31 dezembro 2013

Conferência de cidadãos sobre o fim de vida

Conferência de cidadãos sobre o fim de vida

Parecer Cívico

Instituto Francês de Opinião Pública e pela Comissão Consultiva Nacional de Ética de França

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18 dezembro 2013

Pagar pelas queixas? Era o que faltava!

Público, 18.12.2013

Não posso calar a minha indignação: é um disparate, uma insensatez, um erro, um susto.

Pagar para apresentar queixas na Ordem dos Médicos! Notícias não desmentidas dizem-nos que os estatutos da Ordem dos Médicos, que aguardam aprovação oficial, preveem que quem apresente queixas sobre médicos só as verá apreciadas depois do pagamento de cerca de 100 euros.

Primeiro, é disparatado, é absurdo, pois pretender instituir uma taxa moderadora para queixas não modera e, mesmo que moderasse, nunca se deveria obstaculizar o legítimo direito de alguém se queixar. A principal missão das ordens profissionais é precisamente evitar que alguns contribuam para a má fama de todos os outros profissionais. Ao contrário do que privilegiam – defender, como se fossem sindicatos, os interesses dos seus associados – as ordens foram criadas para perseguir os falsos profissionais e os maus profissionais. Receber queixas é a sua obrigação primordial, combatê-las é um desatino.

Segundo, é um clamoroso contrassenso, pois só favorece que o comum dos mortais consolide a velha acusação de que as ordens só servem para que “eles” se protejam uns aos outros. Em vez de dar sinais de que os dirigentes da Ordem dos Médicos prestam atenção aos anseios e protestos que lhes chegam, vemos a criação de barreiras. Se é verdade que a OM não tem, pelos estatutos atuais, meios legais adequados para investigar até ao fim certas queixas, não há qualquer indicação que seja por falta de meios financeiros que esteja impedida de o fazer.

Terceiro, é um erro horrível argumentar que a taxa será devolvida quando a queixa tiver fundamento. Significa que quem se atreve a propor tal medida tem dificuldades em perceber que o queixoso tem sempre razão. Não se trata de ser popular ou politicamente correto! É verdade! O “cliente tem sempre razão” ou, por outras palavras, quem reclama só o faz porque pensa que tem razões para o fazer. Não vale a pena contrapor a existência de litigantes patológicos ou de reclamantes obstinados, pois, além de minoritários, estão, quase sempre, também eles, convencidos de que têm razão. A boa análise de reclamações obriga-se a partir do princípio de que é no meio da lana-caprina que se hão de encontrar as linhas gerais do que é preciso corrigir.

Quarto, é um susto já que não se conhece o conteúdo dos novos estatutos da Ordem dos Médicos que estarão à espera de ser aprovados pela Assembleia da República. Não os encontramos no sítio da OM ou da AR, nem na revista da OM. Os estatutos que os órgãos executivos da OM aprovaram não são do conhecimento público nem dos médicos. Sabemos que uma comissão foi encarregada de elaborar uma versão. Sabemos que foram enviadas propostas e sugestões, mas não sabemos o que foi submetido ao legislador. Perceber, no dia em que o bastonário é reeleito numa eleição sem oponentes, que os estatutos propostos contêm um tal disparate, um tal erro e uma tal insensatez só pode levar a que receemos o mais que virá.

Já não exerço a profissão, mas sendo, por direito próprio, associado da OM não consigo calar a minha indignação e, se esta medida for por diante, só me resta pôr fim a um vínculo ininterrupto com mais de 40 anos.

01 dezembro 2013

Código de Conduta Ética - Hospital Escola, Universidade Fernando Pessoa (proposta)


com Manuel Cardoso de Oliveira

Este código, proposto pela APASD (associação para a segurança dos doentes), será posto à consideração dos profissionais e, depois de ter acolhido diversos contributos redatoriais e de aprovado pelos órgãos institucionais apropriados, constituirá uma referência para um profissionalismo individual respeitador do bem-estar e da dignidade dos cidadãos a quem se destinam os serviços do Hospital Escola da Universidade Fernando Pessoa.

Todos os prestadores de cuidados, sejam profissionais efetivos ou eventuais, sejam graduados ou estejam em formação, desempenham as suas tarefas, de modo a:

1. Cumprir os respetivos objetivos funcionais com a maior competência e atualização de conhecimentos, integrando-se nas equipas com espírito de entreajuda.

2. Considerar como primordiais os seus deveres para com a pessoa doente, designadamente os deveres gerais de informação e de procura do consequente consentimento livre e esclarecido para todos os atos de saúde.

3. Estabelecer relações de cortesia natural com colegas e com utilizadores dos serviços, evitando paternalismos condescendentes ou discriminações inaceitáveis.

4. Demonstrar transparência de procedimentos, recusando qualquer tipo de ofertas ou apoios de quaisquer pessoas ou entidades, a menos que estejam oficialmente aprovadas pelos órgãos próprios do Hospital Escola, e mantendo as respetivas chefias informadas da existência de eventuais conflitos de interesse que possam surgir durante a sua atividade profissional.

5. Reconhecer o seu papel individual na manutenção da confidencialidade dos dados de saúde e no respeito pelo direito à privacidade das pessoas.

6. Concorrer para a valorização científica própria e dos seus colegas, promovendo a qualidade do trabalho, a segurança dos doentes e a melhor eficiência profissional.

7. Informar as chefias, e outros organismos adequados, dos acontecimentos adversos ou factos inesperados, ainda que sem culpa ou responsabilidades, nomeadamente colaborando na boa resposta às reclamações dos utentes.

8. Contribuir, globalmente, para o bom-nome e credibilidade do Hospital Escola, da Universidade Fernando Pessoa e dos seus profissionais.

9. Proceder com atenção aos custos individuais ou coletivos, procurando aperceber-se sempre das limitações de recursos.

10. Procurar ativamente o equilíbrio dos princípios bioéticos, respeitando a justiça no acesso aos recursos disponíveis e a autonomia da pessoa, no seu máximo benefício e com o mínimo de danos.

Consentimento informado, esclarecido e livre dado por escrito (Norma 15/2013, DGS)


 Norma nº 015/2013 de 03/10/2013, atualizada a 04/11/2015

Comité Científico A. A presente Norma foi elaborada no âmbito do Departamento da Qualidade na Saúde da Direção-Geral da Saúde. B. A elaboração da proposta de Norma teve o apoio científico de Paulo Sancho designado pela Ordem dos Médicos, Rui Moreira designado pela Ordem dos Enfermeiros, Miguel Ricou designado pela Ordem dos Psicólogos, Palma Mateus e Alejandro Santos designados pela Ordem dos Nutricionistas, Paulo Santos designado pela ARS Norte, Carla Barbosa designada pela ARS Centro, Teresa Oliveira Marçal designada pela ARS Lisboa e Vale do Tejo, Susana Teixeira designada pela ARS Alentejo, Renato Santos designado pela ARS Algarve, Rosalvo Almeida designado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

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Divagações Diabéticas - Os Visitantes

 
Divagações Diabéticas - Os Visitantes
Juan Irigoyen
Tradução espontânea a partir do blogue “Tránsitos intrusos”, 
cuja divulgação foi gentilmente autorizada pelo autor.

