30 dezembro 2015

Entrevista a David S. Oderberg

 

Tradução espontânea, sem fins lucrativos, 
David S. Oderberg é professor de Filosofia na Universidade de Reading, Reino Unido, e tem escrito muito sobre temas de bioética, tais como aborto, eutanásia, engenharia genética, direitos dos animais e pena de morte, na perspetiva da lei natural, anti-consequencialista. É também editor da Ratio, uma revista internacional de filosofia analítica. Xavier Symons, editor adjunto de BioEdge, pediu-lhe para comentar o estado da bioética contemporânea.

Xavier Symons: Na sua opinião, quais são os principais conceitos filosóficos que os bioeticistas tendem a entender mal?

David S. Oderberg: Há muitos mal-entendidos na indústria bioética (porque tem algo de indústria), embora prefira chamar-lhes simplesmente erros ou confusões. Não creio que a maioria dos bioeticistas não compreenda aquilo em que acredita ou que recomenda nas suas posições, pois a maioria tem uma agenda óbvia, a qual consiste em acabar com tantos “tabus” quanto possível, isto é, proibições tradicionais do bom senso.

Muitas vezes, os fins justificam os meios na medida em que os bioeticistas hão de usar qualquer argumento que tenham à mão, seja bom, mau ou indiferente, para cumprir uma agenda predefinida. Nesse sentido, suponho que se pode dizer que eles entendem mal que a função do argumento, ou seja alcançar a verdade, não é chegar a uma posição previamente adotada.

Lembro-me de ter lido, há alguns anos, um relatório da Autoridade Britânica para a Fertilização Humana e o Embrião, produzida por uma mão-cheia de bioeticistas e dedicada a defender a experimentação com embriões humanos. No relatório era muito claro que os autores (muitos dos quais nunca tinha ouvido dizer que fossem filósofos de profissão) pretendiam recomendar ao governo, como moralmente permissível, a experimentação com embriões e onde usavam qualquer argumento ou “teoria” para a defender essa recomendação.

O resultado era um pouco de kantismo numa página, de utilitarismo noutra, de teoria das virtudes mais adiante e um pouco de tudo e mais alguma coisa de pensamento filosófico, sendo que a maioria era totalmente incompatível entre si, tudo misturado para alcançar uma conclusão supostamente racional que, inevitavelmente, não era mais do que um “tudo bem” à experimentação com embriões, desde que haja cuidado.

Num nível mais conceptual, tenho visto várias confusões significativas que aparecem recorrentemente. Uma é entre “matar” a doença e matar o doente, como que pudéssemos curar uma pessoa do seu problema eliminando a pessoa, por ex., pôr fim a uma dor, pondo fim ao doente. Pode fazer-se isso, assim como se pode acabar com uma dor de cabeça degolando a pessoa. Mas não pode chamar-se a isso curar ou cuidar de alguém, que são os deveres primordiais dos profissionais de saúde.

Se os bioeticistas pensam que podem “curar” alguém dos seus padecimentos pela eutanásia, então não estão realmente interessados na cura (ou cuidado), mas em algum outro objetivo.

Isso faz-me pensar na confusão entre o que é bom para uma pessoa e o que é bom para outrem, seja a sua família, a comunidade ou a sociedade no seu todo. Dado que cuidar e curar são os deveres primordiais da medicina e dos cuidados de saúde em geral, o que é melhor para alguém que não o doente nunca pode ser o objetivo primordial do profissional de saúde enquanto profissional de saúde.

A ideia de que um doente pode ser um “encargo” para a sociedade, a sua existência “perturbadora” da sua família ou a sua provação uma “avaria” do sistema de saúde, nunca pode prevalecer sobre o primordial dever de cuidar, o que significa proteger o doente e curá-lo quando possível, ou então dar tanto conforto quanto possível. Infelizmente, sob a influência malévola da indústria da bioética, há demasiados doentes que são vistos como mercadorias ou unidades de produção (não encontro tremo melhor) do sistema, tudo menos indivíduos com direito à vida, a cuidados e à dignidade.

Se tivesse de escolher uma última confusão entre muitas, seria a medicalização deliberada dos deveres normais de cuidar. O exemplo clássico é a “hidratação e alimentação artificiais”, em tempos chamada comida e água. Afinal, dar de comer a quem fome e de beber a quem tem sede era um bom e antiquado dever humano. Mas desde que os bioeticistas e os seus crentes colocados na política, na economia e na lei, o medicalizaram – na verdade, desde que se tornou na sigla HAA – este simples dever humano escondeu-se num jargão e assim podem debater friamente a “interrupção de HAA”, como se fosse um procedimento médico e não um mero jejum.

