Tradução de “She Didn't Mean It: A Role-Play Transcript”, páginas 253 a 272 do livro
“Mediação bioética - Um guia para soluções partilhadas e modeladas”
Personagens [NT: A
opção por nomes portugueses, fictícios como no original, procura significar
que, se nunca aconteceu, uma conversação similar pode acontecer entre nós]:
Beatriz Silva, filha da doente
Contexto
A D. Florentina Silva, senhora com 87 anos, está muito
doente com múltiplos problemas. Está internada na Unidade de Cuidados
Intensivos. Está ligada a um ventilador e as suas tensões estão em queda, mesmo
quando lhe são administradas vasopressinas, e está em insuficiência renal. Por
uma vez, esteve em situação tal que a equipa admitiu a possibilidade de ter de
tentar uma ressuscitação mas a doente estabilizou. A situação da D. Florentina
continua muito instável.
A D. Florentina Silva fez um testamento vital há 10 anos,
que mais tarde confirmou, declarando que, se ficasse em estado crítico e sem
probabilidades de recuperar, não quereria fazer hemodiálise, ser ligada a um
ventilador, ser hidratada ou alimentada e que queria que lhe afixassem uma
Decisão de Não Reanimar (DNR). Também declarou que não queria ser um peso para
a sua família. Nomeou o seu marido como Procurador de Cuidados de Saúde, o qual
entretanto ficou gravemente demenciado, sendo que ela era o seu cuidador
primário em casa. Os Silvas têm duas filhas adultas. Ana, que vive com eles, e
Beatriz, uma profissional de sucesso com família constituída.
Há poucos dias o nefrologista levantou a questão da
hemodiálise e Ana assinou um consentimento. Ana também se opôs à DNR. Beatriz
zangou-se por o nefrologista ter estado a falar com ela mas ter pedido o
consentimento à Ana para a diálise. Ela pensa que a sua mãe deve ser retirada
do ventilador, que sempre recusou, não deve fazer diálise e deve ser afixada a
DNR, conforme as suas firmes vontades declaradas.
Relato
anotado
Mediadora: Boa
tarde! Muito obrigado por arranjarem tempo para nos reunirmos hoje, pois sei
que todos têm os dias muito ocupados e deve ter sido difícil para vós, o que
agradeço. O meu nome é Eugénia Esteves. Pediram-me que vos ajudasse neste caso.
Sou o que se chama uma mediadora. Sou frequentes vezes chamada a ajudar em
casos em que há muitas decisões difíceis a tomar. Procuro que todos os
envolvidos se pronunciem sobre as questões e que cheguem a conclusões.
A mediadora começou com fortes agradecimentos aos
participantes. (Nunca deixe passar uma oportunidade para ser forte). A
explicação da mediadora sobre o seu papel é um pouco fraca. Não explicou que
trabalha para o hospital e que, neste caso, ela é neutral e não toma decisões
mas apenas ajuda os participantes a tomá-las. É também útil que, nas palavras
de abertura, se acentue o objetivo de alcançar boas decisões para a doente.
Aqui a mediadora deveria ter dito: “Permitam-me que me apresente. O meu nome é
Eugénia Esteves e sou diretora do serviço de consulta de ética clínica neste
hospital. Sou funcionária do hospital e devo trabalhar para ajudar quando há
diferenças de opinião sobre o plano de cuidados de um doente ou quando é
preciso tomar decisões difíceis. Tento ajudar todos os envolvidos a entenderem-se
e a aceitarem as decisões que sejam tomadas. Também tento que o doente seja
parte da discussão, mesmo que não possa realmente estar presente, levantando
questões sobre as suas vontades e valores, e faço-o porque o que queremos fazer
por uma doente incapaz de participar a discussão é chegar ao que ela nos dos
diria se o pudesse fazer, portanto tento ajudar a encontrar uma solução, um
consenso, aceite por todos como pela mediadora. Conheço bem a maioria do pessoal
no hospital mas nunca estive envolvido neste caso antes.”
Podemos
começar por nos apresentar? [Omitem-se as apresentações do Dr. Domingues, de Ana e
Beatriz Silva e da advogada do doente.]
Mediadora:
[dirigindo-se a Ana e Beatriz] Qual é o vosso parentesco com a doente?
Ana Silva: É
minha mãe. É a minha mãe e eu tenho estado a cuidar dela há muito tempo.
Beatriz Silva: É
minha mãe.
Mediadora: OK,
obrigado. Então, sei pouco sobre a situação médica da D. Florentina. Assim,
podemos começar com o Dr. Domingues. Não se importa de nos dizer, do seu ponto
de vista, como estamos?
Os mediadores têm duas escolhas sobre o modo de começar
um debate construtivo: uma, como a que a mediadora fez, é pedir a um médico
para explicar os factos médicos, outra, é pedir à família para informar o
mediador sobre a doente e as suas preocupações, ou seja, apresentar a doente ao
grupo. Muitas vezes recomendamos que se comece por pedir aos membros da família
para apresentarem a doente: “Ana e Beatriz, posso tratá-las pelo primeiro
nome? Peço, para começar, que me falem sobre a vossa mãe. Eu vi-a nos Cuidados
Intensivos e estive a ver o processo clínico – fiquei com a impressão de que,
nesta altura, está muito mal. Contudo, não consigo saber quem era ela, como
vivia, o que lhe interessava. Falem-me da vossa mãe”.
Uma das razões para iniciar com uma pergunta à família
sobre o doente é situar num nível elevado o estatuto da família no debate. Os
médicos são peritos em medicina, diagnóstico, prognóstico e possibilidades e
probabilidades médicas, mas os membros da família são peritos na Mamã. Começar
pela família dá-lhe um lugar na mesa que é significativo. Teria sido útil que,
antes de dar primazia ao Dr. Domingues, a mediadora começasse com a família e
depois recorresse a ele para explicar os factos médicos.
A mediadora não deve pedir à família que exponha o que
pensa dos factos médicos antes de ouvir o médico. Se o fizer corre vários
riscos, nomeadamente amarrar os familiares a visões inadequadas e promover
reações defensivas quando a equipa médica tentar corrigir tais posições. A
mediadora disse que “sei
pouco sobre a situação médica da D. Florentina.” Mostraria
transparência se acrescentasse como obteve essa informação – pela leitura do
processo clínico ou por conversar com a equipa médica.
Dr. Domingues:
Certamente. Temos uma senhora, a vossa mãe, que tem múltiplos problemas
médicos, sendo os mais importantes a insuficiência cardíaca congestiva e a
diabetes. Tem sido minha doente há vários anos. Ultimamente, com o declínio da
sua saúde, foi internada em Cuidados Intensivos e ligada a um ventilador, as
tensões arteriais baixaram e está sob medicação para tentar impedir que
continuem a baixar. Parece estar estabilizada mas o problema mais recente foi o
dos rins que começaram a funcionar mal, o que nos leva à importante questão do
que fazer agora para a tratar. Temos assim a questão de saber se a diálise era
o próximo passo e espero que possamos realmente distinguir o que é ou não é
compatível com as vontades da D. Florentina.