Os doentes visitam os médicos nas consultas. Neste sentido somos os visitantes. Vamos às consultas solicitar ajuda profissional para enfrentar os nossos problemas de saúde. Sou um doente diabético e, como tal, uma parte inevitável de minha vida é ser visitante de consultas.

Mas depois da visita volto à minha vida. No momento em que sou visitante da consulta, encontro-me sob a autoridade do profissional que supervisiona o meu estado, toma decisões e propõe ações. Mas, quando regresso à minha vida, recupero a soberania. Já não sou visitante – governo-me ou desgoverno-me a mim mesmo.

Muitos dos fatores que intervêm no estado da doença relacionam-se com a minha vida. Os meus comportamentos e as minhas decisões influenciam-na decisivamente. Na consulta não é possível falar da minha vida como uma totalidade. Esta só às vezes é aludida. Mas o que predomina, quando sou visitante, são as questões relacionadas com o estado da doença. Por isso, o médico, que desempenha um papel tão importante na leitura e valorização dos resultados no curso da doença, é um visitante da minha vida. Só se aproxima dela através de alguns fragmentos que surgem numa conversa dirigida a resolver problemas específicos relacionados com o tratamento.

A diferença entre a doença e a vida determina que os pacientes sejam visitantes das consultas, mas autores das suas vidas. Os médicos, que são os protagonistas nas consultas, podem ser, no melhor dos casos, visitantes das nossas vidas. Estas têm lugar no exterior das consultas e são difíceis de compreender nessa perspetiva. Só são afloradas em algumas das suas dimensões, mas permanecem mudas no fundamental. O que se entende em cuidados de saúde como “estilos de vida” é um conjunto de prescrições dispersas, como um menu, que são invadidas por uma multiplicidade de circunstâncias e situações que acontecem na vida individual de cada doente.

Os médicos tratam-nos segundo o nosso diagnóstico. Mas a verdade é que o diagnóstico não torna iguais todos os que o compartilham. Não somos como uma gama de automóveis que têm as mesmas características técnicas para os mecânicos. Pelo contrário, os doentes não são fabricados em série, mas cada um é uma recombinação de fatores individuais e atributos dos mundos que vivem como seres sociais. Dentro da etiqueta diagnóstica, coexistem muitas pessoas completamente distintas, que vivem mundos muito diferenciados e dotados de grande heterogeneidade. Não me parece claro que tenhamos que ser tratados do mesmo modo, ao jeito de algumas práticas clínicas focalizadas somente no diagnóstico.

Além da nossa doença, das nossas histórias médicas, somos identificados por distintas variáveis de situação que nos diferenciam. O nosso sexo, idade, situação familiar, educativa, profissional ou económica. Muitos profissionais sobrevalorizam essas variáveis e fazem pacotes connosco. Tão pouco é muito realista, porque, sem negar o que essas variáveis condicionam e influenciam, o que verdadeiramente nos diferencia é a nossa vida, que sempre é rigorosamente individual, de acordo com a nossa subjetividade.

Dizia Ortega y Gasset que “o homem é o Eu e a sua circunstância”. É isso mesmo. A circunstância em que evolui a sua vida de doente é um conjunto muito complexo que não se pode reduzir a uma relação entre várias variáveis. É algo mais que isso. O eu é uma relação dinâmica entre o corpo, a mente e o envolvimento social. Mas as relações entre estas componentes tão pouco se podem reduzir a um modelo simples e homogéneo para todos.

O característico da vida individual é que supõe o encontro do eu com o seu mundo específico. Cada pessoa encontra-se frente a situações e sucessos únicos, que se repetem ou renovam. Além disso, a vida só existe através da subjetividade, pela qual se selecionam e interpretam as experiências e se põe à prova as perceções de cada um. A minha vida é o vivido pela minha pessoa na minha perspetiva. Por isso a minha vida me diferencia dos outros. Nela sou insubstituível, não é possível delegá-la nem que alguém a ocupe.

Uma das dimensões relevantes da vida é o futuro. A partir do passado e do presente cada um faz uma composição acerca de seu futuro. No caso dos doentes diabéticos, o futuro apresenta-se como um horizonte sobre o qual pairam ameaças. Assim se configura um sofrimento inespecífico e sempre associado à doença. Esta situação dá lugar a um processo de pensamentos e sentimentos, não totalmente racionalizados, que crescem no interior da pessoa e que nem sempre são facilmente comunicáveis. O paciente necessita ter uma visão do seu futuro, que possa reduzir as ameaças e aspirar a conservar o controlo. Este é o fator que configura a solidão do doente crónico.

O dilema da vida de um doente diabético é resolver a tensão entre o presente e o futuro. As restrições na vida diária implicadas pela doença têm que ser compensadas mediante gratificações. Estas significam transgressões ao tratamento. Esta equação entre as restrições, assim como os sofrimentos a que conduzem, e as gratificações, tão difícil de resolver no quotidiano, está permanentemente presente. É preciso administrá-la a todos o momento.

Assim se configura o dilema de um tempo, que para nós significa dizer sempre, sem esperança fundada de reversão à situação anterior à doença. Aqui radica o cerne da vida de um doente diabético.

Por isso, quando nos apresentamos nas consultas como visitantes, o mais importante é que nos entendam. Que percebam que temos uma vida, uma temporalidade e que estas se regem pela equação enunciada, o que torna tudo difícil. Então, para que um médico te trate bem é preciso que compreenda a tua singularidade, a tua condição e a complexidade de tua vida. Se se levantam problemas de natureza clínica, o médico tem que realçar os riscos e propor alternativas. Mas, na decisiva questão da vida do doente, a sua posição é apenas uma perspetiva, que não pode substituir a do doente quando este passa a porta da consulta e volta à sua vida.

Por isso, nas consultas, os médicos só podem ser visitantes das vidas dos doentes. Manter as distâncias e perceber as suas limitações, como faz um visitante. Daí que o mais importante na consulta seja melhorar a relação entre as partes. Esta é a questão central. Uma boa relação assenta no valor dado à compreensão do doente e da sua circunstância. Assim se pode fazer a ponte entre o tratamento e a vida. Com esta premissa, a boa comunicação pode reforçar a confiança mútua, o que é um requisito essencial da boa assistência.

