Xavier Symons: Na sua opinião, quais são os principais
conceitos filosóficos que os bioeticistas tendem a entender mal?
David S. Oderberg: Há
muitos mal-entendidos na indústria bioética (porque tem algo de indústria),
embora prefira chamar-lhes simplesmente erros ou confusões. Não creio que a
maioria dos bioeticistas não compreenda aquilo em que acredita ou que recomenda
nas suas posições, pois a maioria tem uma agenda óbvia, a qual consiste em acabar
com tantos “tabus” quanto possível, isto é, proibições tradicionais do bom
senso.
Muitas vezes, os fins justificam os meios na medida em
que os bioeticistas hão de usar qualquer argumento que tenham à mão, seja bom,
mau ou indiferente, para cumprir uma agenda predefinida. Nesse sentido, suponho
que se pode dizer que eles entendem mal que a função do argumento, ou seja
alcançar a verdade, não é chegar a uma posição previamente adotada.
Lembro-me de ter lido, há alguns anos, um relatório da
Autoridade Britânica para a Fertilização Humana e o Embrião, produzida por uma
mão-cheia de bioeticistas e dedicada a defender a experimentação com embriões humanos.
No relatório era muito claro que os autores (muitos dos quais nunca tinha
ouvido dizer que fossem filósofos de profissão) pretendiam recomendar ao
governo, como moralmente permissível, a experimentação com embriões e onde
usavam qualquer argumento ou “teoria” para a defender essa recomendação.
O resultado era um pouco de kantismo numa página, de
utilitarismo noutra, de teoria das virtudes mais adiante e um pouco de tudo e
mais alguma coisa de pensamento filosófico, sendo que a maioria era totalmente
incompatível entre si, tudo misturado para alcançar uma conclusão supostamente
racional que, inevitavelmente, não era mais do que um “tudo bem” à
experimentação com embriões, desde que haja cuidado.
Num nível mais conceptual, tenho visto várias confusões
significativas que aparecem recorrentemente. Uma é entre “matar” a doença e
matar o doente, como que pudéssemos curar uma pessoa do seu problema eliminando
a pessoa, por ex., pôr fim a uma dor, pondo fim ao doente. Pode fazer-se isso,
assim como se pode acabar com uma dor de cabeça degolando a pessoa. Mas não
pode chamar-se a isso curar ou cuidar de alguém, que são os deveres primordiais
dos profissionais de saúde.
Se os bioeticistas pensam que podem “curar” alguém dos
seus padecimentos pela eutanásia, então não estão realmente interessados na
cura (ou cuidado), mas em algum outro objetivo.
Isso faz-me pensar na confusão entre o que é bom para uma
pessoa e o que é bom para outrem, seja a sua família, a comunidade ou a
sociedade no seu todo. Dado que cuidar e curar são os deveres primordiais da
medicina e dos cuidados de saúde em geral, o que é melhor para alguém que não o
doente nunca pode ser o objetivo primordial do profissional de saúde enquanto
profissional de saúde.
A ideia de que um doente pode ser um “encargo” para a
sociedade, a sua existência “perturbadora” da sua família ou a sua provação uma
“avaria” do sistema de saúde, nunca pode prevalecer sobre o primordial dever de
cuidar, o que significa proteger o doente e curá-lo quando possível, ou então
dar tanto conforto quanto possível. Infelizmente, sob a influência malévola da
indústria da bioética, há demasiados doentes que são vistos como mercadorias ou
unidades de produção (não encontro tremo melhor) do sistema, tudo menos
indivíduos com direito à vida, a cuidados e à dignidade.
Se tivesse de escolher uma última confusão entre muitas,
seria a medicalização deliberada dos deveres normais de cuidar. O exemplo
clássico é a “hidratação e alimentação artificiais”, em tempos chamada comida e
água. Afinal, dar de comer a quem fome e de beber a quem tem sede era um bom e
antiquado dever humano. Mas desde que os bioeticistas e os seus crentes
colocados na política, na economia e na lei, o medicalizaram – na verdade, desde
que se tornou na sigla HAA – este simples dever humano escondeu-se num jargão e
assim podem debater friamente a “interrupção de HAA”, como se fosse um
procedimento médico e não um mero jejum.
