Parecer Cívico
Instituto Francês de Opinião Pública e pela Comissão Consultiva Nacional de Ética de França
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Este armazém foi criado para guardar e partilhar textos (e contextos) que tenho escrito ou traduzido, quase todos ao longo da “terceira” metade da minha vida, mas também antes. Até aos 35 anos formei-me e cresci, até aos 70 exerci e aprendi, agora deu-me para isto... 😊
Parecer Cívico
Instituto Francês de Opinião Pública e pela Comissão Consultiva Nacional de Ética de França
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Primeiro, é disparatado, é
absurdo, pois pretender instituir uma taxa moderadora para queixas não modera
e, mesmo que moderasse, nunca se deveria obstaculizar o legítimo direito de
alguém se queixar. A principal missão das ordens profissionais
é precisamente evitar que alguns contribuam para a má fama de todos os outros
profissionais. Ao contrário do que privilegiam –
defender, como se fossem sindicatos, os interesses dos seus associados – as
ordens foram criadas para perseguir os falsos profissionais e os maus profissionais.
Receber queixas é a sua obrigação primordial, combatê-las é um desatino.
Segundo, é um clamoroso
contrassenso, pois só favorece que o comum dos mortais consolide a velha
acusação de que as ordens só servem para que “eles” se protejam uns aos outros.
Em vez de dar sinais de que os dirigentes da Ordem dos Médicos prestam atenção
aos anseios e protestos que lhes chegam, vemos a criação de barreiras. Se é
verdade que a OM não tem, pelos estatutos atuais, meios legais adequados para
investigar até ao fim certas queixas, não há qualquer indicação
que seja por falta de meios financeiros que esteja
impedida de o fazer.
Terceiro, é um erro horrível
argumentar que a taxa será devolvida quando a queixa tiver fundamento. Significa
que quem se atreve a propor tal medida tem dificuldades em perceber que
o queixoso tem sempre razão. Não se trata de ser popular ou politicamente
correto! É verdade! O “cliente tem sempre razão” ou, por outras palavras, quem
reclama só o faz porque
pensa que tem razões para o fazer. Não vale a pena contrapor a existência de
litigantes patológicos ou de reclamantes obstinados, pois, além de minoritários,
estão, quase sempre, também eles, convencidos de que têm razão. A boa análise
de reclamações obriga-se a partir do princípio de que é no meio da lana-caprina
que se hão de encontrar as linhas gerais do que é preciso corrigir.
Quarto, é um susto já que não se conhece o
conteúdo dos novos estatutos da Ordem dos Médicos que estarão à espera de ser
aprovados pela Assembleia da República. Não os encontramos no sítio da OM ou da
AR, nem na revista da OM. Os estatutos que os órgãos executivos da OM aprovaram
não são do conhecimento público nem dos médicos. Sabemos que uma comissão foi
encarregada de elaborar uma versão. Sabemos que foram enviadas propostas e
sugestões, mas não sabemos o que foi submetido ao legislador. Perceber, no dia
em que o bastonário é reeleito numa eleição sem oponentes, que os estatutos
propostos contêm um tal disparate, um tal erro e uma tal insensatez só pode
levar a que receemos o mais que virá.
Já não exerço a profissão, mas sendo, por direito próprio, associado da OM não consigo calar a minha indignação e, se esta medida for por diante, só me resta pôr fim a um vínculo ininterrupto com mais de 40 anos.
Este código, proposto pela APASD (associação para a segurança dos doentes), será posto à consideração dos profissionais e, depois de ter acolhido diversos contributos redatoriais e de aprovado pelos órgãos institucionais apropriados, constituirá uma referência para um profissionalismo individual respeitador do bem-estar e da dignidade dos cidadãos a quem se destinam os serviços do Hospital Escola da Universidade Fernando Pessoa.
Todos os
prestadores de cuidados, sejam profissionais efetivos ou eventuais, sejam graduados
ou estejam em formação, desempenham as suas tarefas,
de modo a:
1.
Cumprir os respetivos objetivos
funcionais com a maior competência e atualização de conhecimentos, integrando-se nas equipas com espírito de
entreajuda.
2.
Considerar como primordiais os seus
deveres para com a pessoa doente, designadamente os deveres gerais de
informação e de procura do consequente consentimento livre e esclarecido para
todos os atos de saúde.
3.
Estabelecer relações de cortesia natural
com colegas e com utilizadores dos serviços, evitando
paternalismos condescendentes ou discriminações inaceitáveis.
4.
Demonstrar transparência de
procedimentos, recusando qualquer tipo de
ofertas ou apoios de quaisquer pessoas ou entidades, a menos que estejam
oficialmente aprovadas pelos órgãos próprios do Hospital Escola, e mantendo as respetivas chefias informadas da
existência de eventuais conflitos de interesse que possam surgir durante a sua
atividade profissional.
5.
Reconhecer o seu papel individual na
manutenção da confidencialidade dos dados de saúde e no respeito pelo direito à
privacidade das pessoas.
6.
Concorrer para a valorização científica
própria e dos seus colegas, promovendo a
qualidade do trabalho, a segurança dos doentes e a melhor eficiência
profissional.
7.
Informar as chefias, e outros organismos
adequados, dos acontecimentos adversos ou factos inesperados, ainda que sem
culpa ou responsabilidades, nomeadamente colaborando
na boa resposta às reclamações dos utentes.
8.
Contribuir, globalmente, para o bom-nome
e credibilidade do Hospital Escola, da Universidade Fernando Pessoa e dos seus
profissionais.
9.
Proceder com atenção aos custos
individuais ou coletivos, procurando
aperceber-se sempre das limitações de recursos.
Os doentes visitam os médicos nas consultas. Neste
sentido somos os visitantes. Vamos às consultas solicitar ajuda profissional
para enfrentar os nossos problemas de saúde. Sou um doente diabético e, como
tal, uma parte inevitável de minha vida é ser visitante de consultas.
Mas depois da visita volto à minha vida. No momento em
que sou visitante da consulta, encontro-me sob a autoridade do profissional que
supervisiona o meu estado, toma decisões e propõe ações. Mas, quando regresso à
minha vida, recupero a soberania. Já não sou visitante – governo-me ou
desgoverno-me a mim mesmo.