Mas há problemas que não se podem combater só com tecnologia. Assim, no caso dos numerosos doentes cuja direção de vida não tem rumo, a atuação do profissional é limitada. O mesmo se passa com doentes a quem faltam recursos psicossociais mínimos. Nestes casos, receio que o médico, além de possível visitante das suas vidas, se torne numa mera testemunha.

27 setembro 2013

I have a dream!

 
I Congresso Saúde: Património de todos

I HAVE A DREAM!
Rosalvo Almeida

É, para mim, uma honra, uma responsabilidade e alguma emoção, estar hoje aqui a dizer as primeiras palavras deste Congresso. Espero não desiludir quem a mim atribuiu tal tarefa.

Hoje e amanhã, vamos ouvir falar de muitos e variados aspetos do SNS. Em muitos casos, vamos falar de custos, sustentabilidade, financiamentos.

Pois, para foco desta minha intervenção, escolhi falar-vos de temas que poucos ou nenhuns custos têm.

Quero falar de sonhos! Desculpem o atrevimento mas I HAVE A DREAM!

Ou melhor, NÓS TEMOS UM SONHO!

Que o SNS seja cada vez mais o lugar onde tanto utilizadores como prestadores reconhecem nos outros direitos humanos básicos e o fazem com naturalidade.

SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!

CONFIDENCIALIDADE

Que o SNS seja, ou continue a ser, o lugar onde os cidadãos acreditam que os seus dados pessoais, os seus dados de saúde, estão a salvo de usos ilegítimos, por parte de companhias ou de empresas que apenas visam o lucro dos seus acionistas. Ou da curiosidade dos “amigos” e menos amigos…

RESPEITO pela DIGNIDADE das PESSOAS

Que o SNS seja – ou que em certas das suas unidades de saúde passe a ser – o lugar onde uma reclamação não seja considerada uma perda de tempo, seja respondida com respeito pela dignidade das pessoas que, certa ou erradamente, se sentiram de algum modo defraudadas nas suas expectativas. Respondidas a tempo. Não respondidas ao lado…

PROFISSIONALISMO

Que seja, sempre, o lugar onde os seus profissionais se sintam motivados para um desempenho que a si mesmos dê sentido de vida, prestígio social, motivação pessoal, capacidade para enfrentar dificuldades e incompreensões.

QUALIDADE

Que o SNS seja, quando comparado com outras instituições prestadoras de cuidados de saúde, do setor privado ou do setor social, uma referência de excelência técnica.

Que isso não seja apenas verificado nos cuidados relativos a situações críticas

mas se estenda ao mais banal dos atendimentos. (esta custa dinheiro)

SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!

CONSENTIMENTO INFORMADO VOLUNTÁRIO

Que no SNS o relacionamento com os doentes, assim como com as pessoas saudáveis, se baseie sempre numa informação honesta, completa e adaptada à condição de cada um, gradual se necessário, sem paternalismos nem condescendências, sem mentiras ainda que piedosas, de tal modo que a adesão de cada um aos tratamentos propostos ou a aceitação de medidas preventivas sejam a consequência natural desse relacionamento.

Que no SNS o direito à recusa (ou a uma segunda opinião) não mais se traduza em retaliações assistenciais mas sim num esforço suplementar no explicar da informação.

SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!

UNIVERSALIDADE

Que o SNS esteja sempre em prontidão para atender a todos segundo as suas necessidades e não segundo as suas possibilidades.

BEM-VINDOS AO PRIMEIRO CONGRESSO DO “SNS, PATRIMÓNIO DE TODOS!”

30 junho 2013

O consultor de ética médica: Que estatuto? Que papel?

 
O consultor de ética médica: Que estatuto? Que papel?

Stéphane Courtois 

Tradução parcial do original sito em Le consultant en éthique médicale : quel statut? quel rôle ?, Université du Québec à Trois-Rivières

(…)

Quais são, de facto, as tarefas mais vezes citadas pelos consultores de ética médica quando questionados sobre qual é o papel da consulta de ética? Aponto aqui as principais caraterísticas geralmente mencionadas de forma desordenada e sem me preocupar ainda com questões normativas:

1. O consultor de ética médica tem um papel de árbitro a desempenhar em conflitos e disputas que possam surgir, quer entre partes interessadas da equipe médica, quer entre esta e o paciente.

2. O consultor de ética médica tem a desempenhar o papel de “ativador” de discussões de conteúdo ético (seminários, reuniões de discussão ética em unidades de cuidados, etc.).

3. O consultor de ética médica é um “articulador” que induz os membros da equipa clínica (ou da comissão de ética) a esclarecerem a natureza de suas preocupações sobre um caso clínico e expressarem as suas opiniões, evitando que um problema recorrente volte a acontecer.

4. O consultor de ética médica é também um analista: esmiúça conceitos éticos subjacentes às preocupações expressas em 3, clarifica valores, normas morais e legais, etc.

5. É também o que se poderia chamar um “advogado da moralidade”: tem de encontrar a solução mais imparcial possível quando há um conflito de interesses ou valores, seja entre os membros da equipa médica sobre o que fazer numa determinada situação, seja entre eles e o hospital ou entre eles e o paciente (ou seu representante), etc.

6. O consultor de ética é um promotor de “aprendizagem ativa”: pode confrontar os médicos com uma visão diferente das suas, levando-os a reconsiderar a sua interpretação de um caso clínico.

7. O consultor de ética é um conselheiro, tanto para a tomada de decisões clínicas como na redação de políticas de ética do hospital, no desenvolvimento de protocolos, diretrizes, etc.

8. O consultor de ética pode dar apoio emocional, tanto a profissionais como a pacientes em situações críticas.

9. O consultor de ética age muitas vezes como guia espiritual de doentes, sobretudo se tem formação em teologia.

(…)

Segundo ele, um “código de ética para os consultores de ética” devia preencher os seguintes cinco objetivos principais:

1. Permitiria identificar os padrões mínimos de conduta ética destinados a consultores e proporcionar critérios claros e precisos para distinguir entre comportamento correto e incorreto. Como mencionei anteriormente, Freedman acredita que mesmo o especialista em ética clínica pode mentir, enganar, iludir, etc. Não é nem mais nem menos propenso à negligência do que qualquer outra categoria profissional.

2. Um código de ética seria um guia para a resolução de dilemas éticos. Mais uma vez, até mesmo os consultores de ética são, segundo Freedman, expostos a tais dilemas: mesmo o pensador mais astuto pode cometer erros de julgamento, experienciar conflitos de valor ou interesse, etc., de modo que as suas recomendações não são infalíveis.

