PRONTIDÃO ÉTICA
David Archard, professor emérito de Filosofia, Queen’s University Belfast. Presidente do Nuffield Council on Bioethics and vice-presidente da Society for Applied Philosophy.
Tradução espontânea do texto Ethical
preparedness.
Muito se disse
no início da pandemia sobre como tão bem
preparado estava o serviço de saúde do Reino Unido para o surto. Sabemos agora
que isto não era verdade, uma década de austeridade tinha provocado um impacto
deletério significativo nos nossos
serviços públicos. Que as pessoas do SNS conseguiram, no entanto, lidar tão bem
como o fizeram é um tributo ao seu empenho e dedicação ao serviço. É também
hoje amplamente conhecido que
foram realizados antes de 2019 uma série de estudos oficiais que imaginavam
vários cenários pandémicos. As suas recomendações só recentemente vieram à luz
e é possível ver quantos deles – como no que diz respeito a uma possível crise
nos lares de idosos – não foram, por qualquer razão, considerados prioritários.
A opinião fundamentada de
Jeremy Farrar e Anjana Ahuja sobre a evolução da pandemia, Spike, é uma narrativa notável e castigadora das
oportunidades perdidas, atrasos catastróficos e fracassos de gestão, juntamente
com a coragem exemplar e o extraordinário trabalho árduo dos cientistas que
deram o seu melhor para encontrar soluções com origem na investigação para a
tarefa impossível que os trabalhadores da saúde da linha da frente enfrentam. O
seu capítulo final é um resumo soberbo dos vários preparativos que poderíamos
fazer para atuar melhor na próxima pandemia. E sabemos que haverá uma.
A certa altura, os autores
dizem que "desejavam que as considerações éticas tivessem sido
incorporadas na resposta ao coronavírus do Reino Unido desde o início"
(p. 229). O Conselho Nuffield de Bioética não podia estar mais de
acordo. Desde o início da pandemia que temos denunciado
consistentemente a falta de discussão sobre questões éticas na tomada
de decisões. Uma e outra vez, ao tomar decisões cruciais – quer sobre como dar
prioridade às necessidades de cuidados de saúde COVID e não COVID quando ambas
eram comprovadamente igualmente urgentes, se e como impor a vacinação, as
regras de prioridade para a aplicação da vacina, a ideia de um nível aceitável
de mortes evitáveis – as considerações éticas em jogo raramente têm sido
articuladas publicamente ou reconhecidas pelos líderes políticos.
Prontidão
ética
Para que estas questões
importantes sejam levadas a sério da próxima vez, precisamos daquilo a que nós,
com base em trabalho valioso de outros, chamamos "prontidão
ética". Isto significa estar
preparado como sociedade não apenas para lidar de forma prática e eficaz com
uma pandemia, mas para o fazer de uma forma eticamente apropriada e plenamente
justificada.
O que significa então a
prontidão ética? Há ainda muito trabalho a fazer para explorar todo o alcance
de um tal conceito. No entanto, com base nas lições da COVID, sugerimos que os
três elementos que se seguem poderão desempenhar um papel importante:
1. Clareza dos
princípios e valores morais
Em primeiro lugar, é necessário
que haja clareza quanto aos princípios e valores morais que devem estar na base
das respostas políticas. Por vezes pensa-se que numa emergência de saúde
pública as regras morais normais, por exemplo relacionadas com a justiça ou os
direitos humanos, não se aplicam, e que "vale tudo" para preservar
vidas a todo o custo. No nosso próprio relatório de Investigação
em emergências de saúde global,
contudo, argumentamos que a 'bússola moral' permanece consistente; o que pode
precisar de mudar são as formas práticas de realização dos seus valores. Assim,
por exemplo, o que parecem ser restrições draconianas à livre circulação e à
liberdade pessoal podem ser temporariamente justificáveis pela necessidade de
controlar uma doença intratável e altamente contagiosa, mas tais medidas trazem
consigo deveres para assegurar que todos tenham acesso a bens essenciais (por
exemplo, através da garantia de uma compensação adequada para as pessoas
impedidas de trabalhar), e que os impactos das restrições não sejam
injustamente suportados por aqueles que já são mais desfavorecidos.
Ao longo da pandemia, o Governo
parecia subscrever uma regra moral de que o que estava certo era o que produzia
o maior benefício global em termos de vidas salvas, assumido no mantra de
"proteger o SNS" e "salvar vidas". Contudo, existe um amplo
consenso de que, mesmo numa crise, fazer a coisa certa (que nas exigências de
qualquer situação particular pode ser simplesmente a coisa menos má) deve ter
em conta a justiça. Por exemplo, o Conselho e muitos outros salientaram
consistentemente o impacto
desproporcionado que a pandemia, e a resposta política que lhe foi dada, teve
em certos grupos sociais. Aqueles que já estão em desvantagem e sofrem de uma
saúde mais precária devido à sua situação económica, sofreram ainda mais em
resultado da COVID. Se nós, como sociedade, estamos genuinamente preocupados
com esta situação, então a nossa resposta nacional deve visar não só uma
redução global dos danos, mas também a atenuação e redução das desigualdades.