Muitos dos fatores que intervêm no estado da doença
relacionam-se com a minha vida. Os meus comportamentos e as minhas decisões
influenciam-na decisivamente. Na consulta não é possível falar da minha vida
como uma totalidade. Esta só às vezes é aludida. Mas o que predomina, quando
sou visitante, são as questões relacionadas com o estado da doença. Por isso, o
médico, que desempenha um papel tão importante na leitura e valorização dos resultados
no curso da doença, é um visitante da minha vida. Só se aproxima dela através
de alguns fragmentos que surgem numa conversa dirigida a resolver problemas
específicos relacionados com o tratamento.
A diferença entre a doença e a vida determina que os
pacientes sejam visitantes das consultas, mas autores das suas vidas. Os
médicos, que são os protagonistas nas consultas, podem ser, no melhor dos
casos, visitantes das nossas vidas. Estas têm lugar no exterior das consultas e
são difíceis de compreender nessa perspetiva. Só são afloradas em algumas das
suas dimensões, mas permanecem mudas no fundamental. O que se entende em
cuidados de saúde como “estilos de vida” é um conjunto de prescrições
dispersas, como um menu, que são invadidas por uma multiplicidade de
circunstâncias e situações que acontecem na vida individual de cada doente.
Os médicos tratam-nos segundo o nosso diagnóstico. Mas a
verdade é que o diagnóstico não torna iguais todos os que o compartilham. Não
somos como uma gama de automóveis que têm as mesmas características técnicas
para os mecânicos. Pelo contrário, os doentes não são fabricados em série, mas
cada um é uma recombinação de fatores individuais e atributos dos mundos que
vivem como seres sociais. Dentro da etiqueta diagnóstica, coexistem muitas pessoas
completamente distintas, que vivem mundos muito diferenciados e dotados de grande
heterogeneidade. Não me parece claro que tenhamos que ser tratados do mesmo modo,
ao jeito de algumas práticas clínicas focalizadas somente no diagnóstico.
Além da nossa doença, das nossas histórias médicas, somos
identificados por distintas variáveis de situação que nos diferenciam. O nosso
sexo, idade, situação familiar, educativa, profissional ou económica. Muitos
profissionais sobrevalorizam essas variáveis e fazem pacotes connosco. Tão
pouco é muito realista, porque, sem negar o que essas variáveis condicionam e
influenciam, o que verdadeiramente nos diferencia é a nossa vida, que sempre é
rigorosamente individual, de acordo com a nossa subjetividade.
Dizia Ortega y Gasset que “o homem é o Eu e a sua
circunstância”. É isso mesmo. A circunstância em que evolui a sua vida de
doente é um conjunto muito complexo que não se pode reduzir a uma relação entre
várias variáveis. É algo mais que isso. O eu é uma relação dinâmica entre o
corpo, a mente e o envolvimento social. Mas as relações entre estas componentes
tão pouco se podem reduzir a um modelo simples e homogéneo para todos.
O característico da vida individual é que supõe o
encontro do eu com o seu mundo específico. Cada pessoa encontra-se frente a
situações e sucessos únicos, que se repetem ou renovam. Além disso, a vida só
existe através da subjetividade, pela qual se selecionam e interpretam as experiências
e se põe à prova as perceções de cada um. A minha vida é o vivido pela minha pessoa
na minha perspetiva. Por isso a minha vida me diferencia dos outros. Nela sou insubstituível,
não é possível delegá-la nem que alguém a ocupe.
Uma das dimensões relevantes da vida é o futuro. A partir
do passado e do presente cada um faz uma composição acerca de seu futuro. No
caso dos doentes diabéticos, o futuro apresenta-se como um horizonte sobre o
qual pairam ameaças. Assim se configura um sofrimento inespecífico e sempre
associado à doença. Esta situação dá lugar a um processo de pensamentos e
sentimentos, não totalmente racionalizados, que crescem no interior da pessoa e
que nem sempre são facilmente comunicáveis. O paciente necessita ter uma visão
do seu futuro, que possa reduzir as ameaças e aspirar a conservar o controlo.
Este é o fator que configura a solidão do doente crónico.
O dilema da vida de um doente diabético é resolver a
tensão entre o presente e o futuro. As restrições na vida diária implicadas
pela doença têm que ser compensadas mediante gratificações. Estas significam
transgressões ao tratamento. Esta equação entre as restrições, assim como os
sofrimentos a que conduzem, e as gratificações, tão difícil de resolver no quotidiano,
está permanentemente presente. É preciso administrá-la a todos o momento.
Assim se configura o dilema de um tempo, que para nós
significa dizer sempre, sem esperança fundada de reversão à situação anterior à
doença. Aqui radica o cerne da vida de um doente diabético.
Por isso, quando nos apresentamos nas consultas como
visitantes, o mais importante é que nos entendam. Que percebam que temos uma
vida, uma temporalidade e que estas se regem pela equação enunciada, o que
torna tudo difícil. Então, para que um médico te trate bem é preciso que
compreenda a tua singularidade, a tua condição e a complexidade de tua vida. Se
se levantam problemas de natureza clínica, o médico tem que realçar os riscos e
propor alternativas. Mas, na decisiva questão da vida do doente, a sua posição
é apenas uma perspetiva, que não pode substituir a do doente quando este passa
a porta da consulta e volta à sua vida.
Por isso, nas consultas, os médicos só podem ser
visitantes das vidas dos doentes. Manter as distâncias e perceber as suas
limitações, como faz um visitante. Daí que o mais importante na consulta seja
melhorar a relação entre as partes. Esta é a questão central. Uma boa relação assenta
no valor dado à compreensão do doente e da sua circunstância. Assim se pode
fazer a ponte entre o tratamento e a vida. Com esta premissa, a boa comunicação
pode reforçar a confiança mútua, o que é um requisito essencial da boa
assistência.
Mas há problemas que não se podem combater só com
tecnologia. Assim, no caso dos numerosos doentes cuja direção de vida não tem
rumo, a atuação do profissional é limitada. O mesmo se passa com doentes a quem
faltam recursos psicossociais mínimos. Nestes casos, receio que o médico, além
de possível visitante das suas vidas, se torne numa mera testemunha.
É, para mim, uma honra, uma responsabilidade e alguma emoção, estar hoje aqui
a dizer as primeiras palavras deste Congresso. Espero não desiludir quem a mim
atribuiu tal tarefa.
