18 junho 2019

E se fosse consigo?

 

Público, 18.06.2019

Importa sublinhar que o papel do médico não é só tratar, mas também é cuidar compassivamente.

Há poucos dias, uma adolescente holandesa de 17 anos que sofria de anorexia nervosa deixou-se morrer “voluntariamente” com a ajuda da família e dos seus médicos, após deixar de comer e beber.

Houve, a propósito, uma onda de opiniões mais ou menos indignadas que correu nos meios de comunicação social clássicos e nas novas redes digitais.

A Real Associação Médica Holandesa asseverou, contudo, que não se tratou de eutanásia (não houve um ato médico que provocou a morte) nem de suicídio medicamente assistido (não lhe foi oferecido pelos médicos qualquer medicamento que ela ingerisse).

A depressão que afetava a menina foi relacionada com repetidas agressões sexuais e aparentemente era muito grave e resistente aos tratamentos. Para ela, viver era insuportável mas a lei na Holanda impediu, neste caso, o deferimento de um pedido de ajuda médica para pôr termo à vida por duas razões: a) a idade, não dispondo portanto de autonomia legal para decidir neste âmbito; b) a doença psiquiátrica que eventualmente a incapacitava para decidir livremente.

E se fosse connosco? Se tivesse sido aprovada qualquer das propostas de lei que defendiam a despenalização de tais atos, também em Portugal seria indeferido um tal pedido, fosse ele formulado pela própria ou pelos seus representantes legais.

Importa, ainda assim, saber se, num caso de “greve de fome” como parece ter sido este, é legítima uma alimentação forçada ou se é lícito que os seus entes queridos possam/devam aceitar o facto – deixar morrer quem não suporta mais viver.

E se fosse contigo? Caro médico de família ou especialista hospitalar, que faria? A pergunta é independente de haver ou não legislação que despenalize a ajuda à morte antecipada. Se tivéssemos, como propunha o Partido Socialista, uma Comissão de Verificação e Avaliação, o seu parecer seria, certamente, desfavorável pois um tal pedido não estaria abrangido pelas condicionantes legais. Contudo, depois de esgotados todos os esforços de persuasão e verificada a real ineficácia dos melhores tratamentos, seria eticamente certo fazer uma entubação gástrica contra a sua vontade? Ou isso pode ser considerado uma violência se se mantivesse a recusa em se alimentar?

Na verdade, a uma pessoa maior de idade que não tenha um diagnóstico de doença mental é pacífico reconhecer-lhe o direito a decidir voluntariamente interromper alimentos e medicamentos, morrendo consequentemente a curto prazo.

Poderá dizer-se que um tal direito não está acompanhado de um correspondente dever médico de assistência. Mas deixar evoluir uma greve de fome, decidida livremente, sem medidas terapêuticas que atenuem o sofrer final ou sem apoiar psicologicamente o próprio e os familiares presentes, há de ser considerado um virar de costas insensível e maléfico, sem sustentação deontológica. Recordo o caso de um sexagenário que conheci bem e que sofria de uma depressão resistente. Internado numa instituição psiquiátrica, manteve uma lenta e progressiva redução da alimentação, ficando em enorme fragilidade e perda de peso. Afetado por uma grave pneumonia bilateral, deu entrada num hospital geral em estado de grande agitação motora, semi-inconsciente e com imensa falta de ar. Quando o visitei, vi que estava entubado, com soros e antibióticos e amarrado ao leito. Perguntei porque não lhe davam algum sedativo que lhe atenuasse o evidente sofrimento. Foi-me dito que era perigoso pois poderia morrer. Morreu dois dias depois, exausto da batalha.

Importa, portanto, não confundir a eventual ajuda médica ao pedido de morte antecipada feito por pessoa capaz de decidir com o lícito dever de amenizar a morte iminente. Importa, também, saber reconhecer que há diagnósticos que trazem consigo uma conhecida taxa de mortalidade (cerca de 6%, dos quais cerca de uma quarta parte relacionada com suicídio – Gibson et al, Medical Complications of Anorexia Nervosa and Bulimia Nervosa, Psychiatr Clin N Am 42 (2019)). Importa, finalmente, sublinhar que o papel do médico não é só tratar mas também é cuidar compassivamente.