3. Um código de ética poderá ser um instrumento de educação profissional: a ética clínica guia os consultores em situações morais difíceis, fora dos percursos académicos próprios de teólogos ou filósofos, e um código pode ser usado para consultores em fase de aprendizagem.

4. Um código de ética alimenta a cultura profissional e reflete-a. Poderia ser a personificação do “ethos” da prática da consulta de ética para todos aqueles que aspiram a prestar este serviço.

5. Um código de ética, finalmente, poderia ser usado para especificar o que, exatamente, se espera de um bom consultor de ética, um consultor de “competente”, para distinguir as práticas cuja responsabilidade lhes deve sem imputada das que o não devem ser. Tal coisa está longe de ser algo de supérfluo, dada a incerteza em torno desta prática.

(…)

3. Conclusão Como eu mencionei, parece-me que o consultor de ética mais “competente” é aquele que consegue, através da educação, tornar as pessoas que recorrem à consulta de ética autónomas no plano moral, capacitá-las a tomar suas próprias decisões de forma independente. Por outras palavras, o padrão último pelo qual devemos medir os resultados, bons ou maus, da consulta de ética é a autonomia do consulente, a sua capacidade de se emancipar da própria consulta de ética. O objetivo da consulta de ética deve ser o de assegurar que este serviço não é mais necessário. Esta é a razão fundamental pela qual a profissionalização do trabalho em consulta de ética me parece ser irrelevante. Isto não é simplesmente uma dificuldade passageira, mas um óbice de princípio. Reconhecer uma tal profissão seria, em minha opinião - e eu estou aqui de acordo com G. Scofield, A. L. Caplan ou F. Baylis - confundir as componentes técnicas e as componentes de avaliação do conhecimento humano, quando apenas as primeiras podem ser profissionalizadas, e não as segundas.

Para voltar à importante distinção feita pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, a perícia ética é um saber-fazer que expressa uma “competência humana universal” – todos são capazes de discernimento moral. Já a perícia profissional corresponde a um saber-fazer que expressa uma “competência especial” ou seja, é compartilhada apenas por determinados grupos de indivíduos em detrimento de outros. Dito de outro modo: enquanto não há perícia profissional fora da experiência profissional, ou seja, fora do conhecimento adquirido através da formação académica própria de um campo profissional (por exemplo, medicina), há uma competência moral fora da formação ética académica, ou mesmo fora da experiência adquirida pelo consultor de ética junto à cabeceira do paciente. A “perícia ética” não pode, portanto, ser reduzida e limitada ao conhecimento académico teórico, ou à experiência prática adquirida em situações muito específicas, como situações clínicas. Em suma, para usar desta vez a linguagem de Caplan, não há e não pode haver “especialistas” em questões morais, pessoas com um corpo de conhecimentos esotéricos em ética a que acedem de modo exclusivo, de modo profissional. Existe, pelo contrário, a “perícia moral”, que não está reservada apenas aos especialistas em ética – é algo que é de todos.

Certamente, alguns dirão que há graus de competência ética. Os seguidores da Kohlberg, por exemplo, provavelmente diriam que a real “experiência ética” é a capacidade de raciocinar moralmente aos mais altos níveis do desenvolvimento moral (pós-convencional). Nem todos terão, assim, esta perícia. Mas um pouco de reflexão mostra que essa teoria confirma, mais do que desmente, o meu ponto: a “perícia ética” assim descrita está aberta a todos, é a expressão mais avançada de um saber-fazer próprio de todos. Não é o resultado de uma formação académica especial, mas o resultado de um processo de aprendizagem natural na nossa capacidade de resolver problemas no plano moral.

Do exposto, deve ser concluído, na minha opinião, o seguinte: se há diferença alguma entre a competência moral dos chamados especialistas em ética e a das pessoas comuns, a resposta apropriada não é ampliar esta lacuna através da criação de uma ordem profissional, mas antes tentar preenchê-la educando os outros a pensar por si mesmos e tornar irrelevante, pelo menos no longo prazo, a necessidade de consultores de ética. Esta é a objeção central que importa valorizar, parece-me, contra qualquer projeto de profissionalizar essa atividade de serviço que é, e deve continuar a ser, a consulta de ética. A presença cada vez mais importante de consultores de ética nos nossos hospitais (ou outros sectores profissionais), oriundos de diversos centros de consulta de ética, oferecendo serviços profissionais, bem como a existência de associações de ética que reivindicam um estatuto profissional, tudo isso é, obviamente, uma situação de facto que não podemos contestar e com que devemos, ao que parece, conviver cada vez mais nos próximos anos. A única conclusão plausível parece ser tomar as medidas adequadas para regular essas atividades e combater os efeitos potencialmente prejudiciais tanto para os potenciais consulentes como para os próprios consultores. Daí as recomendações que fiz em favor de um código de ética.

Em face do exposto, sou forçado a admitir que a consulta de ética, pelo menos na sua forma atual, partilha, pelo menos, uma coisa em comum com a atividade profissional: a necessidade de ser regida por regras que protegem profissionais e clientes. Mas aqui a analogia cessa. Para mim, a consulta de ética será, quando muito, uma “quase profissão”. Enquanto a atividade profissional tem por base a assimetria existente entre o profissional e o cliente, em que o primeiro tem uma experiência que o segundo não tem, esta assimetria desaparece ao fazer-se da autonomia do cliente, assim como da sua capacidade para se libertar permanentemente do serviço do especialista em ética, o critério de excelência da consulta de ética, como sugiro. Nesta perspetiva, um código de ética concebido para eticistas teria, a meu ver, que cumprir um papel adicional em relação aos códigos de conduta comuns: teria de definir os objetivos da consulta de ética de modo que ficasse claro que este trabalho tem de obedecer a padrões diferentes dos que regem outras profissões, padrões a que eu chamo cívicos e educacionais (como o fazem as regras de ética que eu elenquei anteriormente, por exemplo a regras números 3 e 5). Ajudar os outros a juntar-se à maioria, no sentido em que o entendia Kant, para se tornarem cidadãos adultos responsáveis pelas suas ações e decisões, não é servir os interesses de uma profissão, é servir a democracia, é servir os interesses públicos, é trabalhar para colmatar o fosso entre os cidadãos adultos, moralmente autónomos, e outros – os que, com toda a probabilidade, ainda não o são. Um código de ética para os especialistas em ética teria, finalmente, a missão de circunscrever os limites da consulta de ética, os limites que são os da própria profissionalização. Penso que esses limites mereceriam ser explicados numa regra de conduta, por exemplo a seguinte (regra n.º 6): “A consulta de ética deve continuar a ser uma atividade de serviço desempenhada de forma voluntária por pessoas que pertencem a ordens profissionais que já contenham em si finalidades de educação moral e cívica de outros profissionais ou dos seus clientes, e não deve levar à criação de um órgão profissional independente”. Penso, também, por essa razão, que um código de ética para especialistas em ética deve ser concebido de modo que não “perpetue” o trabalho da consulta. Pode-se presumir que tal código irá desaparecer um dia juntamente com a necessidade de haver consultas de ética.

