01 fevereiro 2012

Não digam à mãe: transcrição de uma dramatização pedagógica (Mediação bioética)

 

Não digam à Mãe: transcrição de uma dramatização pedagógica

Tradução de “Don't Tell Mama: A Role-Play Transcript”, páginas 273 a 289 do livro
Mediação bioética - Um guia para soluções partilhadas e modeladas” 
de Nancy Neveloff Dubler e Carol B. Liebman.
Vanderbilt University Press. Nashville. 2011

Personagens [NT: A opção por nomes portugueses, fictícios como no original, procura significar que, se nunca aconteceu, uma conversação similar pode acontecer entre nós]: Beatriz Barros, enfermeira chefe; Carolina Costa, chefe de clínica; Gaspar Guimarães, filho da doente; Guiomar Guimarães, filha da doente; Manuel Martins, médico de família; Ricardo Reis, mediador bioético

Contexto A D. Guilhermina é uma viúva com 82 anos que foi levada ao hospital há dois dias pela filha depois de várias semanas de fadiga, fraqueza e perturbações gastrointestinais. A sua história e exame físico apontavam fortemente para a hipótese de cancro do cólon, o que foi confirmado por colonoscopia. Os seus filhos recomendaram veementemente ao médico interno que não revelasse o diagnóstico à Mãe. A D. Guilhermina encontra-se bem e parece consciente e atenta ao que a rodeia. Nos primeiros dias não fez perguntas sobre a razão por que estava no hospital ou sobre os seus problemas. Só depois perguntou ocasionalmente ao pessoal sobre os motivos do internamento e os resultados dos exames.

Quando o interno disse à chefe de clínica, Dr.ª Carolina, o que aconteceu esta ficou zangada. Disse que os doentes têm o direito legal a conhecer a sua informação médica e não cabe à família dizer aos profissionais de saúde que escondam essa informação. Quando a equipa passou visita na manhã seguinte, a família estava à espera fora do quarto da doente e fez questão de afirmar o mesmo à equipa. A Dr.ª Carolina explicou-lhes o direito à informação de uma pessoa doente capaz e o correspondente direito a decidir sobre os cuidados a receber. O filho da doente disse: "Ouçam, eu sou advogado, conheço bem os direitos, mas se disserem o que quer que seja que incomode ou prejudique a minha Mãe, descobrirão de fonte limpa o que a lei diz.” Antes que a conversa ficasse mais tensa, o médico de família antecipou-se e assegurou que a equipa hospitalar nada faria que pusesse a doente em risco.

O Dr. Martins pôs uma nota manuscrita em maiúscula na capa do processo clínico: “Por indicação da família esta doente não deve conhecer o seu diagnóstico”. Há uma manifesta diferença de opiniões na equipa sobre a melhor maneira de lidar com a situação durante o internamento e o tratamento da D. Guilhermina. Os esforços para evitar falar com a D. Guilhermina sobre a sua doença estavam a ser muito complicados para os profissionais do hospital. Vários enfermeiros sentiam que estavam a ser desleais para com a doente e, como consequência, acabavam por não destinar tanto tempo para estar junto dela como ela merecia. Outros sentiam-se intimidados pela ameaça de perseguição judicial se não tivessem em conta as instruções da família.

A enfermeira chefe Beatriz Barros requereu uma Consulta de Ética para clarificar as questões em aberto e ter orientações sobre como lidar com esta situação desconfortável.

Transcrição e notas

Mediador bioético: Bom dia a todos. Eu sou o Dr. Ricardo Reis. Sou membro da Comissão de Bioética e a Enf.ª Beatriz Barros pediu-me para os juntar de modo a conversarmos um pouco sobre a D. Guilhermina. Pelo que percebi tem havido algumas diferenças de opinião sobre quanto deve ser dito à D. Guilhermina sobre a sua situação e por isso penso que seria bom para todos sentarmo-nos à mesa e dialogar sobre os cuidados a ter com ela. Talvez pudéssemos fazer uma ronda, para que cada um se apresente, e depois começaríamos.

O mediador identifica o tema que o levou a convocar esta sessão mas falhou em dar uma explicação clara do seu papel ou sobre o que participantes podem esperar do processo. Por exemplo, poderia ter dito: “Sou membro da Comissão de Bioética e sou muitas vezes chamado a ajudar quando há desacordos sobre um plano de cuidados de um doente. Não faço parte da equipa que trata da D. Guilhermina. Trabalho neste hospital mas, nesta reunião, estou a atuar como Mediador Bioético, não decido nada, apenas tentarei ajudar a que cada um possa aceitar um consenso, uma resolução baseada em princípios, sobre a melhor maneira de cuidar da D. Guilhermina.”

Neste caso, o mediador identificou a pessoa que lhe pediu para vir ajudar. Os mediadores bioéticos devem ponderar se isso ajuda ou prejudica o processo. Nomeadamente, quando a consulta tenha sido solicitada por alguém com posições relativamente menos influentes na instituição, talvez seja melhor não avançar com essa informação. Na nossa experiência, a referência a quem pediu a consulta não deve ser feita por um participante na mediação, mas essa informação e muitas vezes revelada no início do processo se for um modo de o clarificar. Poderia talvez ser dito que foi “um membro da equipa de saúde”.

Guiomar Guimarães: O meu nome é Guiomar. Sou filha da D. Guilhermina.
Mediador bioético: Muito gosto em a conhecer.
Enf.ª Beatriz: Chamo-me Beatriz Barros. Sou a enfermeira que tem estado a cuidar a sua Mãe nestes dias.
Carolina Costa: Eu sou Carolina Costa, chefe de clínica, responsável médica pela sua Mãe.
Gaspar Guimarães: Chamo-me Gaspar Guimarães, sou filho da D. Guilhermina.
Manuel Martins: Sou o Dr. Martins. Sou o médico de família da D. Guilhermina, não desde há semanas mas há já onze anos.
Mediador bioético: Muito prazer em os ter aqui. Enf.ª Beatriz, penso que seria interessante começar com alguns dos factos [NT: Quem ouviu o Prof. Diego Gracia, no dia 22 de novembro de 2013, na reunião organizada pela Comissão de Ética da ARSLVT, há de lembrar-se do que ele disse sobre a necessidade de se começar sempre por ‘los hechos’, os factos… ] médicos sobre a doente e, já que este caso nos foi referenciado e vamos falar sobre a D. Guilhermina, gostava que nos dissesse como definiria o motivo desta reunião.