Encontra-se o mesmo tipo de distanciamento no uso de termos como “feto”, “conceptus”, “término”, “eutanásia”, “estado vegetativo”, etc. A história está cheia de exemplos.

XS: Como relaciona a área da bioética com a da filosofia moral?

Oderberg: Não há bioética sem filosofia moral. A bioética não é mais do que a aplicação grosso modo da filosofia moral, ou ética, aos problemas da vida e da morte. Nesse sentido, não se pode conceber a bioética como uma disciplina autónoma com os seus próprios peritos em princípios bioéticos sui generis.

Sim, para ser bioeticista é preciso ter conhecimentos em filosofia moral (algo que muito bioeticistas não têm) e domínio dos assuntos médicos, científicos e técnicos específicos sobre que se pronunciem. De preferência, deve ter experiência próxima desses assuntos e não ter uma mera “experiência” de torre de marfim.

Para ser bioeticista, então, é preciso ser um filósofo moral e para ser um filósofo moral é preciso ser um filósofo, capaz de distinguir os bons dos maus argumentos, de separar pensamento justificado de novidade, moda, pressão social, preconceito e políticas governamentais.

E para ser filósofo é preciso ser um ser humano, com preocupações humanas, amor pelo próximo, preocupação pela sociedade e seu futuro e, o que é o mais raro recurso, bom senso. Por outras palavras, a bioética não é o que se faz quando se arranja um emprego na filosofia “real” e se pode obter grandes verbas de fundações e grupos de reflexão [think tanks].

XS: Que tipo de nova contribuição poderia resultar para a bioética da chamada “abordagem da lei natural”?

Oderberg: Bem, a bioética da lei natural não está bem desenvolvida, apesar de ser parcialmente defendida em alguns círculos. Digamos que ser pró-vida não implica ser um bioeticista da lei natural. Tão pouco preocupar-se com os desenvolvimentos sinistros da biotecnologia ou com a “cultura da morte”.

Ser um bioeticista da lei natural significa ter um conhecimento profundo de, e respeitar, a tradição de pensamento que vem dos antigos Gregos e Romanos e que realça o papel que a natureza tem na orientação da moralidade. Só sofistas ignorantes pensam que a ética da lei natural significa que tudo o que é natural é bom ou certo e que tudo o que não é natural é mau e errado. Pelo contrário, é sobre identificar o que cumpre à nossa natureza humana, faz-nos ser o que é suposto sermos de acordo com a nossa natureza de criaturas racionais, corpóreas, contudo finitas.

Penso que podemos estar certos de que, no que se refere ao cumprimento da nossa natureza, ser assassinado geralmente não ajuda. Assim, os ataques a vidas inocentes – vidas inocentes, não à vida dos que podiam perder o ser direito devido aos danos causados a outros – estão proibidos pela lei natural, independentemente de outras considerações.

Ainda estou para ver um bom argumento para sustentar que a vida em si não é senão um meio para atingir outros bens e portanto perde o seu valor quando alguém, digamos, está em coma ou estado vegetativo persistente.

Quando chegamos a tópicos como a engenharia genética, mães de substituição, “melhoramento” humano ou qualquer outro tema bioético e a tecnologia se mostra perante os media, o que é preciso é ter à mão uma análise cuidadosa e refinada da lei natural. A orientação tem de vir do que é bom para a natureza humana individual e para a natureza humana de grupos como a família, comunidade e Estado. Mas o que é bom para um grupo de humanos depende totalmente do que mais propício à realização de todos e de cada indivíduo, pelo que sacrificar uma vida inocente para benefício de outros é errado. O que é bom para o grupo não é o mesmo que o “melhor resultado” de uma ponderação utilitária ou consequencialista dos bons e maus efeitos de alguns comportamentos.

Nesse contexto, a teoria da lei natural não pode e não tem de trabalhar no vácuo: tem de estar informada por trabalho empírico credível e autêntico sobre a natureza humana e o bem comum, tudo contrabalançado pelo bom senso. Para dar um exemplo, a automutilação que dá pelo nome de “cirurgia estética”, quando se não destina a remediar um defeito que impede a função natural do corpo humano (e talvez também funções humanas naturais como a amizade e as relações sociais), é muito provavelmente moralmente errada em qualquer caso.

