Uma controversa técnica de procriação assistida tornou-se legal pela primeira vez no mundo no dia 24 de fevereiro na sequência do voto de ambas as câmaras do parlamento do Reino Unido. Embora a decisão apenas afete por agora o Reino Unido, ela tem implicações internacionais. A técnica, designada transferência do ADN mitocondrial, poderá prevenir a transmissão de certas doenças raras e talvez usar-se em certas causas de infertilidade. É por vezes também designada como “Fertilização in vitro de três pessoas” pois usa o material genético de três pessoas.
O que é? A técnica procura prevenir a
transmissão de doenças hereditárias causadas por defeitos no ADN (material
genético) das mitocôndrias – estruturas do interior das células [mas fora dos
seus núcleos] que convertem os nutrientes em energia que as células utilizam.
Esses defeitos, que se transmitem das mães para os filhos, podem causar perda
da coordenação muscular, problemas visuais ou auditivos, atraso mental e outros
problemas sobretudo no cérebro, coração e músculos. Calcula-se que, todos os
anos, entre 1.000 e 4.000 bebés nascem com doenças das mitocôndrias nos EUA,
segundo a Fundação Americana das Doenças das Mitocôndrias. Estas doenças têm
várias causas, sendo apenas que algumas são causadas por defeitos do ADN mitocondrial.
Espera-se que esta tecnologia possa ser usada para prevenir doença mitocondrial
em alguns bebés que não têm outro meio de deixarem de ser afetados.
A
transferência do ADN mitocondrial é uma técnica que obriga à fertilização in
vitro. É retirado um óvulo da mãe e espermatozoides do pai mas, ao
contrário da FIV convencional, a técnica utiliza também ADN mitocondrial do
óvulo de uma dadora sem defeitos mitocondriais. Numa versão da transferência
mitocondrial, o núcleo do óvulo da dadora é substituído pelo núcleo do óvulo da
futura mãe. O núcleo contém a maioria da informação genética do óvulo. Este
óvulo é então fertilizado pelos espermatozoides do futuro pai. Outro método
começa por fertilizar o óvulo da mãe e o óvulo da dadora com os espermatozoides
do pai e, de seguida, substitui-se o núcleo da dadora pelo núcleo da mãe. Seja
qual for a via, o embrião resultante fica com ADN nuclear dos futuros mãe e pai
e com ADN mitocondrial do óvulo dador.
Por que é
polémico? Há
perguntas por responder sobre a segurança desta tecnologia nas crianças
geradas. Entre essas perguntas está a de se saber se a tecnologia por si mesma
poderá causa alterações genéticas ou epigenéticas no embrião ou, de algum modo,
causar-lhe danos, e a de saber se o ADN das três partes pode ser incompatível.
Estas questões
de segurança comportam também dilemas éticos. Como manter o equilíbrio entre
diferentes valores – neste caso, por exemplo, proporcionar a uma mulher com
defeitos no seu ADN mitocondrial o benefício de ter uma criança geneticamente
relacionada consigo face ao possível risco de uma criança gerada deste modo mas
lesada pela própria tecnologia?
Contudo, muito
do debate ético passa-se fora da esfera da segurança e, pelo contrário,
centra-se naquilo que alguns veem como uma linha vermelha que foi ultrapassada.
Ao contrário de outras técnicas de reprodução humana medicamente assistida, a
transferência do ADN mitocondrial altera a linha germinativa do embrião,
significando que o ADN mitocondrial da dadora passa da criança para as
subsequentes gerações. Algumas pessoas opõem-se a este tipo de alteração
genética acreditando que excede o papel que cabe aos seres humanos na
procriação e, afinal, na evolução. Os críticos também se preocupam por esta
técnica poder, no futuro, levar à produção de “bebés desenhados” – crianças que
não são apenas isentas de doenças genéticas graves mas cujos genes foram
alterados para obter determinadas caraterísticas pessoais, como uma certa cor
dos olhos ou uma superior inteligência, que possam ser definidas. Outros consideram
estas preocupações exageradas. Apesar de tudo, as
mitocôndrias da dadora apenas contribuem com 37 genes para a criança, enquanto
os pais contribuem com mais de 20.000.
Quais os
próximos passos? A
histórica decisão do Reino Unido está destinada a ter implicações noutros
países que consideram legalizar a transferência de ADN mitocondrial, nomeadamente
os EUA. A pergunta está em saber se outros países estão prestes a seguir o rumo
do Reino Unido. Desde 1990, no Reino Unido, a lei obriga a que todas as pessoas
que pretendem manipular óvulos, espermatozoides e embriões obtenham licença de
uma autoridade reguladora.
Agora, essa
autoridade será encarregada de emitir licenças a investigadores para desenvolverem
estas técnicas e que desejam iniciar ensaios clínicos para avaliar as
respetivas segurança e efetividade. A técnica não estará desde já disponível
fora do contexto da investigação no Reino Unido.
Nos EUA um
processo semelhante está a fazer o seu caminho e a Administração Alimentar e
Farmacêutica (FDA) aprecia um pedido de um investigador para iniciar ensaios
clínicos sobre a técnica. A FDA fez há um ano uma audição pública na sequência
deste pedido e pediu ao Instituto de Medicina (IOM) um relatório sobre as
implicações éticas e políticas da tecnologia. A primeira reunião do IOM foi em
janeiro deste ano e a próxima reunião será em março.
“As regras no
Reino Unido parecem razoáveis”, disse Josephine Johnston, a diretora de investigação
de The Hastings Center que estuda as implicações éticas da procriação
assistida. “O Reino Unido tem um processo bem desenvolvido, que inclui
consultas públicas, para a regulação e supervisão da criação e condução de
tecnologias da reprodução. O voto parlamentar sobre as regras propostas é o
passo final de um processo que começou há sete anos. Os EUA podem aprender
muito com este processo de deliberação aberto e cuidadoso.”
“Teremos ainda
de ver se, permitir a manipulação genética do embrião neste caso, abre as portas
a outros pedidos de alteração das caraterísticas das futuras crianças”,
acrescentou Johnston. “Em vez de assumir que todas as tentativas de manipular
os genes de um embrião são problemáticas, a minha esperança é que continuemos a
avaliar cuidadosa e criticamente todos os desenvolvimentos da tecnologia
reprodutiva, sem esquecer o debate público sobre as suas implicações para as
crianças e famílias, assim como para valores tão amplos como a liberdade e a
igualdade”. Johnston expôs as suas opiniões numa entrevista em Frontline
Medical News.