Mediadora: OK.
O médico deu-nos uma valiosa apreciação dos factos sem
cair em termos do jargão médico e evitou defender o tipo de tratamentos que
recomenda. Mesmo assim, a mediadora precisa de resumir o que foi dito, por duas
ordens de razões. Primeiro, resumir dá tempo aos familiares para captarem e
começarem a aceitar as más notícias sobre a doença da mãe, sobretudo no caso de
a mediadora se aperceber que uma das filhas tem dificuldade em aceitar que a
sua mãe está a morrer. Resumir também permite que a mediadora reformule em
linguagem de leigos alguns termos ou conceitos mais difíceis de compreender.
Assim, ainda que possamos assumir que a maioria das pessoas que passou muito
tempo no hospital saiba o que é um ventilador, a mediadora podia explicar: “E ela está ligada a um
ventilador, ou seja, precisa de uma máquina que a ajude a respirar”. A
mediadora pode prosseguir o seu resumo com perguntas que clarifiquem a condição
médica, em especial aquelas que pense que a família receie fazer.
Beatriz Silva: A
minha mãe tem uma diretiva antecipada de vontades muito clara e ela não queria
qualquer espécie de medidas extremas. Ela disse especificamente que não
desejava fazer diálise e outros tratamentos agressivos. Nunca quis ser um peso.
Ela tomou conta do nosso pai doente durante anos. Foi sempre muito clara. Nem
percebo por que estamos a ter esta discussão.
Ana Silva: Não
penso que o que ela queria dizer seja o que está nesse papel. Não é dela, não
faz qualquer sentido, ela não era assim, isto não está certo.
Mediadora:
Sabemos quando foi que a vossa mãe fez essa diretiva antecipada?
Estamos a ver, pelo curso da mediação, os problemas
criados quando um mediador avança demasiado depressa para uma discussão médica.
Ela precisava, em primeiro lugar, de pedir às filhas que lhe falassem sobre a
mãe. Como era ela? O que gostava de fazer? O papel do mediador é conduzir o
debate como se a doente e os seus valores estivessem à mesa. Levar as filhas a
falar sobre a mãe em situações neutrais – ir à igreja, tomar conta do pai,
almoços de família – dá ocasião a desenhar o perfil da pessoa sem estar se
constrangido pelas decisões que têm de ser tomadas. A mediadora deve
desacelerar a discussão e desviar o foco com uma afirmação como: “Certamente falaremos sobre
as vontades da vossa Mamã sobre os cuidados médicos; é por isso que estamos
aqui, mas gostaria de conhecê-la um pouco melhor como pessoa antes de nos
focarmos nela como doente”.
Além disso, a mediadora faz uma pergunta factual em vez
de seguir os que Ana e Beatriz disseram. Fazer isso afasta a discussão das suas
preocupações. A mediadora precisa, para começar, de resumir o que ouviu de Ana
e Beatriz e depois clarificar o que Ana quis diz com «ela não era assim». Uma
resposta possível da parte da mediadora seria: “Ana e Beatriz, agradeço por
me permitirem perceber os vossos pontos de vista sobre o que a vossa mãe
desejaria numa situação como esta. Entendi que ambas querem respeitar as
vontades da vossa mãe, embora tenham diferentes entendimentos sobre como o
fazer. A Beatriz sente que ela foi clara sobre não querer tratamentos e a Ana
não está tão segura disso. Ana, pode dizer-nos algo mais sobre o que significa
esse «ela não era assim»?”
Beatriz Silva: A mãe
fez o testamento vital logo que começou a sentir-se doente. Na verdade,
atualizou o testamento vital uma série de vezes desde então, manteve-o
atualizado e fez várias alterações.
Mediadora: Há
quanto tempo foi a última alteração?
Beatriz Silva: Há
cerca de quatro meses.
Mediadora: Muito
bem.
Ana Silva: Penso
que ela estava apenas pressionada e confusa, não era isso o que queria dizer,
percebe? Tomava conta do Papá, era uma pessoa enérgica, nunca admitiria
desistir, nunca queria desistir, não era isso que havia de querer.
Aqui a mediadora podia fazer uma pergunta clarificadora
para perceber as preocupações subjacentes à posição de Ana, dizendo: “É interessante, Ana.
Fale-me mais sobre a sua mãe e o seu caráter. Diz-nos que ela nunca queria
desistir. Diga-me por que acha que era assim. Asseguro, a todos vós, que
havemos de chegar às decisões médicas – é por isso que aqui estamos – mas
preciso de conhecer mais a doente antes de continuarmos.”
Beatriz Silva: De que
estás a falar? De qu’estás afinal a falar? Ela escreveu direitinho na sua
diretiva antecipada o que queria. Como podemos não respeitar as suas vontades?
Ela teve o cuidado de afirmar essas vontades.
Mediadora: OK.
A mediadora deveria aperceber-se da óbvia frustração de
Beatriz, dizendo: “Percebo
o que diz, Beatriz, e sei que é difícil para si mas mantenha-se firme connosco
e verá que chegaremos ao que é importante”.
Dr. Domingues:
Efetivamente posso atestar que ela falou sobre situações específicas relativas
aos cuidados que queria ter quando falámos sobre o que era a hemodiálise e o
que significava. Do mesmo modo, conversámos sobre ventiladores e o que faziam.
Em termos do seu entendimento sobre o que estava a assinar, estou à vontade
para dizer que ela sabia o que queria e percebia o que estava a assinar nesse
tempo.
Eis uma mudança importante, a qual a mediadora necessita
de resumir para ter a certeza de que tanto ela como os outros participantes
compreenderam o que o Dr. Domingues está a dizer. “Dr. Domingues, deixe-me ver
se percebi. Apresentou a possibilidade de uma diálise e do uso de ventilador à
D. Florentina e ela foi categórica em dizer que não queria qualquer um desses
tratamentos?”
Ana Silva: Ela
não queria morrer, essa não era a sua intenção. Só queria ficar boa para tratar
do Papá e estar disponível para nós.
Beatriz Silva: Isso é
porque tu não querias tomar conta do Papá, onde tens estado? É com isso que te
preocupas?
Mediadora: OK,
vamos acalmar, vamos acalmar e tentar organizarmo-nos. Quero ter a certeza de
estar a compreender o que cada um diz. No caso aqui do Dr. Domingues, julgo
perceber que nos está a dizer que a D. Florentina está muito doente, que está a
precisar de um conjunto de cuidados médicos imediatos, está entubada e
ventilada, as tensões estão muito fraquinhas e precisa de medicações para as
fazer subir, e estas coisas estão mais ou menos estáveis nesta altura, contudo
os seus rins estão a falhar e é preciso decidir o que fazer agora.
