Perante indicadores prognósticos, deitemos uma moeda ao ar. Pode prever-se que metade de todos os doentes com cancro vai morrer no prazo de 5 anos por causa dessa doença. Pergunte a si mesmo se um determinado indivíduo pode morrer no prazo de um ano e provavelmente estará a errar a sua previsão. A única coisa certa é que não conseguirá curar todos.
Os cuidados paliativos oferecem aos doentes e (não esqueça) às suas
famílias um conjunto abrangente de cuidados prestados por uma equipa de
profissionais especializada em resolver sintomas múltiplos e difíceis que
habitualmente ocorrem em estádios adiantados da doença, em dar conforto e, até,
uma morte e um luto pacíficos. A sua prática evoluiu ao longo dos últimos 50
anos e podem ser prestados em simultâneo com os cuidados terapêuticos. Em todo
o mundo há cerca de 16.000 serviços de cuidados paliativos1 e as
crescentes investigações demonstram a efetividade das intervenções, em especial
dos modelos centrados em cuidados paliativos que apoiam doentes no seu próprio
domicílio – onde a maioria das pessoas prefere recebê-los e prefere morrer, com
a família por perto.2 Em 2012, após a publicação de fortes provas num
ensaio controlado aleatorizado de fase III,3 um parecer clínico
provisório da American Society of Clinical Oncology recomendava o uso precoce e
conjunto de cuidados oncológicos de base e de cuidados paliativos em doentes
com cancro metastizado e/ou sobrecarga sintomática extrema.4 Em 2014,
a World Health Assembly aprovou unanimemente uma resolução inovadora que
apelava para que todos os Estados membros considerassem fortemente os cuidados
paliativos como um componente do tratamento integrado num continuum de cuidados.5 A questão de saber quando os
iniciar é central a esta desejada integração.
Os artigos de Bakitas et al 6
e de Dionne-Odom et al 7
que acompanham este editorial avaliam os resultados do ensaio ENABLE (Educate,
Nurture, Advise Before Life Ends) III com dados de 207 doentes e de 122
cuidadores familiares relativos a prestações mais precoces do que tardias de cuidados
paliativos. Os autores usaram um estudo de desenho inovador que foi tentado pela
primeira vez em cuidados paliativos por McWhinney et al 8 nos anos 90 no Canadá. O ensaio de via-rápida,
também conhecido como ensaio com intervenção atrasada ou diferida ou ensaio com
lista de espera, distribui aleatoriamente os doentes que são alvo de
intervenção mais rápida do que seria normal (grupo rápido) ou os que são alvo
de intervenção apenas após um período de espera (grupo de controlo). Este
desenho tem a força de um ensaio controlado aleatorizado mas é bem aceite por
doentes e médicos porque a ninguém é negado o acesso à intervenção. Além disso,
permite uma avaliação do efeito dos diferentes tempos de espera. Percorremos um
longo caminho desde que McWhinney et al
não conseguiram completar o seu estudo devido a avaliação prognóstica desadequada,
deterioração inesperada e mortes precoces, impossibilidade de preenchimento de
questionários por fraqueza, exaustão e perturbações cognitivas dos doentes, e
desistência dos cuidadores resultante das suas fatigantes e desastrosas
experiências. No primeiro mês do seguimento, as taxas de desgaste eram já de
36% para os doentes e de 49% para os cuidadores. Nos últimos 10 anos, no Reino
Unido, Higginson et al 9 aperfeiçoaram
o modo de lidar com estes desafios, realizaram ensaios sobre cuidados
paliativos de boa qualidade usando a metodologia e demonstraram recentemente
que um serviço integrado de cuidados respiratórios e paliativos melhorou o
controlo da dispneia em pessoas com doença avançada e dispneia refratária.10
Os investigadores do ensaio ENABLE III 6,7 usaram o método, pela
primeira vez com êxito, para avaliar o modelo de apoio domiciliário em contexto
rural nos Estados Unidos. Certamente que o estudo tem limitações, tais como questões
relativas ao recrutamento, levando a uma baixa taxa de respostas (38%), e à incapacidade
de atingir o tamanho amostral pretendido (360 doentes). Este é um desafio
típico da investigação em cuidados paliativos e é frequente na maioria dos
ensaios controlados aleatorizados nesta área. Contudo, há pontos fortes
importantes, como a alocação oculta, o seguimento de 75% da amostra ao fim de 3
meses de admissão e a robustez dos resultados calculados por avaliadores que
desconheciam a que grupo foram alocados os doentes. É um ensaio sobre cuidados
paliativos raro, bem desenhado e eticamente sustentado.