30 março 2013

Provedor da Medicina

Revista OM - março/2013

A lei das associações públicas profissionais (1), recentemente aprovada, estipula (artigo 8.º) que os seus estatutos «devem regular» o «Provedor dos destinatários dos serviços, se o houver».

A mesma lei refere (artigo 18.º) que o «provedor dos destinatários dos serviços, quando exista», tem «legitimidade para participar factos suscetíveis de constituir infração disciplinar ao órgão com competência disciplinar».

Sobre esta nova figura, a lei estabelece que, «sem prejuízo do estatuto do Provedor de Justiça, as associações públicas profissionais podem designar uma personalidade independente com a função de defender os interesses dos destinatários dos serviços profissionais prestados pelos membros daquelas» e que este provedor «é designado nos termos previstos nos estatutos da associação e não pode ser destituído, salvo por falta grave no exercício das suas funções» (artigo 20.º).

O mesmo artigo atribui ao provedor a competência de «analisar as queixas apresentadas pelos destinatários dos serviços e fazer recomendações, tanto para a resolução dessas queixas, como em geral para o aperfeiçoamento do desempenho da associação», determinando que o cargo possa «ser remunerado, nos termos dos estatutos ou do regulamento da associação» e que «a pessoa designada para o cargo de provedor [caso seja seu membro, deve requerer] a suspensão da sua inscrição».

Havendo notícia de que a Ordem dos Médicos tem em curso a revisão dos seus estatutos, bom seria que não se perdesse a oportunidade de demonstrar que a nossa associação pública profissional não deixa os seus créditos por mão alheia, apesar de a lei permitir, aparentemente, que a existência de um provedor seja opcional.

Se é certo que a Ordem dos Médicos, enquanto associação pública profissional, tem por primeira atribuição a «defesa dos interesses gerais dos destinatários dos [seus] serviços» (artigo 5.º), sabemos como tem sido predominante a «representação e a defesa dos interesses gerais da profissão» e, quiçá, dos profissionais. É por isso que, salvo melhor opinião, instituir um Provedor da Medicina, no seio da Ordem, poderia significar uma nova e sincera postura, no respeito pelo que consta do atual Estatuto (2), como primeira das suas finalidades essenciais: «defender a ética, a deontologia e a qualificação profissional médicas, a fim de assegurar e fazer respeitar o direito dos utentes a uma medicina qualificada» (artigo 6.º).

O Provedor da Medicina deveria ser escolhido através de um concurso, com regras predefinidas, a que pudessem apresentar-se médicos que tivessem atingido, pelo menos, o grau de chefe de serviço ou equivalente, aposentados (ou no ativo, mas dispostos a suspender a sua atividade), que se manifestassem dispostos a desempenhar o cargo por um período de 4 anos e se obrigassem a fazê-lo de modo tão discreto quanto autónomo.

A gestão das reclamações recebidas na Ordem, relativas ao desempenho de médicas e médicos, deveria ser feita de tal modo que as questões que o Provedor apresentasse aos visados necessitariam de uma resposta imediata, sendo a sua ausência penalizada adequadamente. As recomendações do Provedor deveriam ter um embargo de publicidade, com prazo por este estabelecido, e definitivamente arquivadas sem publicidade em caso de total satisfação. O Provedor, a quem deveria ser disponibilizado apoio administrativo e jurídico prioritários, deveria assumir o compromisso de não conceder entrevistas ou emitir notas à Comunicação Social, salvo em casos excecionais e precedidas de participação ao Bastonário e tempo suficiente para uma resposta deste.

Creio bem que este tema poderia dar origem a um debate interessante e proveitoso.

_________________ 
(1) Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro
(2) Estatuto da Ordem dos Médicos, Decreto-Lei N.º 282/77, de 5 de julho

01 janeiro 2013

Pensar solidariamente o final de vida

Relatório Sicard (*)
Penser solidairement la fin de vie
Tradução espontânea das páginas 88-97 do original sito AQUI

 Recomendações e reflexões

A primeira recomendação é, sobre todas as outras, a de dar a máxima importância à palavra e à vontade das pessoas doentes no final de vida de modo que sejam compreendidas na sua situação de extrema vulnerabilidade.

1. Princípios gerais

• Fazer a máxima força para a apropriação da lei Leonetti (1, 2) pela sociedade e pelo conjunto de médicos e cuidadores, nomeadamente com campanhas regulares de informação e com um reforço especial na formação, para lhe dar a necessária eficácia, pois não é aceitável que não esteja a ser aplicada sete anos depois de ter sido aprovada.

• Realizar uma avaliação do financiamento e dos requisitos em pessoal de saúde necessários a um real acesso de todos a estes cuidados. Atuar de modo que estes financiamentos sejam atribuídos. Favorecer a afetação de acompanhantes benévolos.

• Ter consciência de que o recurso apenas a unidades de cuidados paliativos nunca poderá resolver a totalidade das situações, mesmo que estas estruturas existam em número muito elevado.

• Ter consciência de que a morte diretamente ligada a uma prática letal não representaria também senão uma proporção mínima de falecimentos se esta prática fosse legalizada, como se pode ver noutros países que não a França.

• A grande desigualdade em termos de acesso a um acompanhamento humano adequado ao final de vida e, a contrario, a sensação forçada de que os cuidados paliativos são a única resposta boa, podem estar na origem de uma profunda angústia social que explica em parte a procura insistente da eutanásia.

• Chamar a maior atenção para as necessidades da imensa maioria das pessoas em final de vida, cuja situação não se limita às unidades de cuidados paliativos. Ter uma política proativa de desenvolvimento de cuidados paliativos no domicílio prevendo “pausas reparadoras” para os conviventes.

• Fazer acompanhar o anúncio de uma doença grave com um projeto específico para o final de vida, concedendo toda a atenção às preferências da pessoa.

2. Propostas sobre condutas previstas nas leis relativas aos direitos dos doentes em final de vida

Para assegurar a efetividade dos textos legais (Lei relativa ao acesso a cuidados paliativos 1999, Kouchner 2002, Leonetti 2005), adotar disposições regulamentares sobre:

• as condições em que é disponibilizada uma informação exata, inteligível, clara e adequada ao doente e aos seus próximos, relativa à abstenção, limitação ou interrupção de tratamentos, ou à intensificação de tratamentos da dor e de sintomas, ou à sedação terminal;

• as condições que respeitem a vontade da pessoa;

• as condições de seguimento dos procedimentos efetuados.

