Uma gravidez de risco: transcrição de uma dramatização pedagógica
Personagens [NT: A opção por
nomes portugueses, fictícios como no original, procura significar que, se nunca
aconteceu, uma conversa similar pode acontecer entre nos.]
Óscar Oliveira, marido da doente
Dr. Rui Rocha, assistente graduado de obstetrícia
Dr.ª Luísa Lemos, obstetra do quadro
Mediador Bioético
Contexto
Odete Oliveira, uma senhora de 32 anos, está na 18.ª semana de gravidez.
Ela e o seu marido, Óscar, têm uma filha, uma menina de 6 anos de idade. A D.
Odete teve recentemente três abortamentos e tem estado apreensiva sobre a atual
gravidez, receosa e fazendo muitas perguntas sobre dietas, sobre o local de
trabalho do marido, sobre os cuidados médicos. A equipa médica que acompanha a
D. Odete Oliveira considera a ansiedade excessiva, mesmo tendo em conta tantos
abortamentos.
Na ecografia do feto, a Dr.ª Luísa Lemos, obstetra da D. Odete, verificou
que a estrutura do coração fetal não parece estar bem. Tem dúvidas sobre se há
efetivamente um problema ou se a aparência anormal do coração resulta do ângulo
em que foi feita a ecografia. A Dr.ª Luísa quer repetir o exame e fazer um
ecocardiograma para excluir um defeito cardíaco. A confirmação de um defeito na
estrutura do coração poderia indicar não somente um sério problema cardíaco mas
também uma anomalia cromossómica.
A Dr.ª Luísa tem sido consultada pela D. Odete e seu marido nos últimos
sete anos, desde o nascimento da primeira criança e quando dos abortamentos. O
relacionamento entre eles é muito caloroso. A Dr.ª Luísa, médica há 31 anos e mãe,
acredita que partilhar com a D. Odete os achados do exame e as suas possíveis implicações,
nesta altura, seria provocar-lhe uma preocupação enorme. Se as suspeitas da Dr.ª
Luísa se não confirmarem, argumenta, a D. Odete evitara um sofrimento desnecessário.
Se as suspeitas se confirmarem, haverá tempo para conversar com ela e o marido sobre
as implicações.
O assistente graduado do serviço, Dr. Rui Rocha, tem acompanhado o caso da
D. Odete desde o início desta gravidez. Está preocupado pois pensa que é inconcebível
que um medico esconda do casal informações relativas a primeira ecografia. Esta
posição nega a D. Odete o direito a informação completa sobre o seu bebé e o
direito a decidir sobre a sua saúde e a do seu filho.
A Dr.ª Luísa pediu uma consulta de bioética para tentar resolver a questão
de informar a D. Odete sobre as preocupações dos médicos.
Transcrição e notas
Reunião dos Dr.s Luísa Lemos e Rui Rocha com o Mediador Bioético.
Mediador Bioético: Ora vivam. Penso
que aqui a Dr.ª Luísa já me conhece e sei que também conhece o Dr. Rocha. Dr.
Rocha, eu sou membro da Comissão de Ética deste Hospital há seis anos. A Dr.ª Luísa
convocou-me para esta reunião para que pudéssemos falar do caso de D. Odete
Oliveira. Por isso, chamei ambos para depoimentos iniciais. Gostaria que
explicassem quais as limitações médicas da Odete – quais as nossas
possibilidades, as nossas obrigações de cuidados. No fundo, qual o melhor rumo
a dar ao caso: se deve ser informada, o que se lhe deve dizer, e que tipo de
apoio poderá necessitar se decidirmos informá-la. Portanto, Dr.ª Luísa, como
conhece a D. Odete há mais tempo, julgo que poderia começar por nos dizer
alguma coisa sobre a sua história e a situação.
O mediador começa com as apresentações. Faz o enquadramento do assunto
centrado nas necessidades da doente mais do que no desacordo entre médicos e
mantém esse foco ao pedir a Dr.ª Luísa que se pronuncie. Começando pela Dr.ª Luísa,
escolheu seguir a hierarquia hospitalar. Esta abordagem parece apropriada,
neste caso, como forma de obter informações sobre cuidados prestados e de
ganhar a confiança da Dr.ª Luísa, que está a ser contestada pelo assistente do serviço.