Como referido noutras ocasiões neste livro, esta é uma boa altura para chamar o doente a participar. O mediador podia portanto iniciar o debate dizendo: “Todos sabeis que um dos nossos objetivos neste género de debates e tentar que os doentes participem, mesmo que possam não estar presentes. Este é um caso particularmente difícil porque, embora a D. Guilhermina aparentemente seja capaz de participar nas decisões sobre os seus cuidados de saúde, os seus filhos opõem-se a esse envolvimento. Por conseguinte, trazê-la para esta discussão seria fácil – bastava que fôssemos para o seu quarto – mas a sua família, que a conhece e adora mais do que ninguém, apoiada pelo seu médico de confiança, não gostariam que ela estivesse presente. Permitam- me que peça a família que nos fale sobre a vossa Mãe. Que tipo de pessoa é? O que é importante para ela? Como tem sido a sua vida? Não se esqueça que nós somos peritos em medicina mas vocês são os peritos sobre a vossa Mãe e a vossa família.

Enf.ª Beatriz: Bem, pedi a sua intervenção porque é muito desagradável para mim ver que nada dizem a D. Guilhermina sobre a sua situação. Penso que a gente se sente desajeitada na sua presença porque tem receio de lhe dizer inadvertidamente qual a sua real situação e qual o estádio em que está a sua doença. A família pediu-nos para nada lhe dizermos e portanto penso que estamos, de certo modo, a diminuí-la. Além disso, alguns de nós sentem-se desconfortáveis porque nos ensinaram que um doente que compreenda os seus problemas médicos necessita ser informado de tal modo que possa dar o seu consentimento para quaisquer procedimentos. É por isso que estamos confusos e desconfortáveis.

O mediador precisa de ter em especial conta a escolha de quem inicia o debate. Neste caso a decisão de escolher a enfermeira, que foi quem desencadeou o processo de apreciação bioética, resultou. Ela fez uma declaração cuidadosa das suas preocupações. A escolha de ter a Enf.ª Beatriz a falar em primeiro lugar podia ter sido vista como um modo de validar o seu pedido de ajuda e de corroborar o seu enquadramento do problema. Mas começar com ela também teve o risco de torná-la alvo de atenção dos outros participantes.

Podia ter sido melhor que o mediador começasse por afirmar o seu entendimento sobre o problema: “Estamos aqui por que me pareceu que há algumas diferenças entre a equipa de cuidadores e a família no que se refere ao que deve ser dito a D. Guilhermina sobre o diagnóstico e o pessoal está preocupado por nada lhe dizer sobre a sua situação, pelo que estamos aqui para falar sobre isso e também sobre o que precisamos fazer para lhe proporcionar os melhores cuidados possíveis. Antes de entrarmos nessas questões, queria ter a certeza de que estamos todos a par da situação clínica da D. Guilhermina.” O mediador deveria então pedir a um membro da equipa, tipicamente a um médico, que fizesse uma apresentação sobre os factos médicos. Um enfermeiro poderia também dar esta informação, mas a cultura hospitalar dominante leva-nos habitualmente a preferir um médico como o primeiro a falar destes factos.

Também aqui, perante um desacordo entre o médico de família e a chefe de clínica, o mediador tem uma escolha potencialmente difícil. Começar por aquele privilegia uma relação de forças no hospital e o papel que tem junto da família. Contudo, num hospital escolar é costume pedir ao chefe de clínica para relatar o caso e o restante pessoal pode esperar que o mediador comece desse modo.

Gaspar Guimarães: A mim não me incomoda nada que se sinta desconfortável; o que me preocupa é a minha Mãe. Quero ser muito claro – a minha preocupação é sobre o que ela sente e receio que ela possa ser incomodada. Só peço que façam o que vos compete e assumam as vossas responsabilidades. E se se sentem um pouco desconfortáveis, eu acho que fico mais confortável com isso do que se for a minha Mãe a ficar desconfortável e mesmo assustada.
Guiomar Guimarães: Sinto que nos atrasamos um pouco a trazê-la para o hospital e de certa maneira possamos ter acelerado a sua morte. E, também, sei que não quero sobrepor-me à sua alma ou ao seu pensar. Penso que eu e o meu irmão sabemos bem o que é perder um pai. O nosso Pai morreu com cancro. Na nossa família, esta doença é algo que nos assusta muito; é uma palavra medonha para nós e, quando temos de a pronunciar, acho que pensamos em sentença de morte e perdemos a esperança – e o que nós queremos é que a nossa Mãe, que é uma lutadora, não perca a esperança.
Mediador bioético: Pergunto então ao Dr. Martins, que conhece a D. Guilhermina há bastante tempo, que nos diga qualquer coisa sobre o seu estado clínico atual e nos ponha a par do que sabemos sobre ela.

Tendo começado pela enfermeira, é tempo de passar a um dos médicos e saber dos factos, mas não sem antes reconhecer como são preocupantes e comoventes as afirmações dos filhos da D. Guilhermina. A D. Guiomar falou sobre ter demorado a trazer ao hospital a D. Guilhermina. E possível que ela se sinta culpada e receie que ela e o seu irmão não tenham ajudado a evitar a morte da Mãe. Receia também que conhecer o diagnóstico de cancro signifique “matar-lhe a alma”.

O mediador deveria ter dito: “A situação parece ser realmente horrível. A vossa família passou um mau momento. É de facto difícil passar de novo por tudo isto depois de perderem o vosso Pai por cancro. Também percebo que desejavam ter sabido desta doença mais cedo e que querem estar seguros de que quaisquer decisões que se tomem sobre a vossa Mãe sejam as certas.” Ao introduzir esta mudança no debate, o mediador mostrava que estava preocupado em que o reconhecimento por parte da filha, relativo a sensação de que poderia ter-se atrasado em trazer a Mãe ao hospital, pudesse fazê-la sentir culpada. Uma resposta como “Portanto sente-se culpada por ter demorado a compreender as queixas da sua Mãe” seria certamente desadequada. A última parte desta afirmação sugere um juízo de valor sobre o passado. Alem disso, a palavra culpa provavelmente produziria um forte recuo. Na nossa experiência é importante fazer duas coisas quando tratamos de reagir a fortes afirmações de sentimentos: confirmar que são sentimentos fortes e ajudar as partes dar uma ordenação a mistura de emoções. Neste caso, a filha está a sentir uma terrível sensação sobre o que serão os cuidados para a sua Mãe e esta também a voltar a viver a dor da perda do Pai. Dizer “Compreendo que gostasse de ter trazido a sua Mãe mais cedo” não é o mesmo que concordar em que ela o devia ter feito.