Hoje e amanhã, vamos ouvir falar de muitos e variados aspetos do SNS. Em
muitos casos, vamos falar de custos, sustentabilidade, financiamentos.
Pois, para foco desta minha intervenção, escolhi falar-vos de temas que
poucos ou nenhuns custos têm.
Quero falar de sonhos! Desculpem o atrevimento mas I HAVE A DREAM!
Ou melhor, NÓS TEMOS UM SONHO!
Que o SNS seja cada vez mais o lugar onde tanto utilizadores como
prestadores reconhecem nos outros direitos humanos básicos e o fazem com
naturalidade.
SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!
CONFIDENCIALIDADE
Que o SNS seja, ou continue a ser, o lugar onde os cidadãos acreditam que
os seus dados pessoais, os seus dados de saúde, estão a salvo de usos
ilegítimos, por parte de companhias ou de empresas que apenas visam o lucro dos
seus acionistas. Ou da curiosidade dos “amigos” e menos amigos…
RESPEITO pela
DIGNIDADE das PESSOAS
Que o SNS seja – ou que em certas das suas unidades de saúde passe a ser –
o lugar onde uma reclamação não seja considerada uma perda de tempo, seja
respondida com respeito pela dignidade das pessoas que, certa ou erradamente,
se sentiram de algum modo defraudadas nas suas expectativas. Respondidas a
tempo. Não respondidas ao lado…
PROFISSIONALISMO
Que seja, sempre, o lugar onde os seus profissionais se sintam motivados para
um desempenho que a si mesmos dê sentido de vida, prestígio social, motivação
pessoal, capacidade para enfrentar dificuldades e incompreensões.
QUALIDADE
Que o SNS seja, quando comparado com outras instituições prestadoras de
cuidados de saúde, do setor privado ou do setor social, uma referência de
excelência técnica.
Que isso não seja apenas verificado nos cuidados relativos a situações
críticas
mas se estenda ao mais banal dos atendimentos. (esta custa dinheiro)
SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!
CONSENTIMENTO INFORMADO
VOLUNTÁRIO
Que no SNS o relacionamento com os doentes, assim como com as pessoas saudáveis,
se baseie sempre numa informação honesta, completa e adaptada à condição de
cada um, gradual se necessário, sem paternalismos nem condescendências, sem
mentiras ainda que piedosas, de tal modo que a adesão de cada um aos
tratamentos propostos ou a aceitação de medidas preventivas sejam a
consequência natural desse relacionamento.
Que no SNS o direito à recusa (ou a uma segunda opinião) não mais se
traduza em retaliações assistenciais mas sim num esforço suplementar no
explicar da informação.
SIM, NÓS TEMOS UM SONHO!
UNIVERSALIDADE
Que o SNS esteja sempre em prontidão para atender a todos segundo as suas
necessidades e não segundo as suas possibilidades.
BEM-VINDOS AO
PRIMEIRO CONGRESSO DO “SNS, PATRIMÓNIO DE TODOS!”
Stéphane Courtois
Tradução parcial do original sito em Le
consultant en éthique médicale : quel statut? quel rôle ?, Université du Québec à Trois-Rivières
(…)
Quais
são, de facto, as tarefas mais vezes citadas pelos consultores de ética médica
quando questionados sobre qual é o papel da consulta de ética? Aponto aqui as
principais caraterísticas geralmente mencionadas de forma desordenada e sem me
preocupar ainda com questões normativas:
1. O
consultor de ética médica tem um papel de árbitro a desempenhar em conflitos e
disputas que possam surgir, quer entre partes interessadas da equipe médica,
quer entre esta e o paciente.
2. O
consultor de ética médica tem a desempenhar o papel de “ativador” de discussões
de conteúdo ético (seminários, reuniões de discussão ética em unidades de
cuidados, etc.).
3. O
consultor de ética médica é um “articulador” que induz os membros da equipa
clínica (ou da comissão de ética) a esclarecerem a natureza de suas
preocupações sobre um caso clínico e expressarem as suas opiniões, evitando que
um problema recorrente volte a acontecer.
4. O
consultor de ética médica é também um analista: esmiúça conceitos éticos
subjacentes às preocupações expressas em 3, clarifica valores, normas morais e
legais, etc.
5. É
também o que se poderia chamar um “advogado da moralidade”: tem de encontrar a
solução mais imparcial possível quando há um conflito de interesses ou valores,
seja entre os membros da equipa médica sobre o que fazer numa determinada
situação, seja entre eles e o hospital ou entre eles e o paciente (ou seu representante),
etc.
6. O
consultor de ética é um promotor de “aprendizagem ativa”: pode confrontar os
médicos com uma visão diferente das suas, levando-os a reconsiderar a sua
interpretação de um caso clínico.
7. O
consultor de ética é um conselheiro, tanto para a tomada de decisões clínicas
como na redação de políticas de ética do hospital, no desenvolvimento de
protocolos, diretrizes, etc.
8. O
consultor de ética pode dar apoio emocional, tanto a profissionais como a
pacientes em situações críticas.
9. O
consultor de ética age muitas vezes como guia espiritual de doentes, sobretudo
se tem formação em teologia.
(…)
Segundo
ele, um “código de ética para os consultores de ética” devia preencher os
seguintes cinco objetivos principais:
1.
Permitiria identificar os padrões mínimos de conduta ética destinados a
consultores e proporcionar critérios claros e precisos para distinguir entre
comportamento correto e incorreto. Como mencionei anteriormente, Freedman
acredita que mesmo o especialista em ética clínica pode mentir, enganar,
iludir, etc. Não é nem mais nem menos propenso à negligência do que qualquer
outra categoria profissional.
2. Um
código de ética seria um guia para a resolução de dilemas éticos. Mais uma vez,
até mesmo os consultores de ética são, segundo Freedman, expostos a tais
dilemas: mesmo o pensador mais astuto pode cometer erros de julgamento,
experienciar conflitos de valor ou interesse, etc., de modo que as suas
recomendações não são infalíveis.
3. Um
código de ética poderá ser um instrumento de educação profissional: a ética
clínica guia os consultores em situações morais difíceis, fora dos percursos
académicos próprios de teólogos ou filósofos, e um código pode ser usado para
consultores em fase de aprendizagem.
4. Um
código de ética alimenta a cultura profissional e reflete-a. Poderia ser a
personificação do “ethos” da prática da consulta de ética para todos aqueles
que aspiram a prestar este serviço.