Encontra-se o mesmo tipo de distanciamento no uso de
termos como “feto”, “conceptus”, “término”,
“eutanásia”, “estado vegetativo”, etc. A história está cheia de exemplos.
XS: Como relaciona a área da bioética com a da filosofia
moral?
Oderberg: Não há
bioética sem filosofia moral. A bioética não é mais do que a aplicação grosso
modo da filosofia moral, ou ética, aos problemas da vida e da
morte. Nesse sentido, não se pode conceber a bioética como uma disciplina
autónoma com os seus próprios peritos em princípios bioéticos sui
generis.
Sim, para ser bioeticista é preciso ter conhecimentos em
filosofia moral (algo que muito bioeticistas não têm) e domínio dos assuntos
médicos, científicos e técnicos específicos sobre que se pronunciem. De
preferência, deve ter experiência próxima desses assuntos e não ter uma mera “experiência”
de torre de marfim.
Para ser bioeticista, então, é preciso ser um filósofo
moral e para ser um filósofo moral é preciso ser um filósofo, capaz de
distinguir os bons dos maus argumentos, de separar pensamento justificado de
novidade, moda, pressão social, preconceito e políticas governamentais.
E para ser filósofo é preciso ser um ser humano, com
preocupações humanas, amor pelo próximo, preocupação pela sociedade e seu
futuro e, o que é o mais raro recurso, bom senso. Por outras palavras, a
bioética não é o que se faz quando se arranja um emprego na filosofia “real” e
se pode obter grandes verbas de fundações e grupos de reflexão [think
tanks].
XS: Que tipo de nova contribuição poderia resultar para a
bioética da chamada “abordagem da lei natural”?
Oderberg: Bem, a
bioética da lei natural não está bem desenvolvida, apesar de ser parcialmente
defendida em alguns círculos. Digamos que ser pró-vida não implica ser um
bioeticista da lei natural. Tão pouco preocupar-se com os desenvolvimentos
sinistros da biotecnologia ou com a “cultura da morte”.
Ser um bioeticista da lei natural significa ter um
conhecimento profundo de, e respeitar, a tradição de pensamento que vem dos
antigos Gregos e Romanos e que realça o papel que a natureza tem na orientação
da moralidade. Só sofistas ignorantes pensam que a ética da lei natural
significa que tudo o que é natural é bom ou certo e que tudo o que não é
natural é mau e errado. Pelo contrário, é sobre identificar o que cumpre à
nossa natureza humana, faz-nos ser o que é suposto sermos de acordo com a nossa
natureza de criaturas racionais, corpóreas, contudo finitas.
Penso que podemos estar certos de que, no que se refere
ao cumprimento da nossa natureza, ser assassinado geralmente não ajuda. Assim,
os ataques a vidas inocentes – vidas inocentes, não à vida dos que podiam
perder o ser direito devido aos danos causados a outros – estão proibidos pela
lei natural, independentemente de outras considerações.
Ainda estou para ver um bom argumento para sustentar que
a vida em si não é senão um meio para atingir outros bens e portanto perde o
seu valor quando alguém, digamos, está em coma ou estado vegetativo
persistente.
Quando chegamos a tópicos como a engenharia genética,
mães de substituição, “melhoramento” humano ou qualquer outro tema bioético e a
tecnologia se mostra perante os media, o que é
preciso é ter à mão uma análise cuidadosa e refinada da lei natural. A
orientação tem de vir do que é bom para a natureza humana individual e para a
natureza humana de grupos como a família, comunidade e Estado. Mas o que é bom
para um grupo de humanos depende totalmente do que mais propício à realização
de todos e de cada indivíduo, pelo que sacrificar uma vida inocente para
benefício de outros é errado. O que é bom para o grupo não é o mesmo que o “melhor
resultado” de uma ponderação utilitária ou consequencialista dos bons e maus
efeitos de alguns comportamentos.
Nesse contexto, a teoria da lei natural não pode e não
tem de trabalhar no vácuo: tem de estar informada por trabalho empírico
credível e autêntico sobre a natureza humana e o bem comum, tudo
contrabalançado pelo bom senso. Para dar um exemplo, a automutilação que dá
pelo nome de “cirurgia estética”, quando se não destina a remediar um defeito
que impede a função natural do corpo humano (e talvez também funções humanas
naturais como a amizade e as relações sociais), é muito provavelmente
moralmente errada em qualquer caso.