Dr. Martins: Como disse, conheço a D. Guilhermina desde há dez ou onze anos e conheço os outros membros da família que tem sido muito ativos no apoio que lhe dão, tratando das suas questões de saúde e de outras necessidades. É bom ver uma família tão forte como esta – valorizo muito este aspeto. Nas últimas semanas, a sua saúde deteriorou-se claramente. Estava em boa forma para os seus oitenta e dois anos, mas perdeu peso, mostrava- se fatigada, pálida e fraca. Pareceu-me que estava anémica e por isso tratei de a internar para ver o que se passava. Tinha as fezes escuras. Receávamos, obviamente, que fosse um cancro mas talvez pudesse ser qualquer coisa mais benigna como uma úlcera. Fez uma colonoscopia e infelizmente confirmou-se o cancro.
Sei que há aqui quem se sinta na obrigação de dar a doente toda a informação mas temos de compreender que as pessoas são frágeis e nem sempre respondem ao que as nossas convicções nos ditam e também que nós temos aqui uma família muito atenta, que conheço há muito tempo. Quero respeitá-los e tenho de reconhecer que o que estão a fazer é correto. Infelizmente, a D. Guilhermina está provavelmente – não vou simplificar – diria mesmo, certamente, vai morrer por causa deste cancro. É uma forma muito agressiva, está muito grande, tem metástases nos intestinos e aparentemente é inoperável, embora alguma cirurgia paliativa possa ser encarada para seu alívio. Os seus filhos estarão sempre perto e eu próprio também estarei – teremos de viver com as decisões que tomamos.
Guiomar Guimarães: Tanto eu como o meu irmão agradecemos-lhe muito. Conhecemo-lo há muito tempo e sentimos que respeita a maneira de ser da nossa família. É perturbador pensar que as preocupações do pessoal – que afinal não nos conhecem – é sentirem-se desconfortáveis, tenham alguma prioridade sobre as vontades que conhecemos da nossa Mãe há tanto tempo, não nos dando ouvidos. Têm de seguir o que dizemos pois somos nós quem a conhece melhor.
Mediador bioético: Gostaria de fazer mais uma pergunta ao Dr. Martins. A D. Guilhermina está capaz de tomar decisões autonomamente?
Dr. Martins: Acredito que ela está na total posse das suas capacidades mentais – está a sofrer uma degradação rápida do seu estado físico mas acredito que está capaz de tomar decisões, incluindo a decisão de não decidir.

O mediador precisa resumir o que o Dr. Martins disse sobre o sombrio prognóstico da D. Guilhermina. Por vezes este resumo da apresentação dos factos é um caminho para aumentar a probabilidade de que os membros da família compreenderem o que foi dito, especialmente se o médico usar termos técnicos ou eufemismos. Neste caso, os factos são claros e os filhos parecem bem informados. Contudo, seria útil um resumo para suavizar a conversa é dar a cada um oportunidade para assimilarem o que foi dito.

Mediador bioético: Talvez, Dr. Guimarães, nos pudesse falar mais sobre as conversas que teve com a sua Mãe. Como o seu Pai teve cancro – talvez nos pudesse falar um pouco sobre modo como ela reagiu a essa doença.
Gaspar Guimarães: Sabe, a Mãe não é de falar muito. Ficou obviamente triste e sofreu muito quando Pai faleceu e por o ver passar o que passou. Talvez porque sou seu filho, não falou muito comigo sobre isso. Eu sou mais de tratar das coisas. Sou advogado por isso ajudo-a a resolver coisas legais, na verdade sou eu quem põe as mãos na massa. [Dirige-se à sua irmã Guiomar] Essas coisas sentimentais de que estais a falar, realmente, não é no que me envolvo. Diria que, como advogado, sei o que são as nossas leis e direitos e sei que temos o direito a proteger a nossa Mãe e se vocês insistem em que nós precisamos de lhe dizer o diagnóstico, estou aqui para levar o assunto onde for preciso. Agradeço que tenha vindo mas há outras pessoas acima de si e se for preciso falarei com elas. E se não for no hospital, será nos tribunais que gostosamente tratarei do assunto. Estou muito treinado e habilitado para o fazer – é a minha profissão. O que realmente queria ouvir no final desta reunião é que vocês vão respeitar o que pedimos e nada dirão à minha Mãe.
Mediador bioético: Bem, não sou eu quem decide – será uma decisão de todos nos. Estamos a tentar e a procurar o nosso caminho. Pergunto-me se não seria capaz de nos dizer um pouco mais sobre o que a sua Mãe vos transmitiu quanto aos seus problemas médicos e o conhecimento que tem deles?

O mediador, depois de uma resposta ligeiramente defensiva (“não sou eu quem decide”) ignora as ameaças com o objetivo de minimizar o seu impacto e evitar confrontos. Ao não se referir às ameaças incorre no risco de que outros participantes se sintam inibidos por elas. Poderia ser útil admitir a força dos sentimentos de Gaspar e encarar as suas ameaças como uma expressão do seu compromisso com a Mãe. “Posso entender os seus sentimentos enérgicos quanto ao que acha melhor para a sua Mãe e que use todas as suas habilitações para lutar por ela. Espero bem que não seja necessário abrir um conflito desses. Estamos aqui reunidos para tentar chegar a um acordo sobre a melhor maneira de proceder.” Este modo de enquadrar reconhece os interesses e os sentimentos subjacentes as ameaças ao mesmo tempo que as neutraliza. Também permite que outros participantes ouçam esta linguagem agressiva como uma expressão da sua dor mais do que um ataque a equipa médica.

O mediador podia também ter dito: “Dr. Guimarães, o senhor é um grande advogado da sua Mãe e defensor do que pensa ser a sua vontade. Mas, por agora, gostaria que aceitasse uma regra muito simples: eu garanto-lhe que não deixarei que o afrontem, mas peço-lhe o mesmo da sua parte. Todos aqui torcemos pela sua Mãe, bem como pelos filhos e pelo seu médico. Mas estamos a explorar todas as perspetivas da família e dos prestadores de cuidados e a tentar encontrar uma solução em todos se sintam confortáveis. Peco-lhe que nos permita isso.”

Guiomar Guimarães: Bem, a minha Mãe foi sempre muito assustadiça. A medida que foi envelhecendo e as preocupações foram crescendo passamos a contar com o nosso médico de família. Eu era a porta-voz e era como se fosse um filtro – era assim a nossa família, a nossa cultura. Era assim que nos sentíamos bem. Ela adora o Gaspar e a mim, confia em nós. Somos muito diferentes. O Gaspar é muito prático e sabido e eu sou mais de chorar e abraçar, mas entre nós, penso que sempre fizemos o que era o melhor interesse dos nossos Pais. Conhecemo-los, compreendemo-los e sabemos o que significam os seus sentimentos, sabemos o que é a esperança e o que é o medo nas suas vidas. E poupar a nossa Mãe desse medo nas últimas semanas da sua vida é muito mais importante para nós do que dizerem-lhe tudo sobre a sua doença – só por causa das obrigações do hospital e até pelo facto de vocês o esperarem quando alguém esteja capaz de decidir. Ser capaz não a isenta de ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça terrível do que possa acontecer.
Mediador bioético: Bem, compreendendo muito bem o que diz, gostaria de perguntar ao pessoal de saúde que nos dissesse alguma coisinha sobre as suas reações quando estão na enfermaria e como responde a D. Guilhermina. Que perguntas faz? É curiosa?

