09 junho 2022

Declaração de voto vencido - Parecer 116/2022


Declaração de voto vencido na aprovação do projeto de

Parecer do CNECV sobre os Projetos de Lei n.º 5/XV/1ª do BE, n.º 74/XV do PS e n.º 83/XV/1 do PAN, que regulam as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e alteram o Código Penal

A. Lamentavelmente, enraizou-se no léxico comum a expressão “morte medicamente assistida”, validando um falso cognato (pares de palavras que parecem ser cognatos por causa de sons e significados semelhantes, mas têm etimologias diferentes) que dificilmente desaparecerá – a boa tradução de assisted, neste contexto, é “ajudada”. Se adotássemos “morte medicamente ajudada” (MMA), acabaríamos com a alegação de que afinal todas as mortes devem ter (boa) assistência médica. O Parecer deveria apontar este erro.

B. Apesar de o Parecer se não pronunciar sobre a eticidade da questão central – a não punição de quem ajuda pessoa maior doente e em sofrimento extremo a pôr termo à vida – e de o relatório que o fundamenta conter algumas críticas justas e construtivas aos projetos de lei, discordo, entre outras, da afirmação de que os projetos de lei entram em contradição sobre o respeito pela autonomia do doente. A autonomia não é um valor absoluto (se fosse, nem seria preciso lei que balizasse as condições em que a ajuda é legítima), nem o paternalismo é um mal em si (se fosse, os pais deixariam de orientar os seus filhos). Dar acesso a MMA a quem a solicite não parece uma condição limitadora. Errado seria dar a quem a não solicite ou a quem se lhe oponha.

C. A proposta de aumentar o número de elementos da Comissão de Verificação e Avaliação põe em risco a sua eficácia. A exigência de um psiquiatra e/ou de um psicólogo na CVA não implica necessariamente vantagem. Os membros da CVA devem ser, sobremaneira, personalidades reconhecidamente isentas e sensatas que monitorizam os procedimentos previstos na lei e detetam desvios, rampas escorregadias, mercantilização, etc. Seria aceitável que o elemento designado pelo CNECV, em vez de “um especialista em bioética”, fosse “um médico com reconhecida competência em bioética”. Seria desejável, para a boa escolha, que os membros da CVA só tomassem posse depois de uma audição individual e pública junto da Comissão Parlamentar da Saúde da Assembleia. Seria importante que a lei atribuísse explicitamente aos membros da CVA o caráter de independência perante as entidades designantes (inamovibilidade depois da posse, salvo situações excecionais), bem como lhes impusesse um especial dever de reserva.

D. Embora haja ordenamentos jurídicos onde é necessário haver um prognóstico fatal previsível a um determinado tempo (p. ex. 6 meses), a dificuldade de fixação de um tal prazo e o prolongar por anos de um reconhecido sofrimento extremo causado por certas doenças graves e incuráveis leva, a meu ver, a que o respeito pela vontade do doente deva ser considerado mesmo sem a aproximação do fim de vida natural. Por tal razão e ainda por não haver diferença moral plausível entre respeitar a autonomia de doentes com doenças de terminais ou com doenças persistentes, discordo que a formulação encontrada nos projetos de lei seja dita desproporcional.

E. Não tem sustentação lógica a afirmação de que se torna “o doente em objeto da própria decisão”. Afinal, qualquer decisão sobre o final de vida de uma pessoa só pode ser tomada pelo próprio e só pode ter por objeto a própria pessoa.

F. Ser o “médico orientador” escolhido pelo doente pressupõe que há grau de confiança quanto baste. Escrever na lei que o doente tem de invocar essa confiança parece-me pernóstico ou, pelo menos, não essencial. Ao contrário do afirmado, o acesso a cuidados paliativos não é diferenciado por efeito da legislação em apreço. Garantir que ao doente que, querendo, tem o acesso a cuidados paliativos não parece ser um privilégio, mas antes algo que se opõe a uma errada interpretação que alguém possa ter – se pedes MMA, já não terás cuidados paliativos!

G. Todos sabemos que em Saúde e, especialmente, no exercício da Medicina não é possível desenhar soluções para todos os dilemas e problemas garantidamente certas e limpas de incertezas, nomeadamente os que têm dimensão ética. O recurso a algoritmos, com ou sem apoio em técnicas de inteligência artificial, (ainda) não permite elaborar leis e normas perfeitas e sempre haverá possibilidade de as melhorar. Por tais razões, o exposto no relatório que acompanha este Parecer deve ser entendido como um contributo para um indispensável aperfeiçoamento dos projetos de lei sob análise.

H. Não tendo tido vencimento o público reconhecimento por parte do CNECV do esforço do legislador para encontrar uma formulação que seja o mais possível próxima da justa medida (respeita a autonomia decisional da pessoa em sofrimento quanto ao termo da sua vida; define as condições de excecionalidade e os passos procedimentais que impedem abusos ou aproveitamentos por parte de terceiros, assim como, ao mesmo tempo, previne atitudes precipitadas ou irrefletidas por parte do doente), só me restou votar contra o Parecer.

Porto, 9 de junho de 2022                                               ass) Rosalvo Almeida

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