Ana Silva: O
médico dos rins disse que a diálise podia ajudar. Por isso temos de fazer o que
possa ajudá-la. Foi o que ele disse e disse-o de forma clara,
Dr. Domingues:
Gostaria de explicar essa afirmação quando achar que seja oportuno.
Mediadora: OK,
muito obrigado. Já iremos ao que ponto do que a diálise pode fazer de bem ou de
menos bem. Estou apenas a tentar equacionar o que foi dito agora, mas
certamente discutiremos esse ponto. OK? Para mim, a Beatriz acredita que a sua
mãe preencheu um testamento vital que, de certo modo, lhe diz o que ela queria
fazer e o que não queria, e deseja poder ver as suas vontades respeitadas.
Pensa que seguir as vontades expressas no testamento vital é o melhor para ela.
Beatriz Silva: Sim, é
isso.
Mediadora: E a
Ana, segundo entendi, está preocupada com as vontades da sua mãe e quer para
ela o melhor. Pensa que o melhor para ela é proporcionar-lhe cuidados médicos
pesados para tentar que melhore, porque, nas suas palavras, «ela é uma
lutadora».
Ana Silva: Sim.
A mediadora reconhece que precisa de intervir,
apercebe-se do que Ana, Beatriz e o Dr. Domingues disseram, baixou a tensão e
recordou a Ana e a Beatriz o interesse comum referente às vontades da mãe e à
procura do seu melhor interesse. Agora, quando o doente está a morrer – embora
isso ainda não tenha sido dito especificamente – o seu melhor interesse é
evitar que sofra durante o processo de morte. A mediadora usa o resumo da
situação médica da D. Florentina para dar a cada um algum tempo para respirar.
A mediadora reconhece também parte do que Beatriz e Ana
disseram mas ignora alguns pontos importantes. O comentário de Ana – «ela não
queria morrer… queria ficar boa para tratar do Papá e disponível para nós» –
também precisa de ser reconhecido. Podia ter dito: “E isto é difícil, Ana,
porque para si se seguirmos as vontades como ela os expressou é como que dizer
que ela escolheu a morte em vez de ficar a olhar pela vossa família. Ana e
Beatriz, ambas se referiram ao vosso pai e à necessidade de pensar em como se
cuidará dele no futuro. Como eu vos disse, precisamos de responder às perguntas
de Ana sobre a razão por que os médicos têm diferentes opiniões no que toca a
saber se a diálise será útil”. Este resumo reconhece tanto o que
foi dito como dá início à definição de uma agenda para o resto do debate: que
tipo de cuidados precisa o marido e qual a adequação da diálise.
Provedora do doente:
Desculpem-me, por favor, mas gostaria de entrar no debate. Só queria dizer o
que me parece importante agora. Na verdade, não se trata do que elas querem – é
o que a doente quer. Se ela decidiu o que queria em termos de cuidados a
receber no final da sua vida, temos de a respeitar pois as suas intenções eram
claras no que assinou. Penso que temos a obrigação moral de respeitar e seguir
o que subscreveu.
Mediadora: OK.
Pois, estamos aqui para cumprir as vontades da D. Florentina, embora talvez não
haja necessariamente um acordo sobre quais seriam exatamente essas vontades.
Podemos explorar esse ponto específico. Mas antes de o fazermos, não sinto que
conheça deveras a D. Florentina. Beatriz ou Ana, será que uma de vós poderia,
em poucos momentos, dizer-me mais alguma coisa sobre a vossa mãe, que tipo de
pessoa era?
A mediadora afasta a afirmação depreciativa e pouco útil
da provedora da doente reconhecendo a ambas os objetivos de respeitar as
vontades da D. Florentina e as diferentes perspetivas sobre quais são as suas
vontades.
Embora a apresentação de um doente pelos familiares não
lhe permita participar, é muitas vezes melhor que seja feita no início da
mediação, este é um bom exemplo em como a mediação é um processo benévolo no
qual uma apresentação tardia continua a ser útil.
Ana: Bem, a
Mamã gostava de ser o centro das atenções. Gostava de fazer muitas coisas ao
mesmo tempo. Tomava conta do Papá, ajudava toda a gente; era muito dramática –
penso que ela nunca queria desistir. Se quisesse desistir, ela mesma poria fim
à sua vida, cometeria suicídio, nunca iria recorrer a esses papéis legais
extravagantes para decidir o que fazer. Ela queria estar aqui para o Papá.
Queria ter a certeza de estaria pronta para cuidar dele e de que ele poderia
chamá-la e vê-la. Nunca queria que alguém perdesse a esperança nela.
Mediadora: Ana,
alguma vez falou com a sua mãe sobre decisões médicas?
Ana: Eu
vivia com os meus pais.
Mediadora: Mas
alguma vez falou com ela sobre decisões médicas? O que queria ela?
Ana:
Falávamos todos os dias. Ela queria tomar conta das coisas e estava sempre
pronta para qualquer um.
A mediadora fez uma pergunta teste da realidade: Ana
debateu decisões médicas com a mãe? Ana evita a questão e a mediadora está
atenta. Não é raro que um participante tente esquivar-se a perguntas difíceis e
foi o que fez Ana, em vez de reconhecer que a sua leitura da situação pode ser
inconsistente. Mas, como vemos, é provável que a pergunta teste da realidade
ajude a pessoa a quem é dirigida a reconsiderar a sua posição.
Beatriz: Ela
protegia-te. Não falava contigo sobre as suas inquietações. Tu vives num mundo
quase imaginário. Não fazes ideia do que passa à tua volta.
Ana: Mas tu
não vives com eles por isso penso que és tu quem não faz ideia.
Mediadora: OK. As
pessoas têm relacionamentos diferentes dentro de uma família e podemos aprender
certas coisas vivendo com as pessoas, assim como falando com as pessoas, por
isso penso que há coisas em comum e que podemos continuar a falar,
respeitando-nos mutuamente e tentando compreender melhor a D. Florentina já
que, no fundo, é para isso que estamos aqui, ou seja, cumprir as vontades da D.
Florentina. Parece-me que podemos ser cordiais e prosseguir ouvindo a Ana.
Estava a dizer que a sua mãe era uma mulher muito enérgica, que gostava de ser
o centro das atenções e que tinha feito muito pela família, como tomar conta do
vosso pai, não era?
Foi apropriado que a mediadora interviesse interrompendo
a desnecessária troca de palavras em escalada entre as irmãs, mas o tom foi um
pouco de reprimenda. Seria mais útil que reconhecesse os seus sentimentos assim
como as diferentes perspetivas sobre o que a mãe pensava sobre a sua doença e
possível morte. Do mesmo modo, a mediadora precisa ter cuidado com o uso da
palavra «nós». Parece correto dizer “podemos aprender certas coisas vivendo com as
pessoas, assim como falando com as pessoas” mas já não tanto dizer “há coisas em comum e que
podemos continuar a falar”.