5. Um
código de ética, finalmente, poderia ser usado para especificar o que,
exatamente, se espera de um bom consultor de ética, um consultor de “competente”,
para distinguir as práticas cuja responsabilidade lhes deve sem imputada das
que o não devem ser. Tal coisa está longe de ser algo de supérfluo, dada a
incerteza em torno desta prática.
(…)
3. Conclusão Como eu mencionei, parece-me que o
consultor de ética mais “competente” é aquele que consegue, através da
educação, tornar as pessoas que recorrem à consulta de ética autónomas no plano
moral, capacitá-las a tomar suas próprias decisões de forma independente. Por
outras palavras, o padrão último pelo qual devemos medir os resultados, bons ou
maus, da consulta de ética é a autonomia do consulente, a sua capacidade de se emancipar da própria
consulta de ética. O objetivo da consulta de ética deve ser o de assegurar que este
serviço não é mais necessário. Esta é a razão fundamental pela qual a
profissionalização do trabalho em consulta de ética me parece ser irrelevante.
Isto não é simplesmente uma dificuldade passageira, mas um óbice de princípio. Reconhecer uma tal profissão seria,
em minha opinião - e eu estou aqui de acordo com G. Scofield, A. L. Caplan ou
F. Baylis - confundir as componentes técnicas e as componentes de avaliação do conhecimento
humano, quando apenas as primeiras podem ser profissionalizadas, e não as
segundas.
Para
voltar à importante distinção feita pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, a perícia ética é um saber-fazer que expressa uma “competência
humana universal” – todos são capazes de discernimento moral. Já a perícia
profissional corresponde a um saber-fazer que expressa uma “competência
especial” ou seja, é compartilhada apenas por determinados grupos de indivíduos
em detrimento de outros. Dito de outro modo: enquanto não há perícia
profissional fora da experiência profissional, ou seja, fora do conhecimento
adquirido através da formação académica própria de um campo profissional (por
exemplo, medicina), há uma competência moral fora da formação ética académica,
ou mesmo fora da experiência adquirida pelo consultor de ética junto à
cabeceira do paciente. A “perícia ética” não pode, portanto, ser reduzida e
limitada ao conhecimento académico teórico, ou à experiência prática adquirida
em situações muito específicas, como situações clínicas. Em suma, para usar
desta vez a linguagem de Caplan, não há e não pode haver “especialistas” em
questões morais, pessoas com um corpo de conhecimentos esotéricos em ética a
que acedem de modo exclusivo, de modo profissional. Existe, pelo contrário, a “perícia
moral”, que não está reservada apenas aos especialistas em ética – é algo que é
de todos.
Certamente,
alguns dirão que há graus de competência ética. Os seguidores da Kohlberg, por
exemplo, provavelmente diriam que a real “experiência ética” é a capacidade de
raciocinar moralmente aos mais altos níveis do desenvolvimento moral
(pós-convencional). Nem todos terão, assim, esta perícia. Mas um pouco de
reflexão mostra que essa teoria confirma, mais do que desmente, o meu ponto: a “perícia
ética” assim descrita está aberta a todos, é a expressão mais avançada de um
saber-fazer próprio de todos. Não é o resultado de uma formação académica
especial, mas o resultado de um processo de aprendizagem natural na nossa
capacidade de resolver problemas no plano moral.
Do
exposto, deve ser concluído, na minha opinião, o seguinte: se há diferença
alguma entre a competência moral dos chamados especialistas em ética e a das
pessoas comuns, a resposta apropriada não é ampliar esta lacuna através da
criação de uma ordem profissional, mas antes tentar preenchê-la educando os
outros a pensar por si mesmos e tornar irrelevante, pelo menos no longo prazo,
a necessidade de consultores de ética. Esta é a objeção central que importa
valorizar, parece-me, contra qualquer projeto de profissionalizar essa atividade
de serviço que é, e deve continuar a ser, a consulta de ética. A presença cada
vez mais importante de consultores de ética nos nossos hospitais (ou outros
sectores profissionais), oriundos de diversos centros de consulta de ética,
oferecendo serviços profissionais, bem como a existência de associações de
ética que reivindicam um estatuto profissional, tudo isso é, obviamente, uma
situação de facto que não podemos contestar e com que devemos, ao que parece,
conviver cada vez mais nos próximos anos. A única conclusão plausível parece
ser tomar as medidas adequadas para regular essas atividades e combater os
efeitos potencialmente prejudiciais tanto para os potenciais consulentes como
para os próprios consultores. Daí as recomendações que fiz em favor de um
código de ética.
Em face
do exposto, sou forçado a admitir que a consulta de ética, pelo menos na sua
forma atual, partilha, pelo menos, uma coisa em comum com a atividade
profissional: a necessidade de ser regida por regras que protegem profissionais
e clientes. Mas aqui a analogia cessa. Para mim, a consulta de ética será, quando
muito, uma “quase profissão”. Enquanto a atividade profissional tem por base a
assimetria existente entre o profissional e o cliente, em que o primeiro tem
uma experiência que o segundo não tem, esta assimetria desaparece ao fazer-se
da autonomia do cliente, assim como da sua capacidade para se libertar
permanentemente do serviço do especialista em ética, o critério de excelência
da consulta de ética, como sugiro. Nesta perspetiva, um código de ética
concebido para eticistas teria, a meu ver, que cumprir um papel adicional em relação
aos códigos de conduta comuns: teria de definir os objetivos da consulta de
ética de modo que ficasse claro que este trabalho tem de obedecer a padrões diferentes dos que regem outras profissões,
padrões a que eu chamo cívicos e educacionais (como o fazem as regras de ética
que eu elenquei anteriormente, por exemplo a regras números 3 e 5). Ajudar os
outros a juntar-se à maioria, no sentido em que o entendia Kant, para se
tornarem cidadãos adultos responsáveis pelas suas ações e decisões, não é
servir os interesses de uma profissão, é servir a democracia, é servir os
interesses públicos, é trabalhar para colmatar o fosso entre os cidadãos
adultos, moralmente autónomos, e outros – os que, com toda a probabilidade, ainda
não o são. Um código de ética para os especialistas em ética teria, finalmente,
a missão de circunscrever os limites
da
consulta de ética, os limites que são os da própria profissionalização. Penso que esses limites mereceriam
ser explicados numa regra de conduta, por exemplo a seguinte (regra n.º 6): “A
consulta de ética deve continuar a ser uma atividade de serviço desempenhada de
forma voluntária por pessoas que pertencem a ordens profissionais que já
contenham em si finalidades de educação moral e cívica de outros profissionais ou
dos seus clientes, e não deve levar à criação de um órgão profissional
independente”. Penso, também, por essa razão, que um código de ética para
especialistas em ética deve ser concebido de modo que não “perpetue” o trabalho
da consulta. Pode-se presumir que tal código irá desaparecer um dia juntamente com
a necessidade de haver consultas de ética.