Noutros casos, o mediador pode também achar útil ir contra a estrutura de poder
existente e começar por ouvir quem esteja em posição inferior na hierarquia
para passar a mensagem de que durante a mediação todos os pontos de vista são
importantes e devem ser tidos em conta.
O uso da palavra “convocar” (“a Dr.ª Luísa convocou-me” e “chamei ambos
para”) pode ser mal interpretado. Em ambiente legal esta palavra pode ser um
pouco intimidante. Em termos médicos, seria preferível usar o pedir de opinião sobre
o caso. A linguagem em mediação tem muito a ver com as expectativas criadas
sobre se o mediador está para dar opinião ou para decidir.
Dr.ª Luísa: Sou obstetra da
Odete há sete anos. Ela tem uma criança com seis. Depois desse parto, teve três
abortamentos. Está atualmente na 18.ª semana de gravidez. Fez uma ecografia na
semana passada que revela uma anomalia – parece haver uma anomalia do coração
do bebé. Não sei se é por causa de uma má posição da sonda ou se é efetivamente
uma anomalia. Também queria mencionar que a Odete é uma pessoa muito ansiosa, nervosíssima;
todos concordam que é excessivamente nervosa. O que gostaria de fazer era
repetir esta ecografia para esclarecer se há ou não anomalia cardíaca. Gostaria
também de ter um ecocardiograma. Contudo, considerando a história de ansiedade
da Odete, não quero dizer o que vou fazer, ou melhor, não quero dizer-lhe que
penso que pode haver uma anomalia cardíaca no feto. Quereria apenas dizer-lhe
que as imagens não mostram nada e que gostava de as repetir. Esta é a minha posição.
Sinto que para proteger o sossego da Odete seria melhor este caminho, obter
novos e definitivos exames e se, então, se verificar que há um problema,
conversar com ela sobre isso.
Mediador Bioético: Muito bem, e o
marido ainda não sabe?
O mediador faz uma pergunta clarificadora.
Dr.ª Luísa: Nem a doente nem o
marido.
Mediador Bioético: Dr. Rocha,
fale-nos do seu contacto com a Odete – o que pensa de tudo isto?
Esta é uma pergunta aberta.
Dr. Rocha: Bom, eu sou o
assistente graduado no serviço e tenho-a acompanhado desde o início da
gravidez. Estou sabedor de todas as circunstâncias do caso. A ecografia que
fizemos não confirmou o defeito cardíaco. O meu problema nesta altura é perceber
que a doente não dispõe da informação de que dispomos. Por isso estou muito preocupado
com a ocultação – que é o que estamos a fazer – ocultamos informação importante
que a doente tem direito a conhecer.
Dr.ª Luísa: Tenho a impressão
que se a informar vamos agravar o seu estado mental que é, atualmente, precário.
Não se perde nada em só lhe dizer que precisamos repetir o exame, após o que
lhe diremos o resultado final e lhe diremos o que for preciso. Perdemos apenas
uma semana ou um par de dias.
Dr. Rocha: Há algumas coisas
que eu sei desta doente, que ela tende a ser bastante ansiosa e está superatenta
a quaisquer sinais de problemas. Se, creio eu, ela perceber que estamos a fazer
mais exames, vai ter mais ansiedade do que teria se lhe dermos uma explicação razoável.
Levar uma doente como esta a preparar-se para um novo exame, outra ecografia… estaríamos
a enganá-la, na verdade a mentir-lhe, se disséssemos que as imagens nada mostram.
Se lhe disser que vai fazer um ecocardiograma, isso será sempre, para uma
doente como esta, o mesmo que dizer que há outros problemas. Penso que acabara
igualmente num estado de grande ansiedade, talvez ainda pior, violando o
direito da doente a conhecer a sua situação, além de que perdera a nossa confiança.
Mediador Bioético: Permitam que esclareça
umas coisas. Ambos pensam que é uma doente ansiosa. Podiam explicar um pouco o
que vos leva a acreditar que esta questão ira produzir mais ansiedade.
O mediador é transparente sobre o que está a fazer ao dizer “Permitam que esclareça umas coisas”. Realça uma zona em
que ambos os médicos estado de acordo – trata-se de uma doente ansiosa – e
passa a uma questão mais restrita, embora faça uma pergunta aberta ao procurar informação
adicional.
Dr.ª Luísa: Bom, ela está
sempre a questionar as indicações médicas que lhe dou, faz perguntas sobre a
dieta, sobre o seu bem-estar, se o emprego do marido tem algo a ver com os
abortamentos. Muito mais do que fazem outras doentes que acompanho e
seguramente muito mais do que na sua primeira gravidez.
