntamente com a doente e colabora com
ela para chegar a uma decisão. Em contrapartida, a pessoa que evita o
paternalismo não colabora com os doentes para chegar a uma decisão conjunta.
Embora o médico no Caso F faça uma sugestão – à qual a doente se opõe – acaba
por deixar a doente decidir por si própria. Assim, o que partilha a decisão e o
que evita o paternalismo abordam as preferências dos doentes de formas
diferentes. No entanto, nenhum deles empurra os doentes para opções diferentes
das que eles expressam preferir, ao contrário dos paternalistas.
Como os casos A a F envolvem questões e situações
médicas bastante diferentes, a comparação direta é reconhecidamente difícil. (…)
(…)
5. Conclusão
O paternalismo é desde há muito um tema de debate
tanto no contexto filosófico como no contexto médico. No entanto, a conceção de
paternalismo – e os argumentos normativos que o rodeiam – nem sempre são claros
no contexto prático das interações médico-doente. Este artigo, ao incorporar
casos da vida real com análises estabelecidas do paternalismo, teve como
objetivo lançar luz sobre as várias matizes do paternalismo não coercivo – e as
implicações normativas de cada uma delas – em encontros médicos. Embora os
casos reais, nas suas complexidades, possam ser imperfeitos como base para uma
categorização nítida e uma teorização rigorosa, ajudam a trazer as discussões
para a terra e a clarificar a forma como a teoria normativa pode ser aplicada à
realidade das interações médico-doente. Esperamos que as discussões neste
documento contribuam assim para realçar os benefícios de integrar análises
empíricas nas análises filosóficas e normativas. <
Vale a pena ler o artigo original
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