A lei das associações públicas profissionais (1), recentemente aprovada, estipula (artigo 8.º) que os seus estatutos «devem regular» o «Provedor dos destinatários dos serviços, se o houver».
A mesma
lei refere (artigo 18.º) que o «provedor
dos destinatários dos serviços, quando exista», tem «legitimidade
para participar factos suscetíveis de constituir infração disciplinar ao órgão
com competência disciplinar».
Sobre
esta nova figura, a lei estabelece que, «sem prejuízo do estatuto do Provedor de Justiça, as associações
públicas profissionais podem designar uma personalidade independente com a
função de defender os interesses dos destinatários dos serviços profissionais
prestados pelos membros daquelas» e que este provedor «é designado nos termos previstos nos estatutos da
associação e não pode ser destituído, salvo por falta grave no exercício das
suas funções»
(artigo 20.º).
O mesmo
artigo atribui ao provedor a competência de «analisar as queixas apresentadas pelos destinatários dos
serviços e fazer recomendações, tanto para a resolução dessas queixas, como em
geral para o aperfeiçoamento do desempenho da associação», determinando que o cargo possa «ser remunerado, nos termos dos estatutos ou
do regulamento da associação» e que «a
pessoa designada para o cargo de provedor [caso seja seu membro, deve requerer] a suspensão da sua inscrição».
Havendo
notícia de que a Ordem dos Médicos tem em curso a revisão dos seus estatutos,
bom seria que não se perdesse a oportunidade de demonstrar que a nossa
associação pública profissional não deixa os seus créditos por mão alheia,
apesar de a lei permitir, aparentemente, que a existência de um provedor seja
opcional.
Se é
certo que a Ordem dos Médicos, enquanto associação pública profissional, tem
por primeira atribuição a «defesa
dos interesses gerais dos destinatários dos [seus] serviços» (artigo 5.º), sabemos como tem sido
predominante a «representação
e a defesa dos interesses gerais da profissão» e, quiçá, dos profissionais. É por isso que, salvo
melhor opinião, instituir um Provedor da Medicina, no seio da Ordem, poderia
significar uma nova e sincera postura, no respeito pelo que consta do atual
Estatuto (2), como primeira das suas finalidades essenciais: «defender a ética, a deontologia e a
qualificação profissional médicas, a fim de assegurar e fazer respeitar o
direito dos utentes a uma medicina qualificada» (artigo 6.º).
O
Provedor da Medicina deveria ser escolhido através de um concurso, com regras
predefinidas, a que pudessem apresentar-se médicos que tivessem atingido, pelo
menos, o grau de chefe de serviço ou equivalente, aposentados (ou no ativo, mas
dispostos a suspender a sua atividade), que se manifestassem dispostos a
desempenhar o cargo por um período de 4 anos e se obrigassem a fazê-lo de modo
tão discreto quanto autónomo.
A gestão
das reclamações recebidas na Ordem, relativas ao desempenho de médicas e
médicos, deveria ser feita de tal modo que as questões que o Provedor
apresentasse aos visados necessitariam de uma resposta imediata, sendo a sua
ausência penalizada adequadamente. As recomendações do Provedor deveriam ter um
embargo de publicidade, com prazo por este estabelecido, e definitivamente
arquivadas sem publicidade em caso de total satisfação. O Provedor, a quem
deveria ser disponibilizado apoio administrativo e jurídico prioritários,
deveria assumir o compromisso de não conceder entrevistas ou emitir notas à
Comunicação Social, salvo em casos excecionais e precedidas de participação ao
Bastonário e tempo suficiente para uma resposta deste.
Creio
bem que este tema poderia dar origem a um debate interessante e proveitoso.
Recomendações e reflexões
A primeira recomendação é, sobre todas as outras, a de
dar a máxima importância à palavra e à vontade das pessoas doentes no final de
vida de modo que sejam compreendidas na sua situação de extrema
vulnerabilidade.
1.
Princípios gerais
Fazer a
máxima força para a apropriação da lei Leonetti (1, 2) pela
sociedade e pelo conjunto de médicos e cuidadores, nomeadamente com campanhas
regulares de informação e com um reforço especial na formação, para lhe dar a
necessária eficácia, pois não é aceitável que não esteja a ser aplicada sete
anos depois de ter sido aprovada.
Realizar
uma avaliação do financiamento e dos requisitos em pessoal de saúde necessários
a um real acesso de todos a estes cuidados. Atuar de modo que estes
financiamentos sejam atribuídos. Favorecer a afetação de acompanhantes
benévolos.
Ter
consciência de que o recurso apenas a unidades de cuidados paliativos nunca
poderá resolver a totalidade das situações, mesmo que estas estruturas existam
em número muito elevado.
Ter
consciência de que a morte diretamente ligada a uma prática letal não
representaria também senão uma proporção mínima de falecimentos se esta prática
fosse legalizada, como se pode ver noutros países que não a França.
A grande
desigualdade em termos de acesso a um acompanhamento humano adequado ao final
de vida e, a
contrario, a sensação forçada de que os cuidados paliativos são a
única resposta boa, podem estar na origem de uma profunda angústia social que
explica em parte a procura insistente da eutanásia.
Chamar a
maior atenção para as necessidades da imensa maioria das pessoas em final de
vida, cuja situação não se limita às unidades de cuidados paliativos. Ter uma
política proativa de desenvolvimento de cuidados paliativos no domicílio
prevendo “pausas reparadoras” para os conviventes.
Fazer
acompanhar o anúncio de uma doença grave com um projeto específico para o final
de vida, concedendo toda a atenção às preferências da pessoa.
2.