Mediador Bioético: Fez alguma coisa
de pouco habitual? Pode descrever-nos um pouco mais o que faz? Como é que isso
afeta a sua vida ou da sua família?
O mediador faz mais perguntas clarificadoras. Fazer múltiplas perguntas
permite ao respondente falar sobre o que mais lhe agradar. Contudo, um
inconveniente é o respondente escolher as perguntas que lhe possibilitem evitar
falar de assuntos difíceis que precisem de ser debatidos.
Dr.ª Luísa: não sei de ações
especiais que ela tenha praticado, apenas – sabem, é uma coisa prática, de
todos os dias, penso eu – temos uma esposa e mãe que está num tal estado de
ansiedade que se torna difícil para os outros membros da família.
Mediador Bioético: O marido falou
disso consigo?
Dr.ª Luísa: Não.
Mediador Bioético: E falou com ele
sobre isso?
Dr.ª Luísa: Não.
Mediador Bioético: OK. Pode dar-nos
alguma informação mais sobre os abortamentos?
O mediador mudou de rumo procurando informações que provavelmente não
ajudam a resolver o diferendo.
Dr.ª Luísa: Foram três
abortamentos que aconteceram muito recentemente.
Mediador Bioético: Foi isso que...
Dr.ª Luísa: Não que eu tenha
dado conta.
Mediador Bioético: Ambos viram a
ecografia que mostra esse possível problema?
O mediador voltou aos carris, pedindo informações que podem ajudar a solução.
Aqui assegura-se que ambos viram o exame e, portanto, estão a laborar sobre a
mesma informação. Esta pergunta inicia uma serie de perguntas objetivas.
Dr. Rocha: Eu vi.
Dr.ª Luísa: Sim, eu também.
Mediador Bioético: Disse que é uma questão
de dias.
Dr.ª Luísa: Sim.
Dr. Rocha: Sim, desde que se
conseguisse fazer uma ecografia rapidamente.
Mediador Bioético: OK. Depois dessa
ecografia e do cardiograma, acha que teremos um grau de certeza sobre aquilo
que se pode dizer a doente?
Dr.ª Luísa: Maior do que temos
hoje. Espero bem que saiba... obviamente, o bebé pode continuar a mexer-se e esconder-se
no mesmo sítio. Mas penso que teremos uma certeza muito maior sobre se há alguma
anomalia cardíaca.
Mediador Bioético: Mas é ainda possível
que tenha de esperar mais algumas semanas para repetir o exame de novo, de modo
a alcançar o grau de certeza que gostaria de ter.
Dr.ª Luísa: É possível. Espero
que não aconteça.
Mediador Bioético: Dr. Rocha, ou
melhor, talvez ambos possam falar sobre isto. Parece que, no melhor cenário, poderá
demorar vários dias a ter este exame feito. Dr. Rocha, até que ponto são
importantes estes dias, para si?
O mediador convida o Dr. Rocha, que não tem falado muito, a ser mais ativo
na conversa.
Dr. Rocha: Estou muito
preocupado que, se tivermos más notícias para a doente e ela tiver de
considerar uma interrupção voluntaria da gravidez, esteja ultrapassado o prazo
para o fazer. Não sei o que ela pensa sobre o assunto mas, como seu médico
neste caso, tento perceber o ponto de vista da doente. é por isso que sou inflexível
sobre o que os doentes precisam de saber. Isto é da maior importância para ela,
para a sua família e para o futuro da criança. Penso que não é ético nada lhe
dizer.
Mediador Bioético: O conhecimento
sobre um possível defeito cardíaco é crucial?
Dr. Rocha: Creio bem que
seja.
Mediador Bioético: Então a realização
do exame depende da decisão dela?
Com esta e a pergunta anterior, o mediador muda o foco da discussão sobre princípios
para aspetos práticos da situação.
Dr.ª Luísa: Mas ela tem muito
tempo. Só esta na 18.ª semana da gravidez. Tem até ao fim do segundo trimestre,
que é o outro… Sei que o risco aumenta com o decorrer das semanas mas ainda há muito
tempo. Não estamos na 24.ª semana. [NT: No original está “27.ª semana”. No caso português,
o Código Penal refere, no artigo 142.º, 1, que “Não é punível a interrupção da gravidez efetuada por
médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:” c) “Houver seguros
motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave
doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de
gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a
interrupção poderá ser praticada a todo o tempo”.]