Alguns mediadores podiam ainda ser mais diretos sobre a
zanga e dizer: “Bem,
vejo que estão ambas um bocado zangadas e seguras das suas versões sobre o que
a D. Florentina havia de querer. Não me surpreende que as emoções se sobreponham,
corremos esse risco, mas eu procurarei que cada uma diga o que tem a dizer de
modo que possamos explorar todas as opções”.
Ana: Sim.
Mediadora: E isso
é bastante importante nesta altura?
Ana: Sim.
Mediadora: Posso
perguntar o que aconteceria ao seu pai se a mãe não tivesse condições de voltar
a casa?
A mediadora foca-se nos receios de Ana sobre o modo como
os cuidados do pai podem estar no centro da disputa e começa a fazer perguntas
sobre isso.
Ana: Bem,
creio que mesmo que ela tenha de ir para um lar, ou para outro lugar qualquer,
isso seria aceitável porque ainda assim ela estaria presente para o Papá. Ele
podia visitá-la e ambos podiam estar juntos.
Mediadora:
Portanto é sobretudo a sua presença que a preocupa, não necessariamente que ela…
Ana: Ela
queria ainda ficar connosco.
Mediadora: OK.
Beatriz, não entendi bem como vê a sua mãe, quer dizer-nos?
Embora a mediadora tenha começado a focar-se no pai,
apercebeu-se que a Beatriz precise de ter a sua oportunidade falar sobre a mãe.
Beatriz: Eu
adoro a Mamã, quero o melhor para ela, e sinto como que entrasse no seu íntimo
e o meu papel fosse garantir que as suas vontades sejam respeitadas. Não quero
que ela morra, adoro-a, mas ela foi muito explícita, afirmou com clareza no seu
testamento vital que não queria essas medidas extraordinárias. Parece que o
médico falou com ela e ela sabia o que estava a assinar e o seu significado –
como podemos não a respeitar?
Mediadora: Falou
com a sua mãe sobre o testamento vital?
Beatriz: Sim.
Estava bem par do que ela sentia. Não sei se concordo com ela ou não, mas isso
não interessa, porque era o que ela desejava.
Beatriz acaba de dizer algo importante, distinguindo
entre os seus próprios sentimentos e desejos e os da sua mãe e isso pode ajudar
Ana a ouvi-la. Uma vez que as partes em disputa tendem a não se ouvir uma à
outra, a mediadora precisava de melhorar a disposição de Ana para ouvir
Beatriz, resumindo o que esta disse antes de avançar com mais perguntas.
Mediadora: OK.
Sabem se ela teve alguma experiência pessoal relativa a estas decisões, alguma
pessoa de família que a tenha motivado para estas escolhas?
Boa tentativa da mediadora para os fundamentos das
escolhas da D. Florentina.
Dr. Domingues:
Desconheço.
Beatriz: Penso
que, quando o Papá começou a ficar doente – está demente e necessitado de
muitos cuidados em casa – ela sentiu que queria manter a sua dignidade e não
queria ser um peso para as pessoas,
Dr.ª Carla Cardoso: Julgo
que, se virmos bem o que acontecia, ela não ia quer que lhe aconteça a si –
Ana: Ela
queria estar presente para o Papá.
Dr.ª Carla Cardoso:
Estamos a fazer com que aconteça isso agora. Ela não queria estar ligada a um
ventilador mas está. Não queria ser um peso. Temos de decidir por ela, não
contra ela. Não devíamos ignorar o seu testamento por os seus filhos estarem a
vacilar sobre o ponto principal. O nosso trabalho é no seu interesse ou no
nosso interesse?
Mediadora:
Portanto, Dr.ª Carla Cardoso, julgo que levantou um ponto importante – segundo
percebi o testamento vital da D. Florentina diz “não quero ser um peso para a
minha família”.
A mediadora reconhece o ponto da provedora da doente mas
necessita de fazer mais para a trazer para o campo das soluções em vez de
incendiar a discussão, dizendo qualquer coisa como: “Vejo que está a fazer o seu
papel de defensora da D. Florentina para que as suas vontades sejam
respeitadas. Penso que é o que todos queremos mas queria ouvir da Ana se esse
documento não contém todos os objetivos da D. Florentina. Vale a pena
dedicarmos algum tempo a falar como podem ser apreciados.”
Mediadora: [para
Beatriz] Referiu que também ela não queria ser um peso para a família. Pode explicar-me
qual o seu entendimento sobre o que ela queria dizer com “peso”?
Beatriz: Não
queria ser ligada a máquinas, não queria perder o controlo sobre o que estaria
a acontecer ao seu corpo, não queria ser um escoadouro financeiro. Queria ser
independente e agora não pode ser independente.
Mediadora: O que
acha, Ana? O que pensa que a sua mãe queria dizer com “peso”?
Ana: Bem,
ela, não creio que fosse um peso. O que queria era estar presente para o meu
pai e ele precisa dela. Ela queria ser o centro das atenções, amava as pessoas
que a rodeavam e é a isso que ela tem direito agora. Portanto não vejo como
isso possa ser um peso. Não faz sentido para mim e o nefrologista disse que esse
tratamento a podia ajudar, portanto só temos de ajudar.
Mediadora:
Compreendo que ache que a intervenção que foi proposta não seja um peso, mas
posso perguntar- lhe o que seria então um peso, o que quereria ela significar
com essa palavra?
Ana: Se
morresse. Porque nesse caso não estaria presente para ninguém – que era o que
entendia ser o seu papel. Então isso seria um peso para ela.
Esta resposta é tão estranha que tem de obrigar a
mediadora perguntar-se o que mais acontecerá e a considerar se Ana tem
dificuldades emocionais que impeçam qualquer solução. Mas tal resposta fora do
normal pode também ser uma indicação de que Ana apreendeu a mensagem de que as
orientações da sua mãe precisarão de ser seguidas embora ainda não esteja na
altura de o reconhecer. A mediadora precisa pensar sobre como fazer com que Ana
se sinta compreendida e aprovada.
Dr.ª Carla Cardoso: Ena!
Isto é incrível, como podia ela –
Ana: Você
não a conhece –
Dr.ª Carla Cardoso: Como
pode ser um peso para si mesma quando estiver em repouso?
Eis um exemplo do princípio da mediação, segundo o qual,
quando se quer esmagar um participante, se deve, em vez disso, tentar atacar
com: “Provedora,
sei que tem a função de defender a D. Florentina e que o está a fazer
fortemente. Mas, sabe, uma das razões para termos esta reunião é que é nossa
experiência que o que estamos a tratar é mais do que um pedaço de papel.