Hoje, não é isso que faz uma coisa ser “antinatural”, em
sentido lato, mas aquilo que é, só por si, uma inversão antinatural da devida
hierarquia dos valores humanos: a elevação do aperfeiçoamento corporal acima da
aceitação da inevitável imperfeição própria do tipo de criatura que somos – pôr
o bem corporal acima do chamado bem psíquico.
XS: Um conjunto de eticistas católicos (Grisez, Finnis,
George) tentou aplicar uma Nova Teoria da Lei Natural aos modernos problemas da
bioética. Concorda com a abordagem da Nova Lei Natural?
Oderberg: Bem, no geral
não estou de acordo com a abordagem, mas concordo com muitas das posições
éticas, embora nem todas (nem eles defendem todos as mesmas posições éticas). A
abordagem da “nova lei natural” surgiu da revolução cultural dos anos 60,
quando alguns filósofos católicos, considerando muitas das posições contemporâneas
e não-tradicionais de então (muitas das quais persistem), decidiram que a
antiquada metafísica aristotélica-tomista já não “servia” para nada.
Nós, os modernos, por outras palavras, poderíamos ver nas
conceções de Aristóteles e Tomás de Aquino (e seus seguidores) e nos seus “preconceitos”
metafísicos, a perspetiva de que realmente existe uma coisa chamada natureza humana,
e que da natureza humana se pode filosoficamente defender um sistema ético.
Assim, a metafísica da natureza humana, assim como tudo o que a acompanha, foi
lançada pela janela a favor de um foco no ponto de vista subjetivo, da primeira
pessoa, na perspetiva do agente que pensa sobre o que fazer e sobre o que é bom
ou mau.
Ora, como que por milagre, os teóricos da Nova Lei
Natural conseguiram, pelo seu método completamente novo e até aí desconhecido,
chegar a um conjunto de posições largamente coincidentes com as que pretendiam
afirmar. Mesmo assim, tanto quanto posso dizer, as únicas vezes em que pareciam
ter uma posição assente num argumento inatacável e talvez plausível foi quando
aparentemente recorreram à tal metafísica “desatualizada” que pretendiam
condenar.
Assim, a meu ver, o projeto da Nova Lei Natural é, sempre
foi, um falhanço: nunca por nunca persuadiu os bioeticistas liberais a
abandonar uma única das suas posições, seja sobre aborto, eutanásia,
maternidade de substituição, “casamento homossexual”, ou outra qualquer.
Note-se que eu não digo que a abordagem tradicional, metafisicamente orientada,
seja, psicologicamente falando, mais fácil para convencer os bioeticistas
liberais; mas penso que é a única que, intelectualmente falando, dá alguma
esperança de o fazer.
XS: Como vê, nas próximas décadas, o rumo da bioética?
Oderberg: Bem, não
seguirá uma direção nova e maravilhosa em que a ciência e a tecnologia sejam
postas no seu lugar e os valores humanos autênticos voltem a dominar, em que a
sociedade e o governo apenas permitam crescimentos que genuinamente beneficiem
os indivíduos e o bem comum. De facto, as minhas previsões são bastante apocalípticas
a esse respeito, mas não quero ir por aí.
O que digo é que o futuro da bioética está fortemente
ligado ao futuro da sociedade (ou sociedades). Não é de esperar que os
bioeticistas assumam a liderança da recuperação da sanidade de uma sociedade
que no restante está louca. De facto, não espero que os filósofos o façam.
São as forças culturais que dirigem os desenvolvimentos
futuros e, apesar de ser verdade que os bioeticistas têm estado na vanguarda,
eles não são os seus condutores. Temos de olhar para a sociedade num sentido
mais amplo: para onde vai? Como será, digamos, daqui a trinta anos? Responda-se
a esta pergunta e saberemos o que será a bioética.
Estou mais do que ligeiramente preocupado, embora mais
por causa dos meus filhos do que por mim. Se todos mantiverem os seus filhos a
salvo dos efeitos da lavagem ao cérebro dos media e dos amplificadores biotecnológicos (como lhes chama o
grande Wesley Smith), a bioética acabará por se mostrar muito diferente.