O conjunto de propostas da comissão adiante enunciado deve ter prioridade na alocação de meios financeiros e pode ser financiado por uma reafetação de recursos desproporcionalmente centrados e pouco questionados nos cuidados curativos, sendo mais bem aproveitados na assistência em final de vida.

a) As diretivas antecipadas

Realizar regularmente uma ampla campanha de informação junto dos cidadãos, dos médicos e dos curadores sobre a importância das diretivas antecipadas, a qualidade da sua redação e a efetividade do seu uso; assim como sobre a possibilidade de designar uma pessoa de confiança e sobre a função que lhe é confiada (3). Diferenciar nitidamente dois procedimentos:

• De acordo com a lei, um primeiro documento de diretiva antecipada poderá ser proposto pelo médico assistente a todo o adulto que o deseje, sem qualquer obrigatoriedade, qualquer que seja o estado de saúde, e mesmo que esteja de boa saúde, o qual deve ser regularmente atualizado (4).

A comissão recomenda que o ministério da saúde formalize a partir de 2013 um modelo de documento inspirado nos exemplos estrangeiros. [Por exemplo as diretivas suíças (Academia médica suíça), alemãs, americanas (por exemplo Oregon Health Decisions)]

• Em caso de doença grave diagnosticada, ou em caso de intervenção cirúrgica comportando grande risco, deve ser proposto um outro documento [Tendo em conta por exemplo o programa seguido por um número crescente de Estados nos EUA (Physician orders for life-sustaining treatment)] de vontades relativo especificamente aos tratamentos de final de vida, a acrescentar ao primeiro, nomeadamente no quadro de um diálogo entre a equipa médica e o subscritor.

- Este documento é assinado pelo doente que o deseje (o doente tem o direito total de se manter na ignorância da sua doença e de não querer manifestar as suas escolhas) e também pelo seu médico assistente.

- Este documento, facilmente identificado pela sua cor própria, deve ser obrigatoriamente inserido do processo clínico do doente.

- Para esse efeito, a comissão recomenda que seja publicado um decreto em 2013 e que o ministério da saúde aí formalize um tal documento, inspirando-se nomeadamente no modelo dos EUA.

• Criar um ficheiro nacional informatizado destes dois documentos, que seja facilmente utilizável em situações de urgência.

b) A formação

Pedir à conferência de decanos das faculdades de medicina para, a partir de 2013:

• Criar em cada universidade um curso universitário especificamente destinado a cuidados paliativos.

• Repensar em profundidade o ensino médico de modo que as atitudes curativas não se apropriem da totalidade do ensino:

- Tornar obrigatório um ensino de cuidados paliativos que aborde em profundidade as diferentes situações clínicas.

- Desenvolver a formação sobre o bom uso de opiáceos e de medicamentos sedativos.

- Suscitar um ensino universitário e de formação contínua sobre o que se entende por «obstinação irracional».

- Realçar, ao longo do curso, na formação dos estudantes de medicina, a exigência da relação humana nas situações de final de vida, com o concurso das ciências humanas e sociais, e leválos a uma reflexão sobre os excessos da medicalização.

- Tornar obrigatório para os internos, generalistas e especialistas primordialmente dedicados a doenças graves, um estágio em cuidados paliativos durante o internato.

Para os institutos de formação de outros cuidadores devem ser adotadas iniciativas análogas.

• Na formação contínua dos médicos (Développement Professionnel Continu), exigir que um dos programas de formação anual seguido por um médico no ativo, pelo menos em cada três anos, seja dedicado a cuidados paliativos e a atitudes a adotar face a uma pessoa doente em final de vida.

Para a formação contínua de cuidadores, devem ser adotadas iniciativas análogas.

c) Exercício profissional

O objetivo dos cuidados paliativos é prevenir e aliviar o sofrimento, preservar o mais possível a qualidade de vida dos doentes e dos seus conviventes, independentemente do estádio da doença e das necessidades terapêuticas. Assim, os cuidados paliativos consubstanciam-se mais como cuidados de apoio do que como cuidados de final de vida:

• Por conseguinte, introduzir cuidados paliativos desde o primeiro dia em que se anuncia ou descobre uma doença grave.

• Por conseguinte, incluir um especialista em cuidados paliativos, desde o início do seguimento do doente, nas comissões interdisciplinares de oncologia.

• Por conseguinte, inscrever o recurso a cuidados de apoio e cuidados paliativos nas recomendações de boas práticas elaboradas pelo alto-comissário da saúde [haute autorité de santé (HAS)], com o mesmo grau de exigência dos cuidados curativos.

Nesse sentido, pedir à HAS que elabore, para as doenças crónicas mais graves, recomendações sobre currículos na saúde que tenham em conta as vontades das pessoas doentes, incluindo o contexto de final de vida e a articulação das diversas competências no âmbito médico, médico-social e social (designadamente os assistentes sociais), coordenadas pelo médico de família, assistido, se for o caso, por pessoal preparado para essa coordenação.

d) Os hospitais e os estabelecimentos médico-sociais

• Pedir à HAS que se promova ações junto dos intensivistas sobre as suas práticas de reanimação tendo em vista evitar o mais possível criar situações de prolongamento irracional da vida.

• Fazer da qualidade dos tratamentos das pessoas em final de vida seguidas em estabelecimentos de saúde e em estabelecimentos médico-sociais, de acordo com as recomendações deste relatório, um elemento obrigatório da respetiva certificação.

• Reapreciar, com as autoridades competentes, o inadequado preçário de atividades cujas consequências são especialmente desastrosas para a cultura paliativa.

• Pedir às agências regionais de saúde (ARS) que a parir de 2013 garantam que cada estabelecimento de saúde ou médico-social possa ter acesso direta ou indiretamente a uma equipa móvel de cuidados paliativos. A comissão recomenda que o ministério da saúde promova a elaboração de um relatório que identifique até ao fim de 2013 as necessidades nesta área.

• Desenvolver a epidemiologia do final de vida pelo INSERM e pelo "Observatoire National de la Fin de Vie”.

• Tornar obrigatória para cada estabelecimento de saúde ou médico-social a transmissão dos dados epidemiológicos nos seus relatórios anuais de atividade.

e) O domicílio

• Pedir a cada ARS que disponibilize informação no seu sítio de Internet que identifique e dê visibilidade às diversas estruturas e competências, às quais os doentes e seus próximos se possam dirigir, assegurando a continuidade de cuidados curativos e de apoio (24 sobre 24 horas, todos os dias) no domicílio até ao final de vida.

• Pedir às ARS que assegurem a cobertura do território em cuidados paliativos ao domicílio 24 sobre 24 horas, todos os dias, conforme as recomendações da HAS citadas acima.