Os resultados são novos e variados. Os investigadores do ensaio ENABLE III 6,7 encontraram efeitos benéficos estatisticamente significativos na sobrevida dos doentes e na depressão dos cuidadores familiares. Os dados de sobrevida coincidem com os encontrados por Temel et al 3 para o cancro do pulmão de células não-pequenas metastizado, mas é a primeira vez que se demonstra um efeito benéfico para os cuidadores familiares; isto sugere que receber cuidados paliativos precocemente no decurso da doença é melhor não só para os doentes mas também para as suas famílias. Ao contrário de muitos tratamentos com quimioterapia, não houve registo de toxicidade (efeitos negativos) associada à intervenção. Contudo, os resultados foram nulos no que se refere a outros efeitos (qualidade de vida dos doentes, impacto nos sintomas, humor, local da morte, qualidade de vida e encargos dos cuidadores familiares) e à utilização de recursos. Estas são áreas críticas da efetividade dos serviços de cuidados paliativos. Continua a haver dúvidas sobre se isso é artefacto metodológico (por exemplo, resultado da falta de poder estatístico e de múltiplos testes realizados numa grande variedade de resultados) ou se é um achado real (por exemplo, resultado do impacto da intervenção sobre algumas dimensões mas não sobre outras). A intervenção consistiu numa consulta externa inicial, feita por um médico credenciado em cuidados paliativos, seguida por 6 sessões semanais de apoios telefónicos (30 a 45 minutos cada) feitas por enfermeiro especializado (dedicadas a resolver problemas, controlo de sintomas, autocuidados, identificação/coordenação de recursos locais, comunicação, tomadas de decisão, plano de cuidados avançados, narrativa de vida), após as quais se fizeram chamadas telefónicas mensais para seguimento. O modelo é adequado para chegar a doentes que vivem em áreas rurais remotas. Poder-se-ia maximizar os efeitos sobre os sintomas e o local de morte se se aumentasse o envolvimento de profissionais (médicos e outros) e a intensidade do serviço (por exemplo, disponibilidade 24 horas por dia, 7 dias por semana). Contudo, deve notar-se que mesmo sem efeitos comprovados noutros campos, a melhoria da sobrevida dos doentes e a redução da depressão nos familiares seriam o bastante para justificar a introdução precoce dos cuidados paliativos.
Os efeitos encontrados são relevantes para o terreno por duas razões. Em
primeiro lugar, o aumento em 15% da sobrevida no primeiro ano e a diminuição em
6% da pontuação da depressão média dos cuidadores familiares são clinicamente
significativos. Por exemplo, o efeito na sobrevida é maior do que o efeito
benéfico da quimioterapia quando comparado com meros cuidados de apoio geral em
doentes com cancro do pulmão de células não-pequenas (os resultados de uma
meta-análise mostram uma melhoria absoluta de 9% aos 12 meses).11 Por
outro lado, as intervenções junto de cuidadores familiares de doentes com
cancro não têm habitualmente êxito na redução da depressão dos cuidadores. Uma
meta-análise mostrou que, em 16 estudos que avaliaram alterações na depressão
de cuidadores durante os primeiros 3 meses após a intervenção, a dimensão
global do efeito era reduzida e não significativa.12 Os
investigadores do ensaio ENABLE III 7 oferecem-nos uma solução que
comprovadamente funciona com os cuidadores familiares. Em segundo lugar, é
importante notar que o grupo de controlo recebeu uma forma do chamado
comparador ativo (cuidados paliativos adiados); portanto os efeitos poderiam
ser ainda maiores quando comparados com uma prestação ainda mais tardia de
cuidados paliativos ou com a ausência total dos mesmos.
É necessário fazer uma reflexão sobre o momento da intervenção. Bakitas
et al 6 e Dionne Odom et al 7 identificaram participantes
no prazo de 30 a 60 dias após estes serem informados de um diagnóstico de
cancro avançado, da recidiva de cancro ou do seu agravamento (o consentimento
foi obtido com uma mediana de 28 dias após a notificação do
diagnóstico/recidiva/agravamento); depois disso, o grupo sob intervenção recebeu
cuidados paliativos e o grupo de controlo recebeu esses cuidados 3 meses mais
tarde. Os achados tranquilizam, consequentemente, quem referencia doentes para cuidados
paliativos nos primeiros 2 meses depois de os informar de que o seu cancro está
em estádio adiantado. Contudo, os estudos observacionais mostram que os cuidados
paliativos tendem a ser iniciados, por rotina, mais tarde do que os do grupo de
controlo do estudo e raramente no período de tempo definido para o grupo sob
intervenção. Uma revisão de 6 meses a processos de 366 doentes no MD Anderson
Cancer Center (2009 a 2010) mostrou que o tempo entre o diagnóstico de cancro
avançado e a consulta de cuidados paliativos ia de uma mediana de 5 meses para cancros
respiratórios a uma de 16 meses para cancros hematológicos e mamários.13
Em regiões sem cuidados paliativos integrados (81% dos países em todo o mundo)1
as referenciações serão ainda mais demoradas.
Há razões válidas para que seja difícil que os oncologistas referenciem
precocemente doentes para cuidados paliativos: a desadequação do prognóstico (a
maioria dos critérios de prognóstico são desenhados para populações mas os
indivíduos podem divergir), o potencial curativo dos tratamentos
anticancerosos, os problemas em prever quais as trajetórias que levantarão
dificuldades com que os oncologistas não possam lidar e para os quais são
necessários especialistas em cuidados paliativos, a necessidade de respeitar os
processos de adaptação e os mecanismos de defesa de doentes e familiares, e os
receios (de todas as partes envolvidas) de enfrentar conversas sensíveis sobre
o fim de vida. Mas metade dos doentes com cancro morre devido à sua doença em 5
anos e não conseguiremos curá-los todos.
Juntamente com o que já se sabia sobre os benefícios associados à
integração precoce de cuidados paliativos, o ensaio ENABLE III 6,7 impõe
uma modificação de práticas e de cultura. Se os cuidados paliativos fazem a
diferença para os doentes e os seus cuidadores familiares, e quanto mais cedo
melhor, então porque esperar?
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