Antes de recolher mais informações sobre o problema com esta importante série de perguntas, o mediador precisa saber responder ao expressivo depoimento da filha. Dizer simplesmente “Compreendo” não é suficiente. O mediador precisa de dizer o que compreende, isto é, o que aprendeu com as afirmações da filha sobre o modo como a família lida com os problemas médicos e sobre os receios da sua Mãe. Quando Guiomar fala sobre a sua Mãe “ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça terrível que possa acontecer”, parece provável que essas palavras também descrevam o que sente a filha. Estes sentimentos também precisam ser reconhecidos antes de perguntar à equipa sobre as suas reações face a D. Guilhermina.

O mediador devia também aproveitar para dizer: “Se bem percebi a vossa família partilha de uma cultura particular que influencia muito o modo como as decisões são tomadas e podemos dizer que o pessoal de saúde é também parte de uma cultura, estruturada na bioética e nas leis nacionais, que considera que o doente que seja capaz de assumir as suas decisões em matéria de saúde tem o direito de conhecer as opções e de escolher por si mesmo como decidir. Este debate é sobre como conciliar estas duas culturas. Portanto, permitam que todos mostrem abertura para se ouvirem mutuamente antes que tentemos decidir algo.

Dependendo da etnia da família, pode haver outros fatores em presença. As regras que prevalecem no que respeita a decisões sobre cuidados de saúde resultam das leis nacionais e dos conceitos de liberdade, dignidade e autodeterminação que lhes subjazem. Muitas culturas não têm estes conceitos. Em muitas culturas asiáticas, por exemplo, assume-se que a doença e a morte não devem ser mencionadas ao doente. Em algumas culturas indígenas da América, acredita-se que falar sobre a morte acelera a sua chegada e é uma norma comportamental desadequada. Muitos destes padrões familiares e culturais surgem no decurso de processos de mediação.

Dr.ª Carolina Costa: Sendo a chefe de clínica deste caso, tenho acompanhado a doente desde a admissão. É uma senhora muito simpática, mas sinto que ela sabe que está muito doente e porque está no hospital, e que sabe que se não estivesse tão doente já não estaria no hospital. Temos feito vários exames e sinto que nada lhe dizer sobre as implicações dos resultados desses exames não é justo porque ela faz-nos perguntas e está preocupada, e creio que isso é assim por causa de o vosso Pai ter tido o que teve. Concordo convosco que parece que ela tem medo – mas não diria que é assustadiça – está preocupada e sinto que ela quer saber mais.
Mediador bioético: Pode explicar melhor sobre isso – esse sentimento?

Eis um bom exemplo de uma pergunta que clarifica.

Dr.ª Carolina Costa: Quando passo visita ou a vejo, pergunta-me sempre, “Qual foi o resultado? O que mostra o exame?” Faz perguntas sobre o que penso. E muito difícil responder-lhe parcialmente e não lhe dizer tudo, já que é alguém capaz de tomar as suas decisões. Está muito atenta. Não está inconsciente nem desatenta ao que se passa. Faz perguntas inteligentes sobre os resultados dos exames. Se está a melhorar ou não está a melhorar, por que faz este exame, por que não fazemos outros, quais as implicações, o que isso significa e porquê? Por isso não dizer, não lhe explicar o quadro completo sobre o que estamos a fazer e esconder-lhe coisas – não me parece que seja o que devemos fazer enquanto médicos, designadamente estando ela capaz.

Vemos que há dois retratos diferentes da D. Guilhermina – um em que ela é assustadiça e não quer saber o que passa consigo e outro em que ela está cheia de dúvidas. O mediador precisa de admitir estas duas versões. “Quando vos ouço, Dr. Gaspar Guimarães, D. Guiomar, Dr. Martins, e depois ouço a Dr.ª Carolina e a Enf.ª Beatriz, fico confuso – é como se estivessem a falar de pessoas diferentes. Gaspar e Guiomar, vocês descreveram a vossa Mãe como querendo renunciar ao conhecimento e as decisões relativas aos seus cuidados, deixando isso para ambos, e não querendo ser informada. Dr.ª Carolina e Enf.ª Beatriz, vocês descreveram alguém que faz perguntas sobre os seus cuidados e a sua situação. Gostava de saber o que pensam sobre estas diferenças.” Uma afirmação como esta podia provocar uma resposta de qualquer dos participantes, como por exemplo, que a D. Guilhermina está a tentar proteger os seus filhos, evitando falar sobre o cancro ou que ela sente que eles não se sentem confortáveis usando a palavra cancro, ou ainda que o pessoal está sub-repticiamente a fazer com que ela pense que deve fazer perguntas.

Guiomar Guimarães: Posso fazer uma pergunta? O que esperam que ela faça com a informação de que tem um cancro? Há decisões sobre o tratamento que tem de ser tomadas por ela? Gostava também de perguntar ao Dr. Martins que ponderasse nisto. Estamos a dizer que ela está num ponto em que o tratamento é necessário ou que esses cuidados de conforto são necessários?
Dr. Martins: Creio que se trata de um cancro avançado. Neste ponto não é tratável, falei com os meus colegas da Gastroenterologia e há um consenso médico neste assunto – os cuidados paliativos são seguramente os mais apropriados. Vamos chamar um consultor de cuidados paliativos – nenhuma destas decisões ou ações depende do seu reconhecimento do cancro.

Seria útil que o mediador aqui avançasse e resumisse: “Então, Dr. Martins, só para eu ver se estou certo, o cancro da D. Guilhermina não é curável e o seu tratamento – da doença e das possíveis dores que venha a ter – não será influenciado conforme se seja ou não dito que tem um cancro, é assim?” Então o mediador podia ter perguntado à Enf.ª Beatriz e à Dr.ª Carolina se elas concordavam em que o tratamento não dependia de a D. Guilhermina saber o seu diagnóstico. Tal resumo e subsequentes perguntas podiam ter impedido a não muito produtiva troca de palavras que se seguiu.