Dr. Rocha: Mas mesmo que não
seja essa a consequência, a verdade é que temos informação sobre a doente que é
muito critica e estamos a excluí-la dessa informação. Penso que a ética, no
nosso caso, exige que partilhemos esta informação com esta doente. Não há razoes
clínicas para reter esta informação.
Dr.ª Luísa: Há uma razão clínica.
Ela está extremamente ansiosa e receio que… Se a informação fosse 100% certa, não
teria problemas. Mas nestas condições, estou insegura sobre a nitidez das
peliculas e temos uma doente que pode ser afetada negativamente, somente por
lhe dizermos isso e depois fazê-la esperar.
Dr. Rocha: No entanto, isso é
hipotético. Não sabemos. Não sabemos se o feto tem um defeito cardíaco e também
não sabemos se a doente vai ficar mais ansiosa. Estamos perante uma impressão
profissional. A doente nada fez que prove essa ansiedade.
Dr.ª Luísa: Bom, eu conheço-a há
sete anos.
Dr. Rocha: Ela não teve…
Dr.ª Luísa: Na verdade, ela… Conheço-a
muito melhor que o senhor. O Dr. Rocha só a conhece há seis meses.
Dr. Rocha: Mas é no tempo
atual que eu a vejo. Os passados sete anos já passaram. E, de facto, nos
passados sete anos, a senhora não foi capaz de mencionar que alguma vez a sua
ansiedade a tenha posto em perigo.
Dr.ª Luísa: Bom, há o perigo físico
e há o perigo mental. Aumentar o nível de ansiedade de uma pessoa é um perigo.
Dr. Rocha: Não temos opinião psiquiátrica
ou informação de que a doente esteja extraordinariamente ansiosa com consequências
sobre o seu presente…
Dr.ª Luísa: Mas estamos todos
de acordo que ela tem ansiedade excessiva, mesmo tendo em conta os seus
recentes abortamentos.
Dr. Rocha: Interrogo-me sobre
se não será antes de uma ansiedade profissional que estamos a falar. Estamos a falar
de opiniões dos profissionais. Não ouvimos o marido.
O mediador permitiu esta crescente troca de palavras entre os médicos e
agora intervém com uma pergunta clarificadora.
Mediador Bioético: Deixem-me
perguntar-lhes de novo. Acham que é muito importante relatar esta informação à
doente logo que a equipa dela tem conhecimento?
Nesta altura seria útil fazer o ponto da situação antes de avançar com
novas perguntas. Por exemplo: “Deixem-me gastar um minuto a sintetizar onde penso que
estamos. Ambos concordaram que Odete Oliveira é uma doente ansiosa, embora
divirjam sobre o que se deve concluir desse facto. Ambos viram a ecografia e
concordam em que os resultados são inconclusivos mas que mostra um possível
defeito cardíaco. Também concordam em que, se há esse defeito, a doente necessita
ser informada pois ela e o marido podem querer tomar decisões difíceis. Parece
ainda que ambos concordam em que o exame deve ser repetido e que isso pode ser
feito nos próximos poucos dias”. Este resumo reduz as discordâncias e realça as zonas de acordo.
O mediador poderá então prosseguir agradecendo aos médicos as suas opiniões
e interesse, fazendo uma declaração do género: “Parece claro que ambos estão ao lado da
doente e preocupados com o seu bem-estar e que ambos têm opiniões sólidas sobre a forma como
devem cuidar dela. Dr.ª Luísa, a senhora tem cuidado da Odete desde o
nascimento do primeiro filho
e quando dos subsequentes abortamentos e apercebeu-se do impacto dessas perdas,
pelo que vejo que quer minimizar a
tensão que acompanha esta gravidez. Dr. Rocha, o senhor é sensível à tensão da
Odete mas preocupa-o que resguardá-la
da informação acabe por agravar essa tensão no futuro, além de que vê aqui uma
questão de princípio relativa ao
direito à informação dos doentes”. O mediador, mostrando que compreende os
sentimentos e interesses dos dois médicos, pode eliminar, ou pelo menos,
reduzir a necessidade que eles sintam em continuar a luta. Pode então
prosseguir partindo as diferenças em pedaços mais manuseáveis e dizendo: “Parece ainda que há dois pontos que precisamos de debater um pouco
mais: o que deve ser dito à Odete sobre o motivo por que vamos repetir o exame e
quando vamos informá-la≫. Esta formulação feita pelo mediador tornaria necessário resolver
explicitamente estes pontos e centraria os médicos nos problemas que precisam
ser resolvidos.