Propostas sobre condutas previstas nas leis relativas aos direitos dos doentes em
final de vida
Para assegurar a efetividade dos textos legais (Lei
relativa ao acesso a cuidados paliativos 1999, Kouchner 2002, Leonetti 2005),
adotar disposições regulamentares sobre:
as
condições em que é disponibilizada uma informação exata, inteligível, clara e
adequada ao doente e aos seus próximos, relativa à abstenção, limitação ou
interrupção de tratamentos, ou à intensificação de tratamentos da dor e de
sintomas, ou à sedação terminal;
as
condições que respeitem a vontade da pessoa;
as
condições de seguimento dos procedimentos efetuados.
O conjunto de propostas da comissão adiante enunciado
deve ter prioridade na alocação de meios financeiros e pode ser financiado por
uma reafetação de recursos desproporcionalmente centrados e pouco questionados
nos cuidados curativos, sendo mais bem aproveitados na assistência em final de
vida.
a) As
diretivas antecipadas
Realizar regularmente uma ampla campanha de informação
junto dos cidadãos, dos médicos e dos curadores sobre a importância das
diretivas antecipadas, a qualidade da sua redação e a efetividade do seu uso;
assim como sobre a possibilidade de designar uma pessoa de confiança e sobre a
função que lhe é confiada (3). Diferenciar nitidamente dois procedimentos:
De
acordo com a lei, um primeiro documento de diretiva antecipada poderá ser
proposto pelo médico assistente a todo o adulto que o deseje, sem qualquer
obrigatoriedade, qualquer que seja o estado de saúde, e mesmo que esteja de boa
saúde, o qual deve ser regularmente atualizado (4).
A comissão recomenda que o ministério da saúde formalize
a partir de 2013 um modelo de documento inspirado nos exemplos estrangeiros. [Por
exemplo as diretivas suíças (Academia médica suíça), alemãs, americanas (por
exemplo Oregon Health Decisions)]
Em caso
de doença grave diagnosticada, ou em caso de intervenção cirúrgica comportando grande
risco, deve ser proposto um outro documento [Tendo em conta por exemplo o
programa seguido por um número crescente de Estados nos EUA (Physician orders
for life-sustaining treatment)] de vontades relativo especificamente
aos tratamentos de final de vida, a acrescentar ao primeiro, nomeadamente no quadro
de um diálogo entre a equipa médica e o subscritor.
- Este documento é assinado pelo doente
que o deseje (o doente tem o direito total de se manter na ignorância da sua
doença e de não querer manifestar as suas escolhas) e também pelo seu médico
assistente.
- Este documento, facilmente
identificado pela sua cor própria, deve ser obrigatoriamente inserido do
processo clínico do doente.
- Para esse efeito, a comissão
recomenda que seja publicado um decreto em 2013 e que o ministério da saúde aí
formalize um tal documento, inspirando-se nomeadamente no modelo dos EUA.
Criar um
ficheiro nacional informatizado destes dois documentos, que seja facilmente
utilizável em situações de urgência.
b) A
formação
Pedir à conferência de decanos das faculdades de medicina
para, a partir de 2013:
Criar em
cada universidade um curso universitário especificamente destinado a cuidados
paliativos.
Repensar
em profundidade o ensino médico de modo que as atitudes curativas não se
apropriem da totalidade do ensino:
- Tornar obrigatório um ensino de
cuidados paliativos que aborde em profundidade as diferentes situações
clínicas.
- Desenvolver a formação sobre o bom
uso de opiáceos e de medicamentos sedativos.
- Suscitar um ensino universitário e de
formação contínua sobre o que se entende por «obstinação irracional».
- Realçar, ao longo do curso, na
formação dos estudantes de medicina, a exigência da relação humana nas
situações de final de vida, com o concurso das ciências humanas e sociais, e
leválos a uma reflexão sobre os excessos da medicalização.
- Tornar obrigatório para os internos,
generalistas e especialistas primordialmente dedicados a doenças graves, um
estágio em cuidados paliativos durante o internato.
Para os institutos de formação de outros cuidadores devem
ser adotadas iniciativas análogas.
Na
formação contínua dos médicos (Développement Professionnel Continu), exigir
que um dos programas de formação anual seguido por um médico no ativo, pelo
menos em cada três anos, seja dedicado a cuidados paliativos e a atitudes a
adotar face a uma pessoa doente em final de vida.
Para a formação contínua de cuidadores, devem ser
adotadas iniciativas análogas.
c)
Exercício profissional
O objetivo dos cuidados paliativos é prevenir e aliviar o
sofrimento, preservar o mais possível a qualidade de vida dos doentes e dos
seus conviventes, independentemente do estádio da doença e das necessidades
terapêuticas. Assim, os cuidados paliativos consubstanciam-se mais como
cuidados de apoio do que como cuidados de final de vida:
Por
conseguinte, introduzir cuidados paliativos desde o primeiro dia em que se
anuncia ou descobre uma doença grave.
Por
conseguinte, incluir um especialista em cuidados paliativos, desde o início do
seguimento do doente, nas comissões interdisciplinares de oncologia.
Por
conseguinte, inscrever o recurso a cuidados de apoio e cuidados paliativos nas
recomendações de boas práticas elaboradas pelo alto-comissário da saúde [haute
autorité de santé (HAS)], com o mesmo grau de exigência dos cuidados curativos.
Nesse sentido, pedir à HAS que elabore, para as doenças
crónicas mais graves, recomendações sobre currículos na saúde que tenham em
conta as vontades das pessoas doentes, incluindo o contexto de final de vida e
a articulação das diversas competências no âmbito médico, médico-social e
social (designadamente os assistentes sociais), coordenadas pelo médico de
família, assistido, se for o caso, por pessoal preparado para essa coordenação.
d) Os
hospitais e os estabelecimentos médico-sociais
Pedir à
HAS que se promova ações junto dos intensivistas sobre as suas práticas de
reanimação tendo em vista evitar o mais possível criar situações de
prolongamento irracional da vida.
Fazer da
qualidade dos tratamentos das pessoas em final de vida seguidas em
estabelecimentos de saúde e em estabelecimentos médico-sociais, de acordo com
as recomendações deste relatório, um elemento obrigatório da respetiva
certificação.
Reapreciar,
com as autoridades competentes, o inadequado preçário de atividades cujas
consequências são especialmente desastrosas para a cultura paliativa.