Gaspar Guimarães: Gostava muito de perceber por que é que ele se sente confortável não a informando e vocês, que tem estado a cuidar dela nestes poucos dias, se sentem desconfortáveis – não faz sentido, para mim.
Enf.ª Beatriz: Quero, realmente, respeitar o que decidirem e o que sentem, já que querem protegê-la deste conhecimento e os receios que possa ter desencadeiem um agravamento da sua situação. Com certeza que quero respeitar tanto o medo que ambos veem, e que ela muitas vezes mostra, como realmente os medos e a proteção que vocês têm em mente, mas acho que tenho uma impressão muito pessoal. Ela fala muitas vezes amorosamente de vocês e obviamente está muito orgulhosa e sente que pode contar convosco em tudo. Põe todos os assuntos nas vossas mãos. Mas a minha impressão, ou talvez a minha esperança, é que, quando alguém está bem informado ou possui uma informação mais realista do que a do tipo beijos e abraços – em que possa falar e ter tempo para pensar – talvez haja alguma coisa que ela vos queira dizer. Talvez seja o tempo para assegurar-lhe que vocês a amam, que tudo tratam com o coração nas mãos e…
Guiomar Guimarães: Desculpe interromper, mas está a falar sobre possibilidades e talvezes, mas não há talvezes para nós. No modo como temos vivido as nossas vidas, não ficou nada por dizer e estimo muito que tenha impressões, todos temos. Vocês não são as estrelas da companhia, a nossa Mãe é que é. Sinto, penso que ambos sentimos, que é quase uma falta de respeito para connosco pois nós agimos com profunda ponderação neste assunto. Isto não é um capricho, isto não é coisa a que chegamos hoje. E, digamos, mantermo-nos naquilo em que vivemos as nossas vidas como uma família, e penso, porque temos confiança em nos próprios, que entendemos isto como o melhor interesse dela. Até compreendo que isso possa ser desconfortável para os profissionais mas esperamos, julgo eu, que consigam ultrapassar esse desconforto de modo a continuarem a cuidar da nossa Mãe com o maior profissionalismo.
Enf.ª Beatriz: Com certeza. Estou precisamente a explorar essa possibilidade.
Gaspar Guimarães: Só queria dizer que pode ficar com as suas impressões para a sua Mãe e eu fico com as minhas para a minha, e ficamos por aí.
Mediador bioético: Talvez possamos parar por um momento e resumir o que sabemos então sobre os cuidados. Temos, assim, que o Dr. Martins nos disse que ela tem um cancro terminal – não sabemos bem quanto demorará até que haja morte mas sabemos que está em fase terminal e é preciso fazer alguns planos para esta fase. É evidente que ambos os filhos estão atentos ao que se passa com a Mãe e têm uma experiência longa do modo como lidam com as doenças em vossa casa, sobre o que gostaria ainda de ouvir um pouco mais, mas também temos a nossa equipa de Saúde que igualmente também está preocupada com a senhora, e eu penso que não devemos deixar de ter isso em conta. Todos queremos o melhor para a D. Guilhermina. Talvez possamos recuar um pouco. Gostava de saber um pouco mais sobre a vossa Mãe. Gostava de saber como é que ela se dedicava aos trabalhos domésticos e como falava convosco sobre assuntos sérios como estes.

O mediador faz um bom resumo dos factos médicos e tentar aperceber-se das tradições familiares sobre o modo de encarar as doenças. Recorda que todos estão igualmente interessados no bem da D. Guilhermina. Havia ainda uma parte para o mediador trabalhar. Os filhos atiraram-se ao uso pela enfermeira da palavra impressões e reagiram a isso. Seria útil que o mediador sublinhasse que o que a Enf.ª Beatriz estava a querer dizer é que admitia ter os seus valores pessoais – os seus preconceitos – mas estava também estava a tentar pô-los de lado e a respeitar os valores da família. Poderia também fazer notar que a Enf.ª Beatriz estava também a mostrar como era difícil compatibilizar a abordagem tão protetora como amorosa de Guiomar e Gaspar com as respostas que queriam dar às perguntas da sua Mãe. Poderia ajudar a Enf.ª Beatriz a completar o seu pensamento dizendo o que ela quase disse: “Dr. Gaspar, D. Guiomar, vi que reagiram ao que disse a Enf.ª Beatriz sobre as suas impressões ou preconceitos. Posso estar enganado, mas a minha impressão é que a Enf.ª Beatriz está a tentar respeitar as vossas vontades e as vossas tradições familiares. E, Enf.ª Beatriz, corrija-me se estou a ver mal, penso que ia dizer que, na sua experiência, as pessoas muitas vezes querem ter uma oportunidade para se despedir”.

Eis um novo caminho que, nesta altura, o mediador poderia seguir. Poderia dizer que há estudos sérios que demonstram que os doentes que estão a morrer se apercebem disso e com demasiada facilidade se isolam nos seus medos. Esses estudos mostram um nível acrescido de conforto quando a informação sobre o diagnóstico e o prognóstico e partilhada e serve de base as conversas. Certamente que não é o caso da D. Guilhermina mas é muitas vezes uma perspetiva a considerar. É bem possível que a D. Guilhermina esteja a proteger os seus filhos que estão ocupados a protegê-la – seria um mal-entendido circular pouco benéfico em cuidados de fim de vida.

Gaspar Guimarães: Peço desculpa mas queria saber do que está a falar?
Mediador bioético: Com certeza, o que eu queria saber era um pouco mais sobre como é que a sua Mãe lidava consigo e a sua irmã quando falava de doenças. Como disse que o seu Pai faleceu recentemente de cancro, o que deve ter sido difícil para a família, queria só perceber um pouco melhor como foi.
Gaspar Guimarães: A nossa Mãe foi sempre uma grande mãe, tomou sempre conta muito bem de nós e é como se precisássemos de retribuir esses cuidados que teve connosco, sabe, ela é o género de pessoa que se amedronta facilmente, e bastante ansiosa, de tal modo que durante toda a vida era o Pai que tomava conta de tudo. Ela é muito viva, ativa e lúcida mas não lida muito bem com o stresse. E por isso que precisamos efetivamente de assumir o stresse para nós e deixar que desfrute a vida de modo a ser o que é, de modo que não seja a equipa médica a liquidá-la antes do tempo.
Mediador bioético: E porque seria que, se ela soubesse as coisas de que não lhe falam, isso a liquidaria? Porque pensa assim?
Gaspar Guimarães: Basta o que ela viu com a morte do meu Pai, e se ouvisse a palavra cancro saberia o que a esperava e ia-se abaixo. É o que sei, se este diagnóstico de cancro…
Guiomar Guimarães: Sabem, em nossa casa, nunca usamos a palavra cancro. Sabemos que cancro é sempre uma doença terrível. Quando o nosso Pai adoeceu, o nosso maior receio era que fosse um cancro. E era também o seu maior receio. Ele teve uma morte dolorosa e muito difícil com pouquíssima esperança ou expectativas sobre a sua vida depois da doença. E víamos a nossa Mãe, sempre atenta, víamos como ela era parte nesse final, e a perda que ela sentia era confrangedora. Nós pressentimos que, certamente, percebe que esta doente, ela não tem estudos, mas é muito inteligente. Sentimos que, dado o facto de nada podermos fazer para salvar a sua vida, que usar a palavra infeção e dizer-lhe que vamos usar medicamentos para a aliviar seria mais fácil. Conhecemos o vosso dever profissional, mas que interessa se for cancro ou infeção? Se é menos assustador para ela e lhe facilitar ter um resto de vida sem pesadelos, suponho que a estaríamos a ajudar se pudesse haver uma espécie de acordo em que continuassem com o que deve ser feito, em que não a abandonassem só por se sentirem desconfortáveis em não usar a palavra que evoca a morte terrível do seu marido, que ela tanto amava, e a terrível morte que ela tanto teme.
Mediador bioético: Portanto está preocupada mais com a palavra do que com o que ela possa entender do que se está a passar? Ela perguntou-lhe já o que se passa de errado?