Fazer o que está certo
significa também ter em devida conta os direitos individuais – à liberdade, à
privacidade e a viver segundo as próprias crenças, reconhecendo ao mesmo tempo
que, por vezes, e no menor grau possível, esses direitos podem precisar de ser limitados para a
segurança e o bem-estar dos outros. Este difícil equilíbrio de redução de
danos, de combate às desigualdades injustas na saúde e de minimização de
medidas coercivas ou implementadas sem o consentimento das pessoas, é descrito
no "modelo de
gestão para a saúde pública" do Conselho.
Este foi publicado em 2007 e tem sido amplamente
utilizado e adotado desde então.
2. Orientação
ética clara e autoconfiante
Um segundo elemento de
prontidão ética é assegurar a existência de procedimentos, instituições e
regulamentos para que a orientação ética possa ser prestada de forma clara,
determinada, confiável e inequívoca.
Nos primeiros meses da
pandemia, houve muitas críticas justificadas sobre a confusa pluralidade de
orientações oferecidas ao pessoal da linha da frente em matérias como a decisão
de quais os pacientes que deveriam ter prioridades no tratamento. Tais orientações
vieram de organismos oficiais, organizações profissionais e de académicos, mas
não do Governo. A confusão levou aqueles que tomaram as decisões críticas a
preocuparem-se com o que deveriam fazer, e, de forma crucial, a preocuparem-se
com a possibilidade de serem subsequentemente sujeitos a censura, disciplina ou
pior, pelas decisões que tiveram de tomar sob grande pressão.
É evidente que muito mais
precisa de ser feito para aproveitar as muitas e diferentes fontes de
conhecimentos e aconselhamentos éticos disponíveis a nível nacional. Temos trabalhado
recentemente com o UKRI para compreender melhor o complexo panorama da
bioética britânica, e aguardamos com expectativa o envolvimento dos decisores políticos
e outras partes interessadas sobre a melhor forma de reunir e disponibilizar
este conhecimento especializado diversificado para fundamentar as opções
políticas.
3. A
construção de uma política ética e o envolvimento público
Um terceiro elemento de
prontidão ética é assegurar que o Governo compreenda e articule que as
considerações éticas devem ser parte integrante da formulação de políticas, e
envolva ativamente o público na apreciação dos valores e interesses
concorrentes em jogo. O Governo deve ser visto como fazendo uma política
eticamente sólida e o público deve ser envolvido e ver que é isso que está a
ser feito. A transparência da elaboração de políticas, incluindo o reconhecimento
explícito dos valores que estão a informar as decisões políticas, é a chave
essencial para a confiança entre o Governo e o público. No entanto, este
governo insistiu que era liderado pela ciência, embora a ciência, apesar de fornecer
provas cruciais, não possa ela própria dar uma resposta a questões políticas
que dizem respeito a interesses e valores em conflito.
O público é altamente capaz de
compreender as questões morais. De facto, são rápidos a criticar um Governo por
favorecer interesses próprios face ao bem público. O que é justo ou injusto em
contextos particulares e o que significa reconhecer e proteger direitos em
conflito são assuntos mais difíceis. No entanto, é por isso que é tão
importante criar as condições sobre as quais possa haver discussão pública de
questões éticas. O Conselho Nuffield tem sublinhado consistentemente
a importância do envolvimento público e da discussão pública de temas-chave da
bioética – nomeadamente realçando como isto é ainda mais importante, e não
menos, em tempos de emergência.
Condições
não-ideais
Um pensamento final. Estar
preparado eticamente e estar preparado praticamente para uma pandemia está
interligado. Ter de fazer o melhor possível, mesmo que não sejam as decisões
ideais em circunstâncias difíceis, não deve implicar que essas circunstâncias –
recursos escassos, desvantagem existente, resultados de saúde mais pobres para
alguns – são simplesmente factos da natureza. São o resultado de políticas de
longa data e da inação oficial que estão abertas ao escrutínio moral. Se
fizermos escolhas naquilo a que os filósofos e economistas chamam condições
não-ideais, temos de reconhecer porque é que não são melhores e o que pode ser
feito agora para assegurar que sejam melhores da próxima vez.
Estar eticamente preparado para
a próxima pandemia, ou qualquer outra crise de saúde pública, é uma verdadeira
prioridade. Precisamos agora de tomar medidas para reconhecer isto e para
assegurar que estamos devidamente preparados para a próxima emergência. Um debate
público encomendado através da nossa parceria com o UK Pandemic Ethics Accelerator identificou
temas-chave a serem abordados na elaboração de políticas futuras, incluindo:
• criar confiança e transparência nas políticas e ações governamentais; e
• envolver o público na elaboração de políticas.
Iremos abordar estes temas,
entre outros, no trabalho com organismos nacionais de ética em todo o mundo em
2022, e nas nossas contribuições para discussões internacionais, tais como o
próximo acordo da OMS sobre a prontidão para pandemias.
Ninguém se
congratula com a perspetiva de uma outra pandemia, ou mesmo de uma outra
emergência de saúde pública de qualquer tipo. Mas sabemos que a questão é
quando, e não se, a próxima irá surgir. No mínimo, devemos assegurar-nos de que
estamos preparados para enfrentar os seus desafios éticos.