• Permitir que os médicos de família tenham acesso livre a todos medicamentos sedativos, sem o qual é ilusório conseguir ter tratamentos de final de vida ao domicílio adequados.

• Inscrever nas primeiras prioridades das ARS o reforço da coordenação entre a hospitalização no domicílio (HAD), os serviços de enfermagem ao domicílio (SSIAD) e os cuidados paliativos; e pedir aos poderes públicos que se envolvam numa reflexão sobre a fusão entre a HAD e os SSIAD, para garantir uma perfeita continuidade de todas as fases da assistência.

• Desconcentrar para as ARS as ajudas nacionais do setor médico-social de modo que possam contratualizar com as coletividades territoriais respetivas os programas de aperfeiçoamento da assistência ao domicílio e nos estabelecimentos que acolhem pessoas dependentes (EHPAD).

f) O acompanhamento

Pedir aos poderes públicos para:

• Reforçar ao apelo à solidariedade familiar de acordo com as situações.

• Apoiar as associações sem fins lucrativos de apoio ao fim de vida, tanto nos hospitais como no domicílio, facilitando, por exemplo, isenções fiscais aos doadores e classificação como serviço cívico.

• Considerar como trabalho as pausas compensadoras em contexto de assistência ao domicílio.

g) A neonatologia

A cultura paliativa pediátrica, que é mais recente que a das estruturas do adulto, tem beneficiado, em especial junto dos neonatologistas, de uma reflexão mais forte sobre as questões do final de vida do que a dos adultos. Deve continuar a desenvolver-se no mesmo sentido com reforço dos programas de formação e atenção às questões da obstinação irracional. Obstinação que nunca é a única base da medicina.

Toda a decisão de suspender tratamentos, como sejam os cuidados de apoio vital, deve ser sempre tomada com os pais e no quadro de uma permuta interdisciplinar. O trabalho em equipa protege sempre a criança, a sua família e os profissionais de saúde.

h) A decisão de um gesto letal nas últimas fases da assistência em final de vida

Quando a pessoa em final de vida, ou face a diretivas antecipadas incluídas no processo clínico, pede expressamente que se interrompa todo o tratamento suscetível de prolongar a sua vida, como seja toda a alimentação e hidratação, seria cruel “deixá-la morrer” ou “deixá-la viver”, sem lhe proporcionar um ato médico que acelere a ocorrência da morte.

É o que também acontece:

• Quando tal pedido se exprime pelos conviventes próximos se a pessoa estiver inconsciente, e na ausência de diretivas antecipadas incluídas no processo clínico, donde a comissão continuar a atribuir-lhes grande importância. Este pedido deve ser necessariamente submetido a uma discussão colegial a fim de se assegurar que está de acordo com os reais desejos da pessoa.

• Quando o tratamento em si mesmo é considerado, após discussão colegial com o doente e os seus conviventes, como uma obstinação irracional, e os cuidados de apoio passam a não ser mais do que um prolongamento artificial da vida.

Esta grave decisão assumida por um médico atuando em consciência, sempre fundamentado numa discussão colegial, e registada no processo clínico, pode corresponder, na opinião da comissão, às circunstâncias concretas de uma sedação profunda como está prevista na lei Leonetti.

Para a comissão, os critérios que uma lei necessitaria impor para este tipo de decisão, nunca poderão conter toda a complexidade e variabilidade da realidade. Mas parece evidente à comissão que, no espírito da lei Leonetti, seria uma espécie de brutalidade “deixar morrer” ou “deixar viver” uma pessoa após a paragem de todos os tratamentos e de cuidados de suporte.

Na opinião da comissão, esta grave decisão baseia-se mais nas orientações de boas práticas de uma medicina responsável do que numa qualquer nova disposição legislativa.

******

A comissão considera que estas propostas devem mobilizar os poderes públicos e o conjunto da sociedade de modo prioritário. Por tal razão não recomenda que se adotem apressadamente novas disposições legislativas para situações de final de vida. Apresenta aqui algumas reflexões sobre condutas não previstas pelas atuais leis.

3. Reflexões sobre condutas não previstas em leis relativas aos direitos dos doentes em final de vida

a) A assistência ao suicídio

Para a comissão, a assistência ao suicídio não pode em nenhum caso ser uma solução proposta como alternativa à ausência de cuidados paliativos ou de assistência condigna e real.

Mas para certas pessoas afetadas por uma doença evolutiva e incurável em estado terminal, a perspetiva de ser obrigada a viver até ao extremo fim, o seu final de vida, num ambiente medicalizado, onde a perda de autonomia, a dor e o sofrimento não podem ser aliviados senão por cuidados paliativos, pode parecer insuportável. Do que resulta que o desejo de interromper a sua existência e o seu pedido seja uma assistência ao suicídio sob a forma de medicamentos prescritos por um médico.

Estes pedidos, que são muito raros quando existe realmente uma possibilidade de acompanhar com cuidados paliativos, podem corresponder mais a uma vontade de poder dispor de um recurso último do que a uma verdadeira decisão de interromper a sua vida antes do tempo. Com efeito, no Estado do Oregon, EUA, onde o suicídio assistido atinge dois por mil falecimentos, metade das pessoas em final de vida que pedem – o obtêm – os medicamentos que conduzem ao suicídio, não os utilizam.

Se o legislador assume a responsabilidade de fazer uma lei sobre a assistência ao suicídio, os elementos seguintes devem ser tidos em conta:

• Garantir que a pessoa manifesta de modo explícito e repetido a sua vontade de pôr termo à sua vida com essa assistência.

• Reconhecer em sede de equipa médica a existência de uma situação de final de vida da pessoa doente.

• Garantir que a decisão da pessoa em final de vida seja tomada:

- na medida em que esteja com capacidade para um gesto autónomo.

- na medida em que esteja informada e livre na sua escolha.

- na medida em que tenha verdadeiro acesso a todas as soluções alternativas de acompanhamento e alívio da dor física e psíquica.

- na medida em que esteja informada das condições concretas do suicídio assistido.

- no quadro de uma troca colegial pluridisciplinar que envolva o doente, os seus conviventes próximos, o médico assistente, um médico não envolvido no tratamento em curso e um cuidador acompanhante do doente.

• Exigir a presença do médico assistente, ou em caso de objeção de consciência deste, do médico prescritor, tanto quando do gesto como da agonia.

• Garantir a objeção de consciência dos farmacêuticos.

• Assegurar que os medicamentos utilizados satisfazem as exigências da regulamentação e da segurança sanitária e farmacológica.

• Garantir a ausência de um calendário preestabelecido para a consumação do gesto.