Mediador Bioético: [Para facilitar,
repete a última declaração transcrita.] Deixe-me só perguntar-lhe novamente. Disse
que é muito importante dar esta informação à doente logo que seja do
conhecimento da equipa.
Dr. Rocha: Certo.
Mediador Bioético: Mas que o atraso
de dois dias, de modo a haver informação mais conclusiva…
Dr.ª Luísa: Esse é o ponto.
Penso que esta ideia de que os doentes têm de conhecer tudo o que nós sabemos
logo que o sabemos, não está certa. Acho que tem de haver ponderação. Neste
caso, entendo que a ponderação é justificada.
Mediador Bioético: Ha alguma decisão
que a doente tomaria, ou que teria de tomar, que deveria ser tomada nos próximos
dois dias, se lhe falássemos hoje?
Dr. Rocha: Bom, na minha
maneira de ver, a doente precisa de ser informada sobre esses outros exames e
ela teria de dar o seu consentimento informado. Sem informação adequada, ela não
pode dar um consentimento válido para o ecocardiograma e a repetição da
ecografia.
O Dr. Rocha volta ao ponto de partida. O mediador devia registar a
resposta e valorizar o significado deste regresso. Não é raro vermos as partes
voltarem aos estádios iniciais da mediação, nomeadamente se lhes são pedidas opções.
Mediador Bioético: Que lhes parece a hipótese
de se envolver o marido na decisão? Como ele lida com a doente, pode ser que
tenha uma perceção da sua situação mental. O que acham disso?
O mediador faz uma proposta. O fundamento para esta proposta, contudo, não
é claro. Precisa, previamente, reunir mais informação sobre o marido, o seu
papel no tratamento da esposa, o relacionamento entre ambos.
Dr. Rocha: Eu seria muito
relutante em fazer isso. Penso que isso poria uma responsabilidade muito grande
no marido – dar-lhe uma informação dizendo-lhe que não a pode transmitir a sua
mulher. É um presente envenenado. Não o faria. Nem penso que seja bom para a
Odete.
Mediador Bioético: Bom, mas não se esqueça
que só estamos a falar de dois dias.
O mediador parece querer impor a ideia que teve de envolver o marido.
Dr. Rocha: Não me importa que
sejam dois dias ou vinte minutos. Simplesmente penso que não e correto fazer isso.
Não me parece moralmente correto pedir a um membro do casal para ocultar uma informação.
Dr.ª Luísa: Concordo com o meu
colega mas por razões diferentes. Parece-me que estamos a falar de
confidencialidade e não devemos ir junto do não-doente dar-lhe informação que
diz respeito ao doente. Não é uma questão de tempo. Penso que a questão é
exatamente a omissão de informação.
Ambos os médicos rejeitam a proposta do mediador. Note-se que ele fez a
proposta no âmbito de uma pergunta pelo que é natural que as partes a não
aceitem.
Dr.ª Luísa: Penso que o tempo é
um aspeto absolutamente central. Esperamos 48 horas, conseguimos a informação definitiva
e então… Pode mesmo acontecer que nem tenhamos de dizer nada a Odete sobre o coração,
que o coração do bebé seja perfeito, que o problema nem exista.
Dr. Rocha: O problema existe,
pois estamos mesmo a esconder da doente uma situação, uma possível doença do seu
filho.
Dr.ª Luísa: Mas nos não
sabemos com certeza que situação é.
Dr. Rocha: Então diga-me como
vai obter consentimento informado para a doente fazer dois exames sem lhe dizer
porquê?
Dr.ª Luísa: Pode dizer-lhe
que...
No diálogo em curso, a discussão aquece à medida que os médicos repetem as
suas diferentes posições. O Dr. Rocha levanta um problema muito importante mas
expressa um desafio.
Mediador Bioético: Na verdade isto
leva-me a minha pergunta seguinte, a qual, digamos, é sobre o que gostariam de
dizer à doente antes de fazer estes novos exames. E como se proporiam
responder-lhe se começasse a fazer perguntas sobre estas coisas?