O mediador faz uma pergunta útil mas poderia ter ajudado se levantasse antes o tema da dor. Como Guiomar referiu a morte dolorosa do pai parece que a dor é uma grande causa para os receios tanto da D. Guilhermina como dos seus filhos. Eles (e ela) precisam de ter a certeza de que os médicos já conseguem controlar a dor muito melhor. O mediador, que chama o assunto mais tarde, poderia já dizer: “O controlo da dor é uma questão concreta neste caso e estou certo de que o Dr. Martins nos pode dizer que a equipa de cuidados paliativos tem feito grandes progressos nos últimos anos com intervenções que tranquilizam o doente. Seja o que for que aconteça a D. Guilhermina, podemos garantir que ela será poupada à dor.

Guiomar Guimarães: Nestes anos, especialmente desde que o nosso Pai faleceu, éramos nós que lhe fazíamos companhia e ela dizia sempre “falem com o meu filho, falem com a minha filha”. Sabem, nós somos o seu orgulho, nós estudamos, ela não. Eles deram-nos tudo e a nossa família tem grandes expectativas nos filhos que ela educou com respeito por valores familiares, honrando os seus pais, e penso que o que estamos a fazer está muito fortemente de acordo com o modo como ela viveu esses valores.
Dr. Martins: Gostaria, de novo, de concordar com a narrativa que faz sobre as doenças, os médicos e as questões de saúde. Conheço-a há onze anos e quando vinha ao meu consultório, desde que o seu Pai faleceu, sempre consigo, com certeza, era isso que ela queria. E, desde as coisas mais banais às mais graves, o que quer que se tratasse, ela sempre deixava a decisão para os filhos, e penso que temos de dar ouvidos às vontades da doente para compreender ou não compreender as coisas e deixar que outros tomem as decisões difíceis. Foi o que ela sempre fez e não vejo razões para mudar agora, passando para ela esse encargo.
Guiomar Guimarães: Penso que seria diferente se houvesse coisas a fazer para lhe salvar a vida. Certamente que a queremos connosco e que vamos sentir a sua falta amarguradamente, mas ambos queremos que percebam que nunca iriamos interferir com o tratamento que salvasse a sua vida.
Mediador bioético: Acho que esse é um ponto importante. Suponho que temos de falar sobre a palavra infeção que referiram e de como é difícil para o pessoal de saúde dizer que é uma infeção quando não e. Compreendem a perspetiva do pessoal sobre isto?
Gaspar Guimarães: Seria satisfatório se apenas lhe dissessem que ela tinha uma doença e que estavam a fazer tudo para a melhorar.
Enf.ª Beatriz: Eu estou preocupada com a ansiedade dela e os seus medos e queria garantir-vos que o pessoal tudo fará para, em cada dia, lhe dar o maior apoio que possamos e mantê-la sem dores, não vamos…
Guiomar Guimarães: Muito obrigado.
Enf.ª Beatriz: Tudo o que pudermos fazer para ajudá-la nos seus medos e ansiedade. Há alguma coisa que poderíamos fazer para atenuar algum destes aspetos?
Mediador bioético: Pelo que estou a ver, penso que estamos a avançar num caminho para lidar melhor com as preocupações de todos e parece que se estão preocupados ou receosos com as dores e as ansiedades que ela possa ter, há maneiras de a ajudar nisso, assim, peço ao Dr. Martins para dizer umas palavras sobre o pensa sobre os tratamentos da sua doente.
Dr. Martins: Certamente! Neste hospital, tenho trabalhado com a equipa de cuidados paliativos. Nos últimos anos, tenho testemunhado que são cada vez mais eficientes e disponíveis, Fazem um trabalho fantástico e não tenho dúvidas sobre as suas capacidades de controlar a dor física e também de tratar de outras questões associadas. Posso assegurar aos seus filhos e a todos que isso será feito – por favor, não estejam preocupados com isso.
Mediador bioético: Quer dizer que não há razões para que ela sofra?

O mediador, fundamentando-se no reconhecimento da enfermeira de que um dos maiores receios dos filhos fosse que a Mãe estaria condenada à mesma morte dolorosa que o seu Pai, pede ao Dr. Martins que confirme. O mediador proporciona então uma importante reafirmação da possibilidade de se controlarem as dores da D. Guilhermina e os seus sofrimentos. Contudo não se referiu a um outro problema que muito preocupa o pessoal, que é sentirem que estão a mentir e a menosprezar as suas obrigações éticas e deveres legais, não revelando a doente à sua situação.

O mediador percebeu que a doente sempre delegou nos seus filhos. Talvez pudesse sugerir que os filhos e o pessoal conversassem com a doente de modo que a filha ou o filho perguntassem: “Mãe, acha bem sermos nos a resolver as coisas que estão a acontecer, para o seu bem e o seu conforto? É o que temos feito quando falamos com o Dr. Martins. Podemos continuar assim?” Esta clara delegação de poderes e autonomia sossegaria o pessoal.

Dr. Martins: Eu não diria melhor.
Dr.ª Carolina: Portanto, se bem percebo, sabendo mais sobre a vossa Mãe, pelo que dizem, ela e a família passaram por um mau bocado. Lamento muito as dificuldades que passaram com a doença do vosso Pai e conhecendo-a melhor, também pelo que conta ao Dr. Martins, sobre ela vos delegar sempre as decisões, estou pronta a concordar com a vossa decisão. Contudo preocupa-me que, na minha limitada experiência, o que tenho visto como os doentes que vão ficando piores e piores, os seus corpos vão cedendo à doença, e como que percebem que algo está mal. Por isso, o que planeiam dizer-lhe – quando piorar e, digamos, tiver mais hemorragias, mais sangue nas fezes, e enfraquecer muito – como falar disso conforme avance a doença? É que me preocupa o modo como ela reagirá e como lidar com essas aflições.
Mediador bioético: Eis algo sobre que temos necessidade de falar, pois a sua condição vai certamente evoluir com o tempo e certamente temos o Dr. Martins, que a conhece bem e poderá ajudar a tratar disso, mas suponho que é de facto um problema importante. Que acontece se a vossa Mãe perguntar a um dos membros da equipa “Tenho um cancro?
Gaspar Guimarães: Penso que nessa altura, se se temos um médico como o Dr. Martins que a conhece bem, está no seu papel dizer “Vamos falar com a sua família sobre isso”. O meu sentir sobre a minha Mãe é que, quando ela estiver pronta para fazer essa pergunta, vai fazê-la a nós e nós resolveremos o que fazer. O que não quero e que seja outra pessoa qualquer, que a não conhece bem, a dizer-lhe uma tal coisa.
Mediador bioético: Dr. Martins, o que lhe parece?
Dr. Martins: Bem, concordo. Inquieta-me a possibilidade de, se ela perguntar ao pessoal, a alguém que não a mim, é mais provável que o pessoal possa interpretar mal alguma coisa que ela diga como sendo uma pergunta sobre o diagnóstico quando afinal esteja apenas a pedir uma outra informação qualquer. Quero ter a certeza de que o pessoal não a confronta com o diagnóstico quando estiver sozinha. Por favor, por favor, não façam isso! Se acharem que estão perante uma pergunta direta, o que preciso que façam é que mudem de assunto – eu, o seu médico que a conheço há muito tempo, serei o único a abordar o assunto e a sua família tem de estar presente no quarto. Juntos veremos o que ela realmente quer saber. Se ela mudar de opinião e quiser saber, ela saberá. Mas não se espere que isso vai acontecer.
Mediador bioético: Permitam que pergunte – e talvez possamos falar sobre isto. Temos um hospital a funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana, e sabemos que tentaremos comunicar com todos – como pensam que devemos fazer isso? Como fazer para que todos os membros do pessoal saibam exatamente o que fazer?