Sabemos que, quando enfrentamos a decisão de continuar ou não um tratamento, é
melhor para o doente se quem o ama e quem está envolvido nos seus cuidados se
mostra de acordo com as opções a seguir. Por isso, muito obrigada por estar
connosco, agradeço que seja uma boa provedora”. É uma boa maneira de ensinar a
provedora da doente a ficar no seu lugar.
Ana: Ela
não sabe do que está a falar.
Mediadora:
Portanto, Ana, estava a dizer que enquanto a sua mãe for viva ela não é um peso
para si? Parece que, para si, ser um peso deve ser diferente do que a sua mãe
receava que fosse?
Ana:
Talvez.
Mediadora:
Portanto, Ana, a doença da sua mãe e o internamento deve ser bastante difícil
para o seu pai? Como correm as coisas?
Ana: Sabe,
o Papá depende dela e precisa realmente de a ver. E o médico, o médico dos
rins, disse que, se fizéssemos essas coisas, isso ajudaria. E os outros médicos
têm estado a fazer todo este esforço para a ajudar e portanto, sabe, estou
muito preocupada com ela se não se fizer nada para a ajudar, por isso é o que
devemos fazer.
Dr. Domingues: Posso
clarificar o que a hemodiálise faria?
Mediadora: Com
certeza.
Dr. Domingues: A
hemodiálise seria um meio de pôr os rins da sua mãe a funcionar por pouco tempo
mais…
Ana: Isso é
bom.
Dr. Domingues: Bem,
de facto é, mas não muda verdadeiramente todos os outros problemas que a
afetam. Portanto, em termos de prognóstico, não é uma verdadeira alteração –
pode prolongar a sua vida, mas não a tornará verdadeiramente melhor. Portanto
não a tornará a pôr mais perto de tomar conta do seu pai e ficar perto dele.
Parece-me que é isso – não quero dar-lhe falsas esperanças ou dizer que com a
diálise vai poder tê-la de volta e viver a vida como fazia antes.
Ana: Mas
ajudaria?
Mediadora:
Portanto deixe-me ver se compreendi o que disse, Dr. Domingues. A diálise
resolveria o problema dos rins temporariamente, durante um período –
Dr. Domingues: Não
resolve mesmo o problema.
Mediadora:
Ajudará no problema dos rins durante um período de tempo, mas apenas o que o
problema dos rins está a causar. OK. Então pode dizer-me mais sobre o que causa
o problema dos rins e o que significam para a D. Florentina, em termos de
prognóstico, os próximos dias – ou o que espera que possa acontecer?
Dr. Domingues: De uma
maneira geral, todos os órgãos da D. Florentina estão a começar a falhar. O seu
coração não é mais capaz de bombear a tensão sanguínea por si só para levar o
sangue a todo o lado. E são estas alterações tão dramáticas nas tensões que
afetam o modo como os rins funcionam. Temos um círculo vicioso já que todos os
diferentes órgãos não estão a funcionar bem – os rins continuam a dar
diferentes alertas e, porque não funcionam bem, isso afeta todos os órgãos,
levando a uma espiral de decadência onde a diálise nos permitia manter-lhe o
equilíbrio de eletrólitos e algumas coisas normais para que pudesse ainda
produzir alguma urina. Pode ainda eliminar algumas toxinas mas não faz
realmente nada que ajude os outros órgãos que estão a falhar, por exemplo os
seus pulmões e, como está liga ao ventilador, portanto…
Mediadora: Afinal
o que está a fazer sofrer tanto a D. Florentina? Não há tratamento para ela,
que corrija esse problema?
Dr. Domingues:
Lamento muito dizê-lo, nesta altura, mas não há maneira de reverter o estado em
que ela se encontra.
Mediadora:
Portanto seria correto pensar que vê, na sua opinião profissional, o
prognóstico da D. Florentina do igual modo, com ou sem diálise?
Dr. Domingues: Diria
que com a hemodiálise ela pode viver mais tempo mas não recupera qualquer
funcionalidade. Sem diálise o período do seu declínio e de desconforto será
mais curto,
Mediadora:
Portanto, OK. Compreendo que ela está muito doente e a sua insuficiência renal
é mais uma espécie de sintoma da sua doença, que se pode aliviar um pouco o
sintoma mas, no final, não se resolve a causa da falência renal.
A discussão sobre o prognóstico, que era necessária nesta
altura da mediação, pode ter sido ainda mais útil do que se tivesse acontecido
mais cedo. Todos têm estado a girar à volta do facto de a D. Florentina estar a
morrer. O médico evitou repetidamente usar a palavra «morte». Quando o Dr.
Domingues se referiu ao facto de o coração não ser capaz de bombear o sangue
para os outros órgãos no início da sua fala, a mediadora precisava dizer: “nesse caso, Dr. Domingues, se
bem percebi, o senhor pensa que a D. Florentina está a morrer e que não há nada
que possa fazer para a melhorar”. Este é um dos momentos em que é
crítico concentrarmo-nos no que implica a linguagem simples. Quando o médico,
ou outros membros da equipa, e a família não conseguem introduzir a palavra
«morte» na conversa, cabe ao mediador fazê-lo e tornar evidente para a
discussão que o doente está a morrer.
Dr. Domingues: OK, é
isso mesmo.
Ana: Mas
nós não desistimos.
Dr. Domingues: Não
desistimos. Estamos a fazer o que podemos mas penso que –
Ana: Penso
que não devemos desistir.
Mediadora: O que
quer dizer, para si, “desistir”?
Ana: Eu
sei, a minha irmã pode querer desistir, mas eu não quero.
Mediadora:
Estamos somente a falar do que sabemos e do que sentimos, contudo eu queria
saber o que é desistir, o que significa “desistir”, na sua opinião?
É importante que a mediadora tente de novo obter de Ana
uma clarificação da expressão “desistir”, mas isso podia ter acontecido quando
da primeira vez que Ana enfrentou repetidamente Beatriz, realçando os seus
interesses comuns: “Ana,
eu percebi que quer fazer tudo o que for possível pela sua mãe. O que ouvi de
si, Beatriz, foi que isto também é para si arrasador, mas que quer ser fiel ao
que prometeu a sua mãe. Ambas tentam, à sua maneira, estar do lado vossa mãe”.
Ana: Qualquer coisa que possa mantê-la
connosco – acho que não devemos desistir.
A mediadora podia também perguntar de novo o que Ana
queria significar com “desistir”: “Ana, falou em desistir. Desistir de quê? O
que quer dizer com ‘desistir’? Diga-me o que quer dizer de modo que possamos
compreender o seu ponto de vista”.
Mediadora: Assim,
seria correto dizer que, se uma intervenção na sua mãe representar uns minutos
mais de tempo junto de vós ou uma poucas horas mais ou uns poucos dias mais,
isso não faria diferença. É isso?