Hoje, não é isso que faz uma coisa ser “antinatural”, em sentido lato, mas aquilo que é, só por si, uma inversão antinatural da devida hierarquia dos valores humanos: a elevação do aperfeiçoamento corporal acima da aceitação da inevitável imperfeição própria do tipo de criatura que somos – pôr o bem corporal acima do chamado bem psíquico.

XS: Um conjunto de eticistas católicos (Grisez, Finnis, George) tentou aplicar uma Nova Teoria da Lei Natural aos modernos problemas da bioética. Concorda com a abordagem da Nova Lei Natural?

Oderberg: Bem, no geral não estou de acordo com a abordagem, mas concordo com muitas das posições éticas, embora nem todas (nem eles defendem todos as mesmas posições éticas). A abordagem da “nova lei natural” surgiu da revolução cultural dos anos 60, quando alguns filósofos católicos, considerando muitas das posições contemporâneas e não-tradicionais de então (muitas das quais persistem), decidiram que a antiquada metafísica aristotélica-tomista já não “servia” para nada.

Nós, os modernos, por outras palavras, poderíamos ver nas conceções de Aristóteles e Tomás de Aquino (e seus seguidores) e nos seus “preconceitos” metafísicos, a perspetiva de que realmente existe uma coisa chamada natureza humana, e que da natureza humana se pode filosoficamente defender um sistema ético. Assim, a metafísica da natureza humana, assim como tudo o que a acompanha, foi lançada pela janela a favor de um foco no ponto de vista subjetivo, da primeira pessoa, na perspetiva do agente que pensa sobre o que fazer e sobre o que é bom ou mau.

Ora, como que por milagre, os teóricos da Nova Lei Natural conseguiram, pelo seu método completamente novo e até aí desconhecido, chegar a um conjunto de posições largamente coincidentes com as que pretendiam afirmar. Mesmo assim, tanto quanto posso dizer, as únicas vezes em que pareciam ter uma posição assente num argumento inatacável e talvez plausível foi quando aparentemente recorreram à tal metafísica “desatualizada” que pretendiam condenar.

Assim, a meu ver, o projeto da Nova Lei Natural é, sempre foi, um falhanço: nunca por nunca persuadiu os bioeticistas liberais a abandonar uma única das suas posições, seja sobre aborto, eutanásia, maternidade de substituição, “casamento homossexual”, ou outra qualquer. Note-se que eu não digo que a abordagem tradicional, metafisicamente orientada, seja, psicologicamente falando, mais fácil para convencer os bioeticistas liberais; mas penso que é a única que, intelectualmente falando, dá alguma esperança de o fazer.

XS: Como vê, nas próximas décadas, o rumo da bioética?

Oderberg: Bem, não seguirá uma direção nova e maravilhosa em que a ciência e a tecnologia sejam postas no seu lugar e os valores humanos autênticos voltem a dominar, em que a sociedade e o governo apenas permitam crescimentos que genuinamente beneficiem os indivíduos e o bem comum. De facto, as minhas previsões são bastante apocalípticas a esse respeito, mas não quero ir por aí.

O que digo é que o futuro da bioética está fortemente ligado ao futuro da sociedade (ou sociedades). Não é de esperar que os bioeticistas assumam a liderança da recuperação da sanidade de uma sociedade que no restante está louca. De facto, não espero que os filósofos o façam.

São as forças culturais que dirigem os desenvolvimentos futuros e, apesar de ser verdade que os bioeticistas têm estado na vanguarda, eles não são os seus condutores. Temos de olhar para a sociedade num sentido mais amplo: para onde vai? Como será, digamos, daqui a trinta anos? Responda-se a esta pergunta e saberemos o que será a bioética.

Estou mais do que ligeiramente preocupado, embora mais por causa dos meus filhos do que por mim. Se todos mantiverem os seus filhos a salvo dos efeitos da lavagem ao cérebro dos media e dos amplificadores biotecnológicos (como lhes chama o grande Wesley Smith), a bioética acabará por se mostrar muito diferente.

A Saúde em tempo de crise

A saúde em tempo de crise (um diálogo do autor consigo mesmo)

in Sobre Saúde, pp. 191-6, ed. APASD, Universidade Fernando Pessoa (2015)

 E ele virou-se para mim e disse-me assim:

– Afinal o racionamento e ou não é justo?

– Sabes, todas as perguntas podem ter várias respostas.

– Dependem do contexto, claro.

– Não te esqueças que quem quer polemizar costuma usar apenas uma face ou um aspeto da questão e, focando-se só nisso, tenta argumentar escamoteando outras perspetivas. Todas as questões podem ser analisadas de vários ângulos.