O mediador apercebe-se de que o grupo se aproxima de um acordo mas há pormenores que precisam ser acertados antes do fim da sessão. É tentador saltar passos, especialmente depois de uma longa e tensa conversa. É altura em que seria útil fazer um resumo e reconhecer que os participantes fizeram progressos significativos antes de testar a proposta do Dr. Martins: “Então, penso que estamos a caminhar para uma solução aceitável por todos. Dr.ª Carolina e Enf.ª Beatriz, segundo parece, depois de ouvirem o Dr. Guimarães e a D. Guiomar e de ouvirem o Dr. Martins, podem trabalhar sem revelar a D. Guilhermina o diagnóstico de cancro. Quero agradecer-lhes por isso. Dr. Martins, o que mais o preocupa a si e aos filhos da D. Guilhermina é que, quando chegar a altura – embora pensem que seja pouco provável – em que a D. Guilhermina pergunte pelo diagnóstico, possam estar presentes para a apoiar.” Resumir deste modo favorece as possibilidades de que a Dr.ª Carolina e a Enf.ª Beatriz compreendam e transmitam ao resto da equipa a importância de não forçar a D. Guilhermina enfrentar a palavra cancro sem a presença do seu sistema de apoio.

Dr.ª Carolina: Podemos fazer uma nota sobre isso e pô-la no processo clínico, como você fez ao escrever “não revelar o diagnóstico à doente” na porta do quarto.

Há aqui alguma tendência para ver ironia nesta fala da Dr.ª Carolina. Poderia merecer uma reação do mediador: “Bem, pode não ser preciso um anúncio publico. Isto é uma matéria de foro privado e não precisa sem anunciada aos sete ventos. Sinto que, com este comentário, poderemos precisar de dar mais um passo de modo a conciliar este caso com a regra normal que tive ocasião de formular antes – a de que os doentes capazes podem decidir. Que tal se concordarmos em que, quando a D. Guilhermina fizer perguntas, se responda que o Dr. Martins está a reunir todos os exames e lhe falará disso a breve prazo? Assim, Dr. Martins, o senhor pode ajuizar o nível das perguntas, decidir se fala à família e preparar o nível de resposta que acha necessário.” Este resumo põe a responsabilidade e a autoridade nas mãos do médico de família, que é a figura central da relação médico-doente e o que tem a experiência de cuidar da doente – e uma boa parte das suas funções é partilhar e interpretar informação.

Enf.ª Beatriz: Também quero, como enfermeira-chefe deixar muito claro que farei o meu melhor para dar à doente os melhores cuidados possíveis sem lhe revelar o diagnóstico e que debaterei isto com o meu pessoal.
Gaspar Guimarães: É o seu trabalho, não o meu.
Guiomar Guimarães: Estamos muito gratos, agradecemos muito que nos tenham ouvido e compreendido, e esperamos que, no hospital, seja possível, com a vossa ajuda, comunicar o que acordamos.
Mediador bioético: Julgo que podíamos ainda falar um pouco mais sobre se está ou não na altura de chamar o serviço de cuidados paliativos. E algo que acham aceitável?

De novo, foi uma boa sequência ao que aconteceu agora. Teria sido ainda melhor levantar o assunto da consulta de cuidados paliativos com uma pergunta (“Acham que podíamos falar um pouco mais sobre chamar os cuidados paliativos?”) em vez de como uma recomendação (“Julgo que podíamos ainda falar…”).

Gaspar Guimarães: [para o Dr. Martins] Mais uma vez, respeito muito a sua opinião e o modo como tem gerido até agora os cuidados com ela, por isso se e essa é uma recomendação médica?
Dr. Martins: Sim. Suponho que esta reunião foi a primeira em que tratamos diretamente desta questão. Só há pouco recebi os resultados da colonoscopia e da tomografia mas sim, com certeza, e vamos ter a melhor equipa de cuidados paliativos a ajudar a doente a não sofrer e a viver o que lhe resta da sua vida tão confortável quanto possível.
Guiomar Guimarães: O senhor continua a ser o seu médico mesmo depois da chegada dessa equipa?
Dr. Martins: Não tenha dúvidas quanto a isso. Serei o seu médico e manterei o papel de decisor primário mas realmente precisamos e queremos a ajuda deles.
Mediador bioético: Tem mais perguntas acerca do tratamento atual ou sobre eventual alta e planeamento a seguir? Há quaisquer outras perguntas que queiram fazer?
Guiomar Guimarães: Penso que, por agora, há muita coisa para pensar, tudo isto é novo. Sei que já tem feito isto mais vezes, mas para nós foi a primeira vez que estamos nesta situação pelo que acho que temos de nos sentar e pensar mais em tudo. Acho que posso falar pelo meu irmão e mostrar que agradecemos o tempo que estiveram connosco e que nos tenham ouvido.
Mediador bioético: [para a enfermeira] Em relação ao resto do pessoal, será quem fará a devida passagem de informação?
Enf.ª Beatriz: Sim.
Mediador bioético: OK. Então, antes de ir embora, quero agradecer a todos por terem vindo e falado sobre a D. Guilhermina; penso que chegamos a um bom porto. Tentamos garantir-vos que cuidamos dela, a Enf.ª Beatriz e o Dr. Martins farão o seu melhor para que o pessoal evite conversas diretas sobre cancro com a vossa Mãe, e vamos pedir a equipa dos cuidados paliativos para vir falar convosco e com a vossa Mãe de modo que possamos avaliar as suas necessidades atuais e prever medidas para o futuro. É sobre isto que chegamos a um acordo?