Ana: Sim.
Uma razão para que esta discussão se esteja a arrastar
sem muitos progressos reside na incapacidade da mediadora, até agora, em
reconhecer os sentimentos e medos de Ana. Quando ela o fizer, no seu próximo
comentário, as partes entrarão no caminho de uma solução.
Mediadora: Ana e
Beatriz, isto tem sido muito difícil para vós, com ambos os vossos pais tão
doentes. Ana, deve ser especialmente difícil e triste para si por viver com
eles. Entendo bem como está inquieta com o que acontecerá com o seu pai agora
que a sua mãe não pode mais tomar conta dele. Deve ser mesmo difícil para si
agora que a mãe não pode cuidar dele nem interagir com ele?
Ana: Sim.
Estamos muito inquietas com o Papá e com o que vai acontecer com ele agora que
a Mamã não pode estar com ele. Mesmo que ela estivesse num lar, o Papá poderia
ir vê-la, ainda seria capaz de estar com ela e a Mamã com ele,
Mediadora:
Portanto, o seu pai tem ido visitá-la ao hospital?
A mediadora percebe que Ana persiste na ideia de que,
enquanto a sua mãe for viva, ainda que inconsciente, poderá evitar enfrentar a
dolorosa realidade da sua vida sem ela. Para ajudar Ana a pensar no que precisa
de acontecer, para que a sua vida se torne suportável, a mediadora faz um
conjunto de perguntas teste da realidade.
Ana: Não,
não, ele não tem sido capaz de vir ao hospital.
Mediadora:
Percebo que está a dizer que pensa que seria útil que ele a visitasse, mas
questiono-me sobre como reagiria ele. Disse que ele tem estado algo confuso.
Como vai ele reagir se ela estiver fisicamente presente mas não interagir com
ele?
Ana: Pois,
mas é por isso que penso que – porque os médicos dizem que essas coisas a podem
ajudar – penso que devíamos tentar.
Note-se que Ana pode ter acabado de oferecer uma solução
para o conflito. Quer tentar coisas que possam “ajudar”. É possível que não
insista em tratamentos que não levem à melhoria da condição da mãe ou que venha
a concordar com a interrupção do tratamento ao fim de uma breve tentativa.
Mediadora: Então,
a Ana acha que, se ajudasse, gostava que avançasse e que seu objetivo é que a
sua mãe continue presente para vós? Qual é a sua ideia de quanto a diálise e
outros tratamentos poderiam ajudar a sua mãe? Até onde poderia ir?
Ana: Bem,
poderia estar presente para o Papá, para mim e poderia, bem vê, …
Mediadora:
Consegue ver a sua mãe acordada e atenta?
Ana: Porque
não poderia estar acordada?
Mediadora: O que
percebi dos médicos é que eles não preveem que a sua mãe desperte.
Ana: Porque
não poderia estar acordada? Eles disseram que fariam essas diferentes coisas e
isso ajudá-la-ia. Mesmo que ela não regressasse a casa, poderíamos sempre
visitá-la, portanto porque não estaria acordada?
A incapacidade de cada um usar a palavra «morte», falar
no facto de a D. Florentina estar a morrer, leva a que Ana continue a evitar
usar termos dessa triste realidade. Evitar falar de morte pode ser confortável
para quem fala mas não é útil para Ana que está a lutar, aterrorizada e em dor.
Não falar no que efetivamente vai acontecer apenas acrescenta terror. Além
disso, a mediadora identificou corretamente as expectativas não realistas de
Ana sobre a possibilidade de a diálise melhorar a condição de sua mãe, de modo
a recuperar a consciência. Podia ser melhor perguntar ao médico sobre o impacto
da diálise no nível de consciência da D. Florentina. Perguntar a Ana quais as
suas expectativas é correr o risco de perder a face e de que ela se torne mais
defensiva se lhe disserem que está errada.
Mediadora:
Portanto, o que também entendi dos médicos foi que a doença da vossa mãe está a
avançar rapidamente, causa uma série de lesões dispersas pelo seu corpo; o seu
cérebro está atingido, os seus rins foram atingidos, e eles não veem como possa
melhorar. Talvez possam atuar durante pouco tempo para que fique ao nível do
que está atualmente mas não muito melhor. O modo como ela se debate agora, permanecendo
no leito, incapaz de interagir convosco, é o melhor que conseguem. Foi o que
percebi do que os médicos disseram. Perceberam algo de diferente?
Dr. Domingues:
Detesto dizer isto mas não acredito que possa deixar o hospital e não gostaria
de a ver sofrer desnecessariamente.
Esta é uma oportunidade real para a mediadora tomar conta
da discussão e ajudar Ana a aceitar as consequências do que a doente e a
família enfrentam: “Dr.
Domingues, deixe-me ver se percebo, atendendo à falha de funcionamento do seu
coração e dos seus rins e atendendo aos danos causados no seu cérebro, é
possível que a D. Florentina desperte e ter alta do hospital? Entendi que
nenhuma dessas hipóteses são possíveis, estou certa?”
É também a altura para a mediadora explicar à Ana que
continuar os tratamentos impõe uma carga sobre D. Florentina, fazendo perguntas
tais como: “Dr.
Domingues, ela está a sofrer?” “É possível que o ventilador lhe esteja a
causar dores?” “Há alguma maneira de se saber que não está a ter dores?” O tema
do sofrimento sem benefícios é um dos que a mediadora deveria realçar junto das
filhas.
Dr.ª Carla Cardoso: Neste
momento ela está ligada ao ventilador e com poucas probabilidades de poder ter
alta de todo. Está gravemente doente, tem múltiplos problemas médicos e já foi
reanimada uma vez.
Ana: É como
diz. O seu coração parou e eles reanimaram-na, fizeram todas aquelas coisas e
ela ainda está connosco. Por isso, não compreendo que …
Mediadora: Ela
foi alvo de intervenções no hospital e isso tem levado a uma pausa na sua
doença. Foi possível repor o batimento do seu coração que está a trabalhar
assim [faz um gesto em que as mãos estão a uns doze centímetros uma da outra] e
daqui a nada estará a trabalhar assim [as suas mãos estão a cinco centímetros
apenas].
Ana:
Portanto, se voltar a parar, podem voltar a pô-lo a bater de novo!
O problema com a dificuldade de cada um falar em que a D.
Florentina estar a morrer e de usar palavra «morte» leva a que Ana continue a
avançar com ideias não realistas.
Dr. Domingues: Não
sei se voltaria a bater.
Ana: Se
voltarem a atuar.
Mediadora: Cada
vez que se cai um nível não se regressa ao nível anterior e cada vez que se
fica mais doente e com mais danos, mais se avança para menos e menos
funcionamento.