– No “caso do racionamento” trata-se, essencialmente, de saber, havendo poucos recursos, como se deve fazer para que o acesso a cuidados de saúde respeite o princípio da justiça.

– O problema é um pouco mais vasto e pode ser visto respondendo a seguinte pergunta: sendo a saúde das pessoas um bem que importa promover e os cuidados de saúde prestados (e/ou pagos) pelo Estado de acordo com as necessidades dos cidadãos, como garantir que todos tem acesso aos melhores cuidados se não há verba para os custear?

– Está bem, mas o princípio da justiça diz isso mesmo (Beauchamp, TL and Childress, JF. Principles of Biomedical Ethics. 4th ed, Oxford University Press, 1994): se os recursos são limitados (e são-no sempre), podem/devem adotar-se medidas cuja aplicação não discrimine com base em condicionalismos que não dependem da vontade das pessoas.

– A que te referes?

– É injusto que certos cuidados de saúde dispendiosos só sejam prestados a pessoas que tem maior capacidade económica, por exemplo. É insustentável que se faca depender a comparticipação estatal nos custos de certos fármacos da etnia do doente, da sua idade ou mesmo da área da sua residência. É uma questão de equidade. (Daniels, N. Equity and population health – Toward a broader Bioethics Agenda. Hastings Center Report 36, 2006 Jul-Aug: 22-35)

– Esses exemplos parecem óbvios, sobretudo nos tempos atuais e numa sociedade democrática. Deixa-me usar outro exemplo. É justo que se gastem avultadas verbas no tratamento de pessoas que não zelam pela sua própria saúde, causando dificuldades orçamentais a outros programas destinados, por exemplo, a vítimas de epidemias ou catástrofes naturais?

– Compreendo que essa é uma questão de difícil resposta, mas, do modo como a apresentas, parece que estás a sugerir que pode justificar-se um Estado policial que, antes de tratar quem precisa, classifica o doente de acordo com o grau de culpa pelas suas doenças. Seria um Estado moralista, higiénico e até eugénico com consequências que podemos antever perigosas e, portanto, injustas à partida.

– Mas se não há dinheiro...

– Se não há dinheiro, o que importa é encontrar um sistema que assegure que as decisões, pois tem de haver decisões por mais difíceis ou impopulares, sejam as mais justas que é possível.

– Lá vem a conversa da transparência…

– Absolutamente. Essa é uma condição prévia essencial. As decisões que aparecem do nada são, naturalmente, suspeitas, mesmo que sejam boas. O simples facto de ser pública a identidade de quem decide, bem como as razões por que assim se decide, condiciona positivamente a qualidade da decisão. Mas não basta que o processo de decisão seja transparente…

– Pois, pode haver malvadez transparente e não deixa de ser malvadez…

– É. A outra condição que ajuda a que se tomem medidas justas é a existência de regras previamente conhecidas e que seja possível verificar se foram seguidas.

– Referes-te ao oposto da arbitrariedade?

– Exatamente. Quando um decisor, quer a título individual ou quer o consideremos como uma entidade (como por exemplo uma comissão de farmácia hospitalar), opta por um ou por outro fármaco que é necessário disponibilizar na sua instituição, é forçoso que o faça de acordo com normativos estabelecidos, legitimamente aprovados e consensualmente aceites. E o primado da publicidade e da previsibilidade. Há de ser assim que devem fixar-se as prioridades, os critérios de admissão a certos tratamentos. E que, sendo conhecidos e fundamentados, não estão feridos de caráter discriminatório – se estiverem estabelecidos quais os critérios clínicos para as listas de espera de transplantes, por exemplo, todos compreenderão que não é só a data de inscrição que conta. Ou, noutro exemplo, não há óbice ético considerar-se que, para colocação de pontes coronárias, os não fumadores tenham prioridade quando haja igualdade de outras circunstâncias.

– Então, se há normas, não são precisas comissões – apliquem-se as normas…

– Não te esqueças que as normas, por mais perfeitas que sejam, nunca preveem todas as situações e há sempre escolhas a fazer. Não há só branco e preto, como se costuma dizer. E ainda bem que é assim. Aliás, as normas, que são adotadas em abstrato para serem aplicadas em concreto, devem/deveriam ter sempre uma cláusula que permita que, desde que devidamente fundamentadas, possa haver exceções.

– Mas isso está a um passo da arbitrariedade.