Pedir às
agências regionais de saúde (ARS) que a parir de 2013 garantam que cada
estabelecimento de saúde ou médico-social possa ter acesso direta ou
indiretamente a uma equipa móvel de cuidados paliativos. A comissão recomenda
que o ministério da saúde promova a elaboração de um relatório que identifique
até ao fim de 2013 as necessidades nesta área.
Desenvolver
a epidemiologia do final de vida pelo INSERM e pelo "Observatoire National
de la Fin de Vie”.
Tornar
obrigatória para cada estabelecimento de saúde ou médico-social a transmissão
dos dados epidemiológicos nos seus relatórios anuais de atividade.
e) O
domicílio
Pedir a
cada ARS que disponibilize informação no seu sítio de Internet que identifique
e dê visibilidade às diversas estruturas e competências, às quais os doentes e
seus próximos se possam dirigir, assegurando a continuidade de cuidados
curativos e de apoio (24 sobre 24 horas, todos os dias) no domicílio até ao
final de vida.
Pedir às
ARS que assegurem a cobertura do território em cuidados paliativos ao domicílio
24 sobre 24 horas, todos os dias, conforme as recomendações da HAS citadas
acima.
Permitir
que os médicos de família tenham acesso livre a todos medicamentos sedativos,
sem o qual é ilusório conseguir ter tratamentos de final de vida ao domicílio
adequados.
Inscrever
nas primeiras prioridades das ARS o reforço da coordenação entre a
hospitalização no domicílio (HAD), os serviços de enfermagem ao domicílio
(SSIAD) e os cuidados paliativos; e pedir aos poderes públicos que se envolvam
numa reflexão sobre a fusão entre a HAD e os SSIAD, para garantir uma perfeita
continuidade de todas as fases da assistência.
Desconcentrar
para as ARS as ajudas nacionais do setor médico-social de modo que possam contratualizar
com as coletividades territoriais respetivas os programas de aperfeiçoamento da
assistência ao domicílio e nos estabelecimentos que acolhem pessoas dependentes
(EHPAD).
f) O
acompanhamento
Pedir aos poderes públicos para:
Reforçar
ao apelo à solidariedade familiar de acordo com as situações.
Apoiar
as associações sem fins lucrativos de apoio ao fim de vida, tanto nos hospitais
como no domicílio, facilitando, por exemplo, isenções fiscais aos doadores e
classificação como serviço cívico.
Considerar
como trabalho as pausas compensadoras em contexto de assistência ao domicílio.
g) A
neonatologia
A cultura paliativa pediátrica, que é mais recente que a
das estruturas do adulto, tem beneficiado, em especial junto dos
neonatologistas, de uma reflexão mais forte sobre as questões do final de vida
do que a dos adultos. Deve continuar a desenvolver-se no mesmo sentido com
reforço dos programas de formação e atenção às questões da obstinação
irracional. Obstinação que nunca é a única base da medicina.
Toda a decisão de suspender tratamentos, como sejam os
cuidados de apoio vital, deve ser sempre tomada com os pais e no quadro de uma
permuta interdisciplinar. O trabalho em equipa protege sempre a criança, a sua
família e os profissionais de saúde.
h) A
decisão de um gesto letal nas últimas fases da assistência em final de vida
Quando a pessoa em final de vida, ou face a diretivas
antecipadas incluídas no processo clínico, pede expressamente que se interrompa
todo o tratamento suscetível de prolongar a sua vida, como seja toda a
alimentação e hidratação, seria cruel “deixá-la morrer” ou “deixá-la viver”,
sem lhe proporcionar um ato médico que acelere a ocorrência da morte.
É o que também acontece:
Quando
tal pedido se exprime pelos conviventes próximos se a pessoa estiver
inconsciente, e na ausência de diretivas antecipadas incluídas no processo
clínico, donde a comissão continuar a atribuir-lhes grande importância. Este
pedido deve ser necessariamente submetido a uma discussão colegial a fim de se
assegurar que está de acordo com os reais desejos da pessoa.
Quando o
tratamento em si mesmo é considerado, após discussão colegial com o doente e os
seus conviventes, como uma obstinação irracional, e os cuidados de apoio passam
a não ser mais do que um prolongamento artificial da vida.
Esta grave decisão assumida por um médico atuando em
consciência, sempre fundamentado numa discussão colegial, e registada no
processo clínico, pode corresponder, na opinião da comissão, às circunstâncias
concretas de uma sedação profunda como está prevista na lei Leonetti.
Para a comissão, os critérios que uma lei necessitaria
impor para este tipo de decisão, nunca poderão conter toda a complexidade e
variabilidade da realidade. Mas parece evidente à comissão que, no espírito da
lei Leonetti, seria uma espécie de brutalidade “deixar morrer” ou “deixar viver”
uma pessoa após a paragem de todos os tratamentos e de cuidados de suporte.
Na opinião da comissão, esta grave decisão baseia-se mais
nas orientações de boas práticas de uma medicina responsável do que numa
qualquer nova disposição legislativa.
******
A comissão considera que estas propostas devem mobilizar
os poderes públicos e o conjunto da sociedade de modo prioritário. Por tal
razão não recomenda que se adotem apressadamente novas disposições legislativas
para situações de final de vida. Apresenta aqui algumas reflexões sobre
condutas não previstas pelas atuais leis.
3.
Reflexões sobre condutas não previstas em leis relativas aos direitos dos
doentes em final de vida
a) A
assistência ao suicídio
Para a comissão, a assistência ao suicídio não pode em
nenhum caso ser uma solução proposta como alternativa à ausência de cuidados
paliativos ou de assistência condigna e real.
Mas para certas pessoas afetadas por uma doença evolutiva
e incurável em estado terminal, a perspetiva de ser obrigada a viver até ao
extremo fim, o seu final de vida, num ambiente medicalizado, onde a perda de
autonomia, a dor e o sofrimento não podem ser aliviados senão por cuidados paliativos,
pode parecer insuportável. Do que resulta que o desejo de interromper a sua
existência e o seu pedido seja uma assistência ao suicídio sob a forma de
medicamentos prescritos por um médico.