Bom uso de imagem: ainda melhor seria se a mediadora
tivesse iniciado a afirmação sob a forma de pergunta: “Portanto, o doutor está a
dizer que …”
Dr.ª Carla Cardoso: Ela
terá dores? Estará a sofrer a esse ponto?
Ana: O que
significa “menos e menos funcionamento”?
Mediadora: O que
quis dizer é que, se dissermos que antes de ser internada, digamos, ela tinha
um depósito, como um depósito de gasolina. Digamos que o depósito do seu
coração estava cheio quando veio para o hospital, a sua doença esvaziou-o para
uns 50%, digamos que perdeu metade, e não há maneira de o encher de novo. No
próximo evento, a próxima vez que o coração parar, o depósito volta a esvaziar
algo mais e, de novo, não há hipótese de o voltar a atestar. Os médicos estão
preocupados, como sabe, se voltar a acontecer e não forem capazes de a manter
pois cada vez a reserva estará mais em baixo.
Esta é uma metáfora eficaz para ajudar Ana a compreender
que a sua mãe não vai melhorar mesmo que os médicos consigam manter o seu
coração a bater.
Ana: Então
como podemos ajudá-la, porque eu não quero abandoná-la. Sei que a Beatriz quer
desistir, mas eu não quero desistir -
Beatriz: Não
estás a ser justa. Sabes que eu amo a Mamã, não é justo.
Mediadora: Acho
que ouvi a Beatriz dizer que não a quer abandonar, penso que não quer desistir
dela. Julgo que vocês não estão necessariamente em desacordo. Ouvimos que ambas
amam a vossa mãe e que querem ajudá-la e creio também ter percebido que, como a
vossa mãe era quem tomava conta do vosso pai, o facto de ela não poder
continuar a exercer esse papel torna tudo muito difícil para ambas. Há decisões
muito difíceis a tomar por vós em conjunto sobre o vosso pai e a forma como
cuidar dele. O que pensam ambas sobre – uma vez que a vossa mãe, viva mais um
dia ou mais um ano, não vai estar, conforme dizem os médicos, acordada e no
fundo capaz de participar como fazia antes – o que pensam sobre o que é preciso
fazer pelo vosso pai?
A mediadora muda o foco do debate do que seria o
tratamento adicional da D. Florentina para o problema de arranjar serviços para
o pai. É um movimento crítico (e algo que poderia ter sido feito mais cedo).
Beatriz: Que
vamos fazer, Ana? Que vamos fazer com o Papá?
Ana: Acho
que com a Mamã, a Mamã tomava conta dele e a ela está aí e o Papá precisa da
Mamã.
Beatriz: Mas
não me parece que vá poder tomar conta dele do mesmo modo que fazia, por isso o
que faremos com o Papá? Temos de ter a certeza de que o Papá fica bem e que
tomamos conta dele como deve ser.
Ana: Eu
sei.
Quando a mediadora levantou a questão dos cuidados com o
pai como um problema que tinham de partilhar o tom da discussão abrandou e as
irmãs, pela primeira vez na mediação, começaram a falar uma com a outra.
Dr. Domingues: A
vossa mãe está nos Cuidados Intensivos há coisa de um mês – quem tem tomado
conta dele?
Ana: Eu
tenho feito o que posso porque o Papá, a Mamã e eu vivemos juntos.
Mediadora: Está a
trabalhar, Ana?
Ana: Por
vezes, sim.
Mediadora:
Portanto, o peso tem recaído todo sobre si neste mês ao mesmo tempo que olha
pela sua mãe no hospital – isso deve estar a ser realmente muito difícil.
Este reconhecimento dos esforços de Ana e do peso que tem
suportado é importante para se chegar a uma solução.
Ana: É
muito difícil.
Mediadora: Como
estar a conseguir lidar com isso?
Ana: Têm
sido de facto uns tempos muito duros.
Mediadora: O que
poderia ajudá-la?
Ana: Não
sei, é por isso que temos de …, não posso desistir da Mamã.
Mediadora:
Portanto o que está a dizer é que está bastante sobrecarregada com isto?
Ana: É
muito difícil.
Mediadora: É
difícil. É realmente difícil. A Beatriz não tem estado cá e por isso –
Beatriz: Não,
acho que não tenho sequer pensado sobre isso. Acho que deixei que tomasses
conta do Papá e penso que precisamos de agir em conjunto. Precisamos de fazer
planos em conjunto para tomar conta do Papá de modo que não caia tudo sobre ti.
Não me parece justo, por isso desculpa, peço muita desculpa. Nunca disse nada
porque assumia que tudo estava bem. Lamento tanto. Que posso fazer para ajudar?
Ana: De
facto nem sei.
Mediadora: Não
podemos, quem dera que pudéssemos, mas não podemos mudar a realidade de que a vossa
mãe está a morrer, mas uma das coisas que podemos fazer é chamar a nossa equipa
do serviço social para falar convosco. Podemos marcar uma reunião de modo que
se inicie um plano e se veja o que precisam para lidar com a situação na falta
da vossa mãe. Parece-lhes uma boa ideia?
Ana: Eu
gostaria de ser ajudada.
Mediadora: Muito
bem. Portanto ambas irão trabalhar para chegar a um acordo que permita tomar
conta do vosso pai. A assistente social certamente vos dará a conhecer os
programas que temos e a assistência que poderemos oferecer para vos ajudar
neste tipo de coisas.
Dr. Domingues: Acho
que posso dizer, como médico assistente encarregado dos cuidados à vossa mãe,
que sei que há um consentimento escrito no processo clínico para a diálise. Com
todo o respeito, gostaria de saber se, sabem, posso prosseguir com os cuidados
da vossa mãe de modo a dar-lhe todo o conforto ou se preciso tratar das coisas
para que a diálise se inicie?
Mediadora:
Portanto, Dr. Domingues, a diálise – o senhor diz que preferia não a fazer mas
que não se opõe a que seja feita, e usou a palavra “conforto”?
Dr. Domingues: Sim.
Mediadora:
Acredita que se ficar em diálise isso seria desconfortável para ela?
Dr. Domingues: Não
creio que seja confortável. Acho que já o disse antes, sinto que apesar de tudo
está a sofrer mais com os tratamentos do que a beneficiar deles. Penso que há
dores que derivam das quedas de tensão e de todos os soros e da busca de
lugares para encontrar veias. A diálise significa pôr-lhe mais uma série de
tubos e eventualmente construir uma fístula no seu braço – todas essas coisas
realmente invasivas e dolorosas mas efetivamente sem utilidade. São coisas que
prolongam a sua morte e não estão realmente a dar-lhe nada de melhor. Penso na
vossa mãe – preocupa-me por não estar a prestar o melhor serviço avançando para
a hemodiálise.
Ana: Então
isso não a vai ajudar?