– Não, arbitrárias são as decisões que se tomam sem explicações. Falamos de razoabilidade (Mitton, CR et al. Centralized drug review processes: Are they fair? Soc Sci Med. 2006, Jul;63(1):200-11) ou de bom senso, se quiseres.

– E não temes que se abuse do recurso a exceção?

– Pode acontecer, mas chamo a tua atenção para uma outra condição-base para que o princípio da justiça seja respeitado. Refiro-me a responsabilidade.

– Responsabilidade? Não estou a perceber. Ouço frequentemente que uma coisa boa e a preservar é os juízes serem irresponsáveis quando decidem.

– Não confundas! Claro que todos os juízes tem de ter toda a liberdade para decidir, em sua consciência, o teor das sentenças proferidas e não podem ser responsabilizados pelas consequências das suas condenações ou absolvições. Embora, claro, se possam enganar e haja o direito de recurso. A responsabilidade a que me estava a referir não é do mesmo tipo, pois, quando alguém decide, a título de exceção, sobre um tratamento que custa milhares de euros por mês para ser usado numa determinada situação clínica (Bach, PB et al. In Cancer Care, Cost Matters. The New York Times, 2012, Out) mas, afinal, há um consenso científico que considera haver uma opção francamente mais barata e igualmente eficaz, o responsável por essa decisão tem de prestar contas.

Accountability – e o que queres dizer?

– É isso, mas a palavra portuguesa é também responsabilidade. Os defensores da independência técnica dos prestadores, que é uma coisa boa em si mesma, não o podem/não o devem fazer, esquecendo a correspondente responsabilidade.

– Estás a dizer que um médico que invoca uma exceção e fundamenta mal a decisão deve ser punido?

– Não excluo essa hipótese mas não te esqueças que o mesmo se aplica também a quem redija as tais normas orientadoras. Todos temos de responder pelas nossas decisões. Por outro lado, as punições em sede de apuramento de responsabilidade disciplinar profissional tem muitas cambiantes. Desde logo pode nem haver processos disciplinares para falarmos em prestação de contas – é o caso das chamadas de atenção próprias das hierarquias técnicas.

– Essas regras ou normas de que falas são muitas vezes consideradas limitadoras da liberdade técnica. Há quem receie que juízes, inspetores ou instrutores de processos de averiguações, ou mesmo jornalistas, considerem sempre que é errado tudo que não esteja contemplado nas normas, contribuindo assim para que os prescritores se tornem acríticos e as apliquem cegamente.

– É por essas e outras que se costuma dizer que isto não é fácil. Quem escolheu ser profissional de saúde – médico, enfermeiro, psicólogo ou qualquer outro – pensando que não tinha de, constantemente e para o resto das suas vidas, estar sempre a tomar decisões difíceis enganou-se.

– Esta conversa está interessante mas ainda não te referiste abertamente ao polémico Parecer n.º 64 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida que dizem que aprova o racionamento em saúde. (Parecer sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos, Parecer n.º 64/CNECV/2012)

– Esse Parecer foi, de facto, centro de uma polémica acesa mas felizmente, como sempre, as coisas acalmaram e, fora do “barulho das luzes”, começa a emergir racionalidade onde ela faltou. O que o Parecer apontou foi um modelo de apoio a decisões justas em matéria de escolhas difíceis.

– Mas não era sobre as compras de medicamentos inovadores em oncologia e outras doenças crónicas?

– Era mas não foi. Tudo começou com um pedido do Ministro da Saude (o CNECV é um órgão criado exatamente para responder a perguntas dos órgãos de soberania). Sabia-se que 14 hospitais públicos tinham decidido juntar esforços para reduzir custos na compra de certos medicamentos e que acordaram numa lista que passaria a conter os únicos medicamentos que os respetivos conselhos de administração admitiam poderem ser prescritos nas suas instituições.

– A pergunta do Ministro da Saude era para saber se essa decisão estava eticamente sustentada já que acreditava que favorecia a sustentabilidade económica do Serviço Nacional de Saúde.

– Exatamente. Contudo, o CNECV não conseguiu em tempo útil conhecer os fundamentos das escolhas terapêuticas adotadas pelos 14 hospitais. Decidiu, em alternativa a uma apreciação desses fundamentos, redigir uma proposta de modelo ético para a decisão. Considerou que, a ser seguido o modelo proposto, se garantia a justiça das medidas. Considerou, na sua perspetiva, que as administrações hospitalares, no exercício dos seus poderes de gestão, podiam/deviam fazer escolhas responsáveis desde que fossem transparentes, baseadas em pareceres técnicos conhecidos e publicitados, elaborados por pessoas conhecidas e sem conflitos de interesse. Tais escolhas deveriam, em última análise, incidir sobre os “mais baratos dos melhores” fármacos em presença no mercado e não sobre os “melhores dos mais baratos”.