O mediador poderia finalmente dizer qualquer coisa que indicasse que este era um caso pouco vulgar e como o pessoal estava a seguir os princípios éticos gerais: “Gostaria de fazer um comentário final ao debate. Estou satisfeito com as decisões que tomamos, mas todos nós, em cuidados de saúde, sabemos que foi uma conclusão pouco frequente. Concordo em que faz todo o sentido neste debate que o que interessa são os cuidados com a D. Guilhermina. Contudo, isto está contra os direitos legais da D. Guilhermina e é mesmo uma exceção às regras que seguimos no ensino do pessoal da saúde. Por isso quero assegurar aos profissionais que os seus instintos e formação eram os melhores e que este caso é um desvio dos nossos procedimentos habituais.”

Finalmente, está certo de que o Dr. Martins pergunte a D. Guilhermina se ela aceita que seja ele a pedir os exames e lhe explique tudo sobre os exames? Está certo de que os seus filhos falem com ele sobre os cuidados que lhe dizem respeito?” (Seria surpreendente que este mediador partisse para a discussão de alguns temas ligeiramente diferentes.)

Guiomar Guimarães: OK, OK!
Dr.ª Carolina: Vou marcar já a consulta.

Debate adicional Geralmente, num caso como este em que há desacordos dentro da equipa de saúde, o mediador bioético reúne com o pessoal primeiro (como referido no Capítulo 4) para ver se as suas diferenças podem ser resolvidas e, se não forem, para tentar que concordem sobre como apresentar os seus desentendimentos perante a família.

Este caso mostra bem a tensão entre o princípio bioético da autonomia e as normas sobre a decisão de certas famílias no que se refere a assuntos de saúde sérios. Muitas pessoas acham difícil imaginar como é que alguém, não conhecendo a sua própria doença, poderá sofrer menos, numa época em que toda a informação médica mais sofisticada está ao dispor do clique num computador. Respeitando o princípio da autonomia, é também importante reconhecer que, em muitas culturas, são as famílias que assumem, partilhando ou controlando as decisões sobre problemas de saúde importantes dos seus entes queridos. Se a doente dispõe da capacidade para mudar de ideias e de pedir informações, a decisão de delegar a sua autonomia é eticamente valida.

O problema neste caso é que a D. Guilhermina nunca delegou explicitamente esta responsabilidade – é com isso que o mediador e os membros do pessoal se estão a debater. Uma resolução baseada em princípios exige que o consenso da mediação assente em limites legais e regulamentares conhecidos. É perfeitamente aceitável que um doente delegue o poder de decidir, optando assim por uma autonomia apoiada ou diminuída, mas esta delegação só deve ser ter efeito se, fora das regras habituais, for um abrigo seguro do processo de decisão. Neste caso não havia uma delegação tão explicita assim.

Não é bem isso qu’ela queria dizer: transcrição de uma dramatização pedagógica

Tradução de She Didn't Mean It: A Role-Play Transcript, páginas 253 a 272 do livro

Mediação bioética - Um guia para soluções partilhadas e modeladas” 

de Nancy Neveloff Dubler e Carol B. Liebman.
Vanderbilt University Press. Nashville. 2011

Personagens [NT: A opção por nomes portugueses, fictícios como no original, procura significar que, se nunca aconteceu, uma conversação similar pode acontecer entre nós]: 

Ana Silva, filha da doente
Beatriz Silva, filha da doente
Carla Cardoso, provedora da doente
Domingos Domingues, médico assistente
Eugénia Esteves, mediadora bioética

Contexto

A D. Florentina Silva, senhora com 87 anos, está muito doente com múltiplos problemas. Está internada na Unidade de Cuidados Intensivos. Está ligada a um ventilador e as suas tensões estão em queda, mesmo quando lhe são administradas vasopressinas, e está em insuficiência renal. Por uma vez, esteve em situação tal que a equipa admitiu a possibilidade de ter de tentar uma ressuscitação mas a doente estabilizou. A situação da D. Florentina continua muito instável.

A D. Florentina Silva fez um testamento vital há 10 anos, que mais tarde confirmou, declarando que, se ficasse em estado crítico e sem probabilidades de recuperar, não quereria fazer hemodiálise, ser ligada a um ventilador, ser hidratada ou alimentada e que queria que lhe afixassem uma Decisão de Não Reanimar (DNR). Também declarou que não queria ser um peso para a sua família. Nomeou o seu marido como Procurador de Cuidados de Saúde, o qual entretanto ficou gravemente demenciado, sendo que ela era o seu cuidador primário em casa. Os Silvas têm duas filhas adultas. Ana, que vive com eles, e Beatriz, uma profissional de sucesso com família constituída.

Há poucos dias o nefrologista levantou a questão da hemodiálise e Ana assinou um consentimento. Ana também se opôs à DNR. Beatriz zangou-se por o nefrologista ter estado a falar com ela mas ter pedido o consentimento à Ana para a diálise. Ela pensa que a sua mãe deve ser retirada do ventilador, que sempre recusou, não deve fazer diálise e deve ser afixada a DNR, conforme as suas firmes vontades declaradas.

Relato anotado

Mediadora: Boa tarde! Muito obrigado por arranjarem tempo para nos reunirmos hoje, pois sei que todos têm os dias muito ocupados e deve ter sido difícil para vós, o que agradeço. O meu nome é Eugénia Esteves. Pediram-me que vos ajudasse neste caso. Sou o que se chama uma mediadora. Sou frequentes vezes chamada a ajudar em casos em que há muitas decisões difíceis a tomar. Procuro que todos os envolvidos se pronunciem sobre as questões e que cheguem a conclusões.

A mediadora começou com fortes agradecimentos aos participantes. (Nunca deixe passar uma oportunidade para ser forte). A explicação da mediadora sobre o seu papel é um pouco fraca. Não explicou que trabalha para o hospital e que, neste caso, ela é neutral e não toma decisões mas apenas ajuda os participantes a tomá-las. É também útil que, nas palavras de abertura, se acentue o objetivo de alcançar boas decisões para a doente. Aqui a mediadora deveria ter dito: “Permitam-me que me apresente. O meu nome é Eugénia Esteves e sou diretora do serviço de consulta de ética clínica neste hospital. Sou funcionária do hospital e devo trabalhar para ajudar quando há diferenças de opinião sobre o plano de cuidados de um doente ou quando é preciso tomar decisões difíceis. Tento ajudar todos os envolvidos a entenderem-se e a aceitarem as decisões que sejam tomadas. Também tento que o doente seja parte da discussão, mesmo que não possa realmente estar presente, levantando questões sobre as suas vontades e valores, e faço-o porque o que queremos fazer por uma doente incapaz de participar a discussão é chegar ao que ela nos dos diria se o pudesse fazer, portanto tento ajudar a encontrar uma solução