O mediador intervém e reformula a pergunta de modo a retirar-lhe a carga
de desafio. Note-se a escolha das palavras e o modo como divide o problema em pedaços.
Desvia o assunto do modo como a Dr.ª Luísa obtém o consentimento informado para
o que gostaria de dizer à Odete e o que lhe responderá.
Mediador Bioético: Diga-me como sente
que seria razoável abordar a D. Odete, quando lhe pedir para fazer esses dois
exames. Como o faria? Como deveria lidar com a situação se ela fizer perguntas embaraçosas?
O mediador clarifica um pouco mais e dá à Dr.ª Luísa oportunidade para
mostrar como, efetivamente, seria a sua conversa com Odete.
Dr.ª Luísa: Começaria por lhe
dizer que a ecografia foi feita de um ângulo errado e que há uma parte do coração
do bebé que se não vê bem pelo que precisamos de repetir o exame para ver
melhor.
Mediador Bioético: Fica confortável
com esta explicação?
O mediador dirige-se ao Dr. Rocha.
Dr. Rocha: Penso que ficaria,
porque parece que trata dos factos como os conhecemos. Não há distorção. É o
que temos.
Mediador Bioético: OK. Bom, suponho
que ela precisa também de fazer um ecocardiograma. O que lhe diria então?
O mediador volta a Dr.ª Luísa e continua a caminhar, passo-a-passo, no que
acontecerá na conversa com a Odete. É uma maneira boa de verificar.
Dr.ª Luísa: Diria que vimos
qualquer coisa nas películas que é algo anormal e que preciso de confirmar ou
afastar essa dúvida fazendo um ecocardiograma.
Mediador Bioético: E como procederá
se a Odete ficar muito perturbada com esse pedido? Acha que poderá haver algo
que terá de lhe dizer nesse caso?
Mais um teste da realidade feito pelo mediador.
Dr.ª Luísa: Não sei. Vamos
indo e vamos vendo. Não iria mentir, apenas não lhe oferecia a informação à
partida. O teste da realidade, perguntando especificamente o que a Dr.ª Luísa
diria se Odete fizesse perguntas, proporciona uma resposta que é muito
diferente da posição anterior – que a Odete devia ser protegida.
Mediador Bioético: O que acha disto?
O mediador dirige-se ao Dr. Rocha.
Dr. Rocha: Afigura-se-me um
pouco mais razoável. Não podemos mantê-la na ignorância absoluta de coisas que saibamos.
A minha preocupação é fazê-la perceber que estes exames têm de ser feitos. Mas também
receio pisar o risco no que se refere ao seu direito à informação.
O Dr. Rocha, ouvindo que a Dr.ª Luísa não pretende mentir a Odete,
reconhece que a conversa proposta pela colega é “razoável” mas faz este
reconhecimento mantendo a sua posição inicial. Nesta altura é importante que o
mediador se fixe no acordo e deixe cair o resto da sua declaração. O Dr. Rocha também
pode necessitar de tempo para se aperceber que a Dr.ª Luísa, efetivamente, não
discorda quando se trata de questões práticas em vez de princípios.
Mediador Bioético: Então, vamos a ver
se interpreto bem. Temos duas possibilidades. Uma é dizermos à Odete que a
ecografia foi feita num ângulo errado pelo que deve repetir o exame e, só
depois, daremos respostas seguras seja em que sentido for. A outra
possibilidade seria que, no processo de esclarecimento da Odete, se ela fizer perguntas
especificas, se tornaria necessário revelarmos as nossas preocupações atuais.
Estou a interpretar bem? Há outras opções a encarar?
O mediador, em vez de confirmar o acordo, sintetiza as opções. Ao fazer
isso, dá aos médicos tempo para se aperceberam das concessões significativas
que cada um fez.
De notar que usa a palavra “nós”. Na segunda frase é adequado dizer “nós
temos”, pois as opções são o resultado do debate entre o mediador e os médicos.
Na terceira e quarta frases o uso de “nós” e “nossas” já não é tão adequado,
pois o mediador não participará nas conversas com Odete.
Dr.ª Luísa: Por outras
palavras, deixamos à doente a indicação do caminho que ela quer seguir. Se ela
fizer mesmo perguntas sobre questões centrais nõs damos-lhe mais informações e não
deixamos nada por dizer.
Dr. Rocha: Estamos obrigados
a isso.