Estes pedidos, que são muito raros quando existe
realmente uma possibilidade de acompanhar com cuidados paliativos, podem
corresponder mais a uma vontade de poder dispor de um recurso último do que a
uma verdadeira decisão de interromper a sua vida antes do tempo. Com efeito, no
Estado do Oregon, EUA, onde o suicídio assistido atinge dois por mil
falecimentos, metade das pessoas em final de vida que pedem – o obtêm – os
medicamentos que conduzem ao suicídio, não os utilizam.
Se o legislador assume a responsabilidade de fazer uma
lei sobre a assistência ao suicídio, os elementos seguintes devem ser tidos em
conta:
Garantir
que a pessoa manifesta de modo explícito e repetido a sua vontade de pôr termo
à sua vida com essa assistência.
Reconhecer
em sede de equipa médica a existência de uma situação de final de vida da
pessoa doente.
Garantir
que a decisão da pessoa em final de vida seja tomada:
- na medida em que esteja com
capacidade para um gesto autónomo.
- na medida em que esteja informada e
livre na sua escolha.
- na medida em que tenha verdadeiro
acesso a todas as soluções alternativas de acompanhamento e alívio da dor
física e psíquica.
- na medida em que esteja informada das
condições concretas do suicídio assistido.
- no quadro de uma troca colegial
pluridisciplinar que envolva o doente, os seus conviventes próximos, o médico
assistente, um médico não envolvido no tratamento em curso e um cuidador acompanhante
do doente.
Exigir a
presença do médico assistente, ou em caso de objeção de consciência deste, do
médico prescritor, tanto quando do gesto como da agonia.
Garantir
a objeção de consciência dos farmacêuticos.
Assegurar
que os medicamentos utilizados satisfazem as exigências da regulamentação e da segurança
sanitária e farmacológica.
Garantir
a ausência de um calendário preestabelecido para a consumação do gesto.
Garantir
a notificação das informações (natureza da doença, motivos da decisão,
ocorrências do gesto) feita pelo médico a uma estrutura nacional encarregada de
fazer um relatório anual sobre o conjunto das informações recolhidas.
Nunca a administração por terceiros de uma substância
letal a uma pessoa poderá ser considerada como uma assistência ao suicídio,
quaisquer que sejam as diretivas antecipadas e mesmo que uma pessoa de
confiança seja designada. Isso será sempre uma eutanásia ativa.
E, se o pedido for feito por uma pessoa consciente mas
incapaz de concretizar por si mesma o gesto de suicídio assistido, a lei não
poderá, por definição, autorizar que seja feito. Contudo a medicina não pode
considerar-se satisfeita e ponderar que, a pedido da pessoa, se interrompam as medidas
de suporte vital acompanhando com sedação.
b) A
eutanásia
O gesto eutanásico a pedido de pessoas doentes, tal como
atualmente é autorizado apenas na Bélgica e Holanda, é um ato médico que, pela
radicalidade da sua execução, e pela programação precisa no tempo, interrompe
súbita e prematuramente a vida.
Difere totalmente da decisão apresentada no ponto
precedente. Difere igual e totalmente de uma assistência ao suicídio onde o ato
letal é executado pela própria pessoa doente.
A eutanásia assenta profundamente na ideia que uma
sociedade tem das missões da medicina, tendendo a torná-la no agente do dever
universal da humanidade na prestação de cuidados e no acompanhamento de uma
ação tão fortemente contestada. A comissão não vê como uma disposição legislativa
favorável à eutanásia, tomada em nome do individualismo, poderia evitar esta
tendência.
A comissão chama ainda a atenção para que toda a retirada
de uma proibição cria outras situações extremas imprevistas à partida e
suscetíveis de necessitarem de novas e repetidas leis. A título de exemplo, na
Bélgica, foram apresentados 25 projetos de extensão de casos previstos na lei
após 2002.
Conclusão
Toda a comunicação com as pessoas que conhecemos, os
muitos depoimentos e viagens por toda a França e estrangeiro, as reuniões e
audições revelam uma inquietação real sobre as preocupações, muitas vezes
escondidas, com o final de vida e o impasse das respetivas respostas em França.
A comissão reafirma duas observações centrais :
a
insuficiente aplicação 13 anos depois da lei destinada a garantir o acesso a
cuidados paliativos, 10 anos depois da lei relativa aos direitos dos doentes
(lei Kouchner) e, por fim, 7 anos depois da lei Leonetti.
o
caráter particularmente dramático das desigualdades quando do final de vida. De
acordo com as suas extensas recomendações, a comissão sublinha fortemente: antes do mais, o imperativo respeito
pela palavra do doente e da sua autonomia.
o
desenvolvimento absolutamente necessário de uma cultura do paliativo e a
abolição da fronteira entre cuidados curativos e paliativos.
a
predominância das decisões colegiais.
a
exigência de aplicar corajosamente as leis atuais em vez de estar sempre a
imaginar novas. a utopia
de resolver pela lei a grande complexidade das situações do final de vida [«Não
legislar sem vacilar, ou
melhor, entre duas soluções prefira sempre a que requer menos
direito e pede mais à moral e aos bons costumes» CARBONNIER, Jean. Flexible
droit, Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence, EJA, Paris, 1998].
o perigo
de ultrapassar a barreira do proibido.
Se o legislador assumir a responsabilidade de uma
despenalização da assistência ao suicídio, devem ser aqui afirmados dois pontos
sem hesitação:
a
garantia estrita da liberdade de escolha demonstrativa da autonomia da pessoa.
a
obrigatoriedade de envolver principalmente a responsabilidade do Estado e a
responsabilidade da medicina.
Do mesmo modo, se o legislador assumir a responsabilidade
de despenalizar a eutanásia, a comissão entende alertar para a importância
simbólica da alteração desta proibição pois:
a
eutanásia assenta profundamente na ideia que a sociedade faz do papel e dos
valores da medicina.
qualquer
modificação duma proibição cria necessariamente novas situações extremas,
suscitando uma procura indefinida de novas leis.
toda a
medicina comporta uma intervenção nos confins da vida sem que seja necessário
legislar a todo o transe.
A comissão pretende enfatizar com o seu trabalho que
seria ilusório pensar que o futuro da humanidade se resume à afirmação de uma
liberdade individual sem limites, esquecendo que o ser humano apenas vive e se
reinventa quando em ligação aos outros e dependendo dos outros. Um verdadeiro
acompanhamento no final de vida só tem sentido no quadro de uma sociedade
solidária que não se substitui à pessoa mas que mostra que a ouve e respeita no
termo da sua existência.