• Garantir a notificação das informações (natureza da doença, motivos da decisão, ocorrências do gesto) feita pelo médico a uma estrutura nacional encarregada de fazer um relatório anual sobre o conjunto das informações recolhidas.

Nunca a administração por terceiros de uma substância letal a uma pessoa poderá ser considerada como uma assistência ao suicídio, quaisquer que sejam as diretivas antecipadas e mesmo que uma pessoa de confiança seja designada. Isso será sempre uma eutanásia ativa.

E, se o pedido for feito por uma pessoa consciente mas incapaz de concretizar por si mesma o gesto de suicídio assistido, a lei não poderá, por definição, autorizar que seja feito. Contudo a medicina não pode considerar-se satisfeita e ponderar que, a pedido da pessoa, se interrompam as medidas de suporte vital acompanhando com sedação.

b) A eutanásia

O gesto eutanásico a pedido de pessoas doentes, tal como atualmente é autorizado apenas na Bélgica e Holanda, é um ato médico que, pela radicalidade da sua execução, e pela programação precisa no tempo, interrompe súbita e prematuramente a vida.

Difere totalmente da decisão apresentada no ponto precedente. Difere igual e totalmente de uma assistência ao suicídio onde o ato letal é executado pela própria pessoa doente.

A eutanásia assenta profundamente na ideia que uma sociedade tem das missões da medicina, tendendo a torná-la no agente do dever universal da humanidade na prestação de cuidados e no acompanhamento de uma ação tão fortemente contestada. A comissão não vê como uma disposição legislativa favorável à eutanásia, tomada em nome do individualismo, poderia evitar esta tendência.

A comissão chama ainda a atenção para que toda a retirada de uma proibição cria outras situações extremas imprevistas à partida e suscetíveis de necessitarem de novas e repetidas leis. A título de exemplo, na Bélgica, foram apresentados 25 projetos de extensão de casos previstos na lei após 2002.

Conclusão

Toda a comunicação com as pessoas que conhecemos, os muitos depoimentos e viagens por toda a França e estrangeiro, as reuniões e audições revelam uma inquietação real sobre as preocupações, muitas vezes escondidas, com o final de vida e o impasse das respetivas respostas em França. A comissão reafirma duas observações centrais :

• a insuficiente aplicação 13 anos depois da lei destinada a garantir o acesso a cuidados paliativos, 10 anos depois da lei relativa aos direitos dos doentes (lei Kouchner) e, por fim, 7 anos depois da lei Leonetti.

• o caráter particularmente dramático das desigualdades quando do final de vida. De acordo com as suas extensas recomendações, a comissão sublinha fortemente: • antes do mais, o imperativo respeito pela palavra do doente e da sua autonomia.

• o desenvolvimento absolutamente necessário de uma cultura do paliativo e a abolição da fronteira entre cuidados curativos e paliativos.

• a predominância das decisões colegiais.

• a exigência de aplicar corajosamente as leis atuais em vez de estar sempre a imaginar novas. • a utopia de resolver pela lei a grande complexidade das situações do final de vida [«Não legislar sem vacilar, ou melhor, entre duas soluções prefira sempre a que requer menos direito e pede mais à moral e aos bons costumes» CARBONNIER, Jean. Flexible droit, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, EJA, Paris, 1998].

• o perigo de ultrapassar a barreira do proibido.

Se o legislador assumir a responsabilidade de uma despenalização da assistência ao suicídio, devem ser aqui afirmados dois pontos sem hesitação:

• a garantia estrita da liberdade de escolha demonstrativa da autonomia da pessoa.

• a obrigatoriedade de envolver principalmente a responsabilidade do Estado e a responsabilidade da medicina.

Do mesmo modo, se o legislador assumir a responsabilidade de despenalizar a eutanásia, a comissão entende alertar para a importância simbólica da alteração desta proibição pois:

• a eutanásia assenta profundamente na ideia que a sociedade faz do papel e dos valores da medicina.

• qualquer modificação duma proibição cria necessariamente novas situações extremas, suscitando uma procura indefinida de novas leis.

• toda a medicina comporta uma intervenção nos confins da vida sem que seja necessário legislar a todo o transe.

A comissão pretende enfatizar com o seu trabalho que seria ilusório pensar que o futuro da humanidade se resume à afirmação de uma liberdade individual sem limites, esquecendo que o ser humano apenas vive e se reinventa quando em ligação aos outros e dependendo dos outros. Um verdadeiro acompanhamento no final de vida só tem sentido no quadro de uma sociedade solidária que não se substitui à pessoa mas que mostra que a ouve e respeita no termo da sua existência.

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(1) NT: a lei Leonetti sobre os direitos dos doentes em final de vida foi publicada em abril de 2005 em França http://www.senat.fr/dossier-legislatif/ppl04-090.html
(2) NT: Jean Leonetti é cardiologista e deputado (UMP) francês http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Leonetti 2
(3) NT: Em Portugal, a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, prevê (artigos 11.º a 14.º) a figura de procurador de cuidados de saúde que qualquer pessoa pode nomear, independentemente, em alternativa ou cumulativamente à redação do “testamento vital”. http://dre.pt/pdf1sdip/2012/07/13600/0372803730.pdf
(4) NT: Em Portugal, a referida lei define (artigo 2.º, 1) que «As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente» e não aponta qualquer iniciativa ao médico, apenas referindo (artigo 3.º, 2) que «No caso de o outorgante recorrer à colaboração de um médico para a elaboração das diretivas antecipadas de vontade, a identificação e a assinatura do médico podem constar no documento, se for essa a opção do outorgante e do médico.»

(*) Penser solidairement la fin de vie // Rapport a Francois Hollande President de la Republique Francaise // Commission de reflexion sur la fin de vie en France // 18 décembre 2012 // La commission de réflexion sur la fin de vie: Président: Didier Sicard; Membres: Jean Claude Ameisen, Régis Aubry, Marie-Frédérique Bacqué, Alain Cordier, Chantal Deschamps, Eric Fourneret, Florence Gruat, Valérie Sebag-Depadt. Jean-Claude Ameisen, nommé Président du Comité Consultatif National d’Ethique en octobre 2012, a souhaité s’abstenir en raison de la demande qui pourrait être faite au CCNE par le Président de la République de questions concernant la fin de vie. Nous remercions Catherine Hesse, inspectrice générale des affaires sociales pour son aide précieuse et, Amélie Puccinelli, étudiante de cinquième année à Sciences Po Paris, pour l’intelligence de son regard, sa disponibilité extrême et son aide technique si décisive pour ce rapport. Quatre journalistes ont accompagné la commission en Belgique, Hollande, et dans quelques débats publics: Laetitia Clavreul (Le Monde), Béatrice Gurrey (Le Monde), Marine Lamoureux (La Croix), Violaine de Montclos (Le Point).