Mediador Bioético: Ora bem, tivemos
em consideração o papel do marido neste processo? Há alguma coisa que quisessem
dizer ao marido para ajudar a manter-se de fora, evitando que venha a fazer
perguntas na vez dela? Querem partilhar com ele apenas o suficiente para que
ele não levante as questões mais agudas?
Note-se que, no decurso da discussão, as questões ficaram menos
pessoalizadas. Os médicos e o mediador deixaram de referir tantas vezes o nome
da doente passando a falar em doente. Nesta intervenção do mediador, também Óscar
Oliveira foi despersonalizado. E o “marido”. Desde o início da discussão, o
mediador desviou o foco da luta entre médicos para as necessidades da doente e
agora deveria voltar a centrar-se nas pessoas usando os seus nomes.
Dr.ª Luísa: Bom, desconfio que
não poderemos falar à doente sem a presença do marido ou, pelo menos, sem que ela
lhe transmita o que dissermos. Proponho, por isso, falar à doente e ao marido
ao mesmo tempo. E se ele fizer as tais perguntas agudas, o que certamente
acontecerá junto dela, teremos de responder.
Mediador Bioético: Acha então que não
seria produtivo falar ao marido, chamá-lo a parte, e pedir-lhe que não faça
muitas perguntas nesta fase?
O mediador esta a tentar vender a sua ideia ou a fixar-se na sua preocupação
com o marido.
Dr. Rocha: Não. Pela mesma razão
que eu disse antes, não creio que deva sobrecarregar-se uma das partes.
Dr.ª Luísa: É, de novo, uma questão
ética. Trata-se de informação confidencial da doente. Eu acharia que devíamos dizer
à doente que gostávamos de lhe explicar a ecografia, se ela quisesse, na presença
do marido. Só desta maneira podemos lidar bem com o tema da confidencialidade.
Como já disse, não podemos ocultar-lhe as coisas, ou esperar que ele não faça
perguntas, porque é seu direito fazer perguntas e nossa responsabilidade responder-lhes.
Dr. Rocha: Concordo com isso.
Mediador Bioético: Então, se bem
entendi, estamos de acordo que se vai marcar a ecografia, com ou sem
ecocardiograma, para os próximos dois dias. Dirá à doente que, por causa da posição
do bebé, o coração não pode ser bem visto e por isso tem de se repetir a
ecografia. Que, se o bebé não se tiver deslocado da posição, então faremos um
ecocardiograma para delimitar bem as divisões do coração. E que isto é necessário
porque precisamos de verificar todos estes fatores, e um procedimento de rotina
e quando terminar os exames teremos resultados para lhe comunicar.
Dr.ª Luísa: Sim.
Dr. Rocha: Concordo.
Mediador Bioético: Queria agradecer
muito a ambos. E para mim evidente que estão ambos muito empenhados no bem da
D. Odete e estou feliz que tenhamos chegado a acordo sobre o modo como
prosseguir.
Comentários
adicionais
Há alguns temas frequentes nesta mediação: o desejo por parte de alguns médicos
de tomar decisões que lhes pareçam ser as melhores para o doente sem o envolver
nem a sua família, e o choque cultural entre jovens médicos formados na era do
consentimento informado e médicos seniores habituados a abordagens mais
paternalistas.
Uma questão que não foi discutida nesta mediação, mas a que o mediador
precisava estar atento, era a probabilidade de o Dr. Rocha se prejudicar
profissionalmente se não houvesse uma saída para o confronto com o superior hierárquico,
pois uma possibilidade não verbalizada pelo Dr. Rocha era recuar para salvar a
face.
O guião para esta dramatização (Capítulo 11) foi escrito com o marido, Óscar
Oliveira, a representar um dos papéis. Entrava para confrontar o mediador com
as duas hipóteses: se o implicava e, caso afirmativo, quando. O mediador tomou
a decisão de não falar com ele separadamente da mulher. Sentiu que o desacordo
era entre os dois médicos e que devia tentar resolver o problema entre eles. Se
conseguisse, não teria de lidar com a questão do envolvimento do marido. O
mediador reconheceu que o marido não era uma parte no diferendo.
Mesmo que o mediador decidisse incluir o marido, em diferendos bioéticos,
quando há falta de acordo entre membros das equipas terapêuticas, a boa pratica
e o mediador reunir primeiro com a equipa, seja para resolver as suas diferenças,
seja para clarificar as diferenças e decidir como devem ser apresentadas ao
doente ou a família.