Declaração de voto
vencido na aprovação do projeto de
Parecer do CNECV sobre os Projetos de Lei n.º 5/XV/1ª do BE, n.º 74/XV do PS e n.º 83/XV/1 do PAN, que regulam as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e alteram o Código Penal
A. Lamentavelmente,
enraizou-se no léxico comum a expressão “morte medicamente assistida”,
validando um falso cognato (pares de palavras que parecem ser cognatos por
causa de sons e significados semelhantes, mas têm etimologias diferentes) que
dificilmente desaparecerá – a boa tradução de assisted, neste contexto,
é “ajudada”. Se adotássemos “morte medicamente ajudada” (MMA), acabaríamos com
a alegação de que afinal todas as mortes devem ter (boa) assistência médica. O
Parecer deveria apontar este erro.
B. Apesar de o
Parecer se não pronunciar sobre a eticidade da questão central – a não punição
de quem ajuda pessoa maior doente e em sofrimento extremo a pôr termo à vida –
e de o relatório que o fundamenta conter algumas críticas justas e construtivas
aos projetos de lei, discordo, entre outras, da afirmação de que os projetos de
lei entram em contradição sobre o respeito pela autonomia do doente. A
autonomia não é um valor absoluto (se fosse, nem seria preciso lei que
balizasse as condições em que a ajuda é legítima), nem o paternalismo é um mal
em si (se fosse, os pais deixariam de orientar os seus filhos). Dar acesso a
MMA a quem a solicite não parece uma condição limitadora. Errado seria dar a
quem a não solicite ou a quem se lhe oponha.
C. A proposta de
aumentar o número de elementos da Comissão de Verificação e Avaliação põe em
risco a sua eficácia. A exigência de um psiquiatra e/ou de um psicólogo na CVA
não implica necessariamente vantagem. Os membros da CVA devem ser,
sobremaneira, personalidades reconhecidamente isentas e sensatas que
monitorizam os procedimentos previstos na lei e detetam desvios, rampas
escorregadias, mercantilização, etc. Seria aceitável que o elemento designado
pelo CNECV, em vez de “um especialista em bioética”, fosse “um médico com
reconhecida competência em bioética”. Seria desejável, para a boa escolha, que
os membros da CVA só tomassem posse depois de uma audição individual e pública
junto da Comissão Parlamentar da Saúde da Assembleia. Seria importante que a
lei atribuísse explicitamente aos membros da CVA o caráter de independência
perante as entidades designantes (inamovibilidade depois da posse, salvo
situações excecionais), bem como lhes impusesse um especial dever de reserva.
D. Embora haja
ordenamentos jurídicos onde é necessário haver um prognóstico fatal previsível
a um determinado tempo (p. ex. 6 meses), a dificuldade de fixação de um tal
prazo e o prolongar por anos de um reconhecido sofrimento extremo causado por
certas doenças graves e incuráveis leva, a meu ver, a que o respeito pela
vontade do doente deva ser considerado mesmo sem a aproximação do fim de vida
natural. Por tal razão e ainda por não haver diferença moral plausível entre respeitar
a autonomia de doentes com doenças de terminais ou com doenças persistentes,
discordo que a formulação encontrada nos projetos de lei seja dita desproporcional.
E. Não tem
sustentação lógica a afirmação de que se torna “o doente em objeto da própria
decisão”. Afinal, qualquer decisão sobre o final de vida de uma pessoa só pode
ser tomada pelo próprio e só pode ter por objeto a própria pessoa.
F. Ser o “médico orientador”
escolhido pelo doente pressupõe que há grau de confiança quanto baste. Escrever
na lei que o doente tem de invocar essa confiança parece-me pernóstico ou, pelo
menos, não essencial. Ao contrário do afirmado, o acesso a cuidados paliativos
não é diferenciado por efeito da legislação em apreço. Garantir que ao doente que,
querendo, tem o acesso a cuidados paliativos não parece ser um privilégio, mas antes
algo que se opõe a uma errada interpretação que alguém possa ter – se pedes MMA,
já não terás cuidados paliativos!
G. Todos sabemos
que em Saúde e, especialmente, no exercício da Medicina não é possível desenhar
soluções para todos os dilemas e problemas garantidamente certas e limpas de
incertezas, nomeadamente os que têm dimensão ética. O recurso a algoritmos, com
ou sem apoio em técnicas de inteligência artificial, (ainda) não permite
elaborar leis e normas perfeitas e sempre haverá possibilidade de as melhorar.
Por tais razões, o exposto no relatório que acompanha este Parecer deve ser
entendido como um contributo para um indispensável aperfeiçoamento dos projetos
de lei sob análise.
H. Não tendo tido vencimento
o público reconhecimento por parte do CNECV do esforço do legislador para
encontrar uma formulação que seja o mais possível próxima da justa medida (respeita
a autonomia decisional da pessoa em sofrimento quanto ao termo da sua vida;
define as condições de excecionalidade e os passos procedimentais que impedem
abusos ou aproveitamentos por parte de terceiros, assim como, ao mesmo tempo,
previne atitudes precipitadas ou irrefletidas por parte do doente), só me
restou votar contra o Parecer.
Porto, 9 de
junho de 2022 ass)
Rosalvo Almeida
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