Dr. Domingues: Não.
Ana: Então
o que vamos fazer por ela?
Dr. Domingues: Vamos
assegurar de que fica confortável e que vive o que resta da sua vida na maneira
que ela queria. Ela foi muito clara sobre o que queria e o que não queria.
Ana: Às
vezes penso que a respeitamos fazendo isso.
Mediadora: Muitas
vezes, com doentes em fim de vida, os médicos são capazes de deixar de fazer
procedimentos desnecessários para passarem a garantir que ficam confortáveis
durante o tempo que lhes resta, não é assim?
Eis um bom resumo do desvio de foco dos cuidados da D.
Florentina, mas teria sido útil reconhecer o quanto Ana mudou de posição: “Ana, quero fazer uma pausa
breve para reconhecer como esta conversa está a ser difícil para si e como tem sido
uma filha realmente devotada e grande defensora da sua mãe. Sabemos que ambas
amam a vossa mãe e o vosso pai, mas, como disse a Beatriz, você apanhou com o
maior peso neste último mês. Manteve-se fiel à sua mãe procurando sempre o que
seria melhor para ela. Foi realmente forte na defesa da sua vida. Mas agora,
estando todos de acordo em que ela está a morrer, você foi capaz de ver o que é
melhor para ela, e isso é muito duro. Agradeço-lhe sinceramente por ser assim
para a sua mãe.”
Dr. Domingues: É
exatamente como diz.
Mediadora: Que
lhes parece?
Ana:
Beatriz, então podemos ir vê-la e o Papá pode vir.
Beatriz: Claro.
[As conclusões e os agradecimentos às partes foram
omitidos.]
Debate
adicional
Este caso contém um problema que não é raro: apesar de a
D. Florentina ter passado a escrito as suas vontades com clareza (apenas cerca
de 15% da população passa a escrito as suas vontades antecipadas ou testamentos
vitais), ela apenas debateu as suas vontades com uma das suas filhas. O
resultado é que a melhor maneira de resolver conflitos intrafamiliares não é
por recurso a autoridades legais mas através de uma mediação onde os receios e
sofrimentos subjacentes dos filhos podem ser devidamente tratados.
O conflito foi agudizado porque Ana, a filha adulta que
vivia em casa, foi sobrecarregada e ficou cheia de dúvidas sobre como poderia
organizar a sua vida com um pai demente depois da morte da mãe. Outra fonte de
conflitos foi o nefrologista que criou um problema dando a Ana a falsa
esperança ou, pelo menos, usando uma linguagem que permitiu essa interpretação
e um mal-entendido que, na verdade, não foram muito úteis.
A mediadora deste caso foi, assim, levada a demorar
demasiado tempo a chegar à palavra «morte» e a dizer o que todos estavam a
contornar – que a D. Florentina estava a morrer. Só mesmo na fase final da
mediação é que o Dr. Domingues reformulou o ponto em que prolongar a sua vida
era prolongar o seu morrer. Pode muitas vezes ser útil ao mediador, precocemente,
dizer qualquer coisa como: “Portanto, caro doutor, o senhor está a dizer que a D.
Florentina está a morrer e que começar uma diálise não vai melhorar a sua vida
mas apenas acrescentar desconforto e prolongar o seu morrer?” Note-se
como esta forte mudança de atitude da mediadora, usando perguntas, a suaviza e
dá espaço a que os familiares façam também perguntas e tenham tempo para
amadurecer as suas implicações.
É muito importante recordar que os familiares não estão
acostumados com a linguagem, terminologia e conceitos da moderna medicina e
provavelmente sentem-se confusos e afastados do debate. Mas falta um elemento
mais nesta mediação – a noção de que a equipa de cuidados médicos tem de
assumir a responsabilidade das decisões embora sem desvalorizar os familiares.
Neste caso a mediadora necessitou de perguntar ao médico o que é que ele
sugeria e porquê, numa forma de restabelecer a responsabilidade e a autoridade
relativa a esta terrível decisão que significa a morte.
A mediadora podia ter dito: “Dr. Domingues, percebi que
disse que a D. Florentina está a morrer e que o senhor ou qualquer intervenção
médica no hospital não podem evitar isso. É assim? Também percebi que disse que
essas intervenções, que não a podiam melhorar e levá-la ao estado em que estava
antes, lhe podiam causar também dores e sofrimentos. Portanto, parece que o
senhor pensa que o melhor para a D. Florentina é dirigir os nossos esforços
para o seu conforto e que prolongar o funcionamento dos seus órgãos não a faz
voltar para junto das filhas. Se é assim, então é justo dizer que sugere que o
melhor para a D. Florentina é deixá-la morrer confortavelmente?” Se
seguirmos esta lógica, as filhas compreendem a progressão e entendem a
responsabilidade do médico nessa decisão. E não sentirão que são elas a causa
da morte da sua mãe.
Este caso ilustra ainda um outro tema. Os testamentos
vitais são importantes mas, no cerne de decisões difíceis, eles são apenas uma
peça informativa a acrescentar a outras, as quais devem ser trabalhadas para se
alcançar uma solução. Podia ter sido útil fazer, precocemente, citações do
documento e perguntar porque é que Ana pensava que a sua mãe não queria dizer
com o que lá estava. Mas o processo mostrou-se relevante na ajuda para as
filhas compreenderem e chegarem a um acordo. Impor os ditames do testamento
vital num caso como este acabaria por ser ineficaz e mesquinho. Não ajudaria
estas filhas a lidar com a realidade com que se confrontavam ou com o futuro
que elas necessitam viver juntas.
Estas eram as vontades da mãe e estavam definidas num
documento legal. Muitos juristas perguntarão por que razão isso não acaba com a
discussão? A resposta é que em cuidados médicos há obrigações éticas para todos
quantos participam nas decisões. É por isso que falamos em soluções honrosas de
conflitos. Havendo um testamento vital, não havia suporte legal para dar início
à diálise naquela altura. Não podíamos argumentar que seria uma intervenção de
curta duração que ela havia de querer para recuperar a sua saúde. Tratava-se de
uma intervenção de longa duração que não iria possibilitar senão o prolongar do
processo de morte. É por isso que neste caso, como em muitos outros, o conflito
é um incentivo para se examinarem todos os dados, assim como a maneira de se
chegar a um consenso que preencha as necessidades emocionais da família e se
compatibilize com as vontades legalmente documentadas da doente.
O pessoal médico encara a morte como algo natural. Estão
treinados para tratar destes casos com competência e sem excessivas emoções. O
distanciamento que resulta da educação médica permite que o pessoal saiba lidar
com situações mais emotivas. Os familiares não estão acostumados e os
profissionais devem mitigar as suas sobrecargas de modo que possam desempenhar
os seus papéis no seio da família e cumprir as suas responsabilidades depois de
os entes queridos morrerem.