– Esse modelo recebeu elogios de gestores hospitalares, não foi?

– Foi. Ao contrário dos mais altos responsáveis da Ordem dos Médicos, os gestores hospitalares que se pronunciaram consideraram que a proposta do CNECV deveria ser seguida.

– Tanto quanto me lembro, a Ordem dos Médicos não só contestou o modelo, como o considerou perverso, de tal modo que ainda se falou em averiguar se os membros médicos do CNECV deveriam ser alvo de procedimento disciplinar para que respondessem pelas suas opiniões. (Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, Nota informativa do CNE sobre o parecer 64/2012 do CNECV. Revista da Ordem dos Médicos, 2012 Out; 134: 57-58 // Silva, JM. A ética teoriza-se, mas também se deve praticar! Revista da Ordem do Médicos, 2013 Jan-Fev;137:6-9)

– O CNECV reagiu a essas apreciações mas efetivamente não alcançou o mesmo impacto publico que os seus críticos. As ameaças de perseguição por delito de opinião acabaram esquecidas e os argumentos ficaram com quem os enunciou.

– Mas o Parecer defendia o racionamento?

– Quem o ler com isenção e livre de julgamentos preconceituosos verá que não trata de defender o racionamento. A referência a esse termo vem a propósito de se considerar que o racionamento, se tiver de ocorrer, deve ser explicito e não implícito. Explicito e “transparente, em diálogo com os cidadãos que devem ser informados (porque nada substitui a participação democrática), que mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS e maximize a responsabilidade dos decisores”. A tónica do Parecer é contra o “racionamento” no sentido aviltante de sistema de distribuição de recursos que afeta a todos independentemente das suas condições. Tudo no Parecer é a favor de um sistema racional, adaptativo, fundamentado técnica e cientificamente e… transparente (Tilburt, JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious medicine is not the ethics of rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212).

– Se os gestores apoiaram o modelo, quer dizerem que o aplicam?

– Não estou certo disso. Na verdade, quando, meses depois de aprovado o Parecer, se leram os critérios que os 14 hospitais assinaram, a desapontamento foi grande. Não tinham fundamento técnico ou científico conhecido ou publicitado, não se conheciam os seus autores ou interesses, não se compreendia por que se escolheram certos fármacos e não outros, a não ser com base no preço.

– Então, para ver se compreendo, nos hospitais públicos o melhor tratamento é o que é posto a disposição de quem dele necessita? As restrições orçamentais levam a que alguns não sejam tratados como deveriam ser? Havendo limitações, as escolhas que se fazem tem sustentação ética? Há equidade face à idade, local de residência, condição patológica?

– Não sei responder. Como no início deste diálogo imaginário, dir-te-ei que todas as perguntas podem ter várias respostas.

– E não podes tentar dar algumas?

– Estou certo de que, de vários modos e por várias razoes, haverá quem sofra na pele, melhor dizendo, na sua saúde, as consequências da crise. Por mais que queiramos que isso não aconteça, muitas pessoas acabam por não se tratar devidamente em consequência das dificuldades económicas que elas próprias e as instituições atravessam. Admito que algumas instituições de saúde não conseguem já dispor de meios suficientes para atender adequadamente a todas as necessidades e daí só podem resultar iniquidades. Acredito, quero acreditar, que algumas decisões, apesar de opacas, são as melhores mas este “sentimento” não serve para as isentar da tal transparência, antes pelo contrário. Entendo que um órgão consultivo como o CNECV não pode transformar-se num fiscal de boas práticas já que lhe esta cometida “apenas” a função de dar opiniões. Contudo, não poderá deixar de as dar mesmo que não lhas peçam ou nem sempre sejam seguidas ou bem interpretadas. Nesta dinâmica multifatorial, em que tantas decisões se interinfluenciam, não podemos esperar que todos compreendam todos. Apesar disso, podemos esperar que todos procurem compreender todos. Seja como for, convenhamos, há muito a fazer para alcançar melhorias no desempenho tanto das instituições como dos profissionais individualmente considerados, quando falamos do real respeito pela dignidade da pessoa doente e vulnerável. E, por maioria de razão, tudo isto é especialmente importante em tempos de crise económica e social com a dimensão da que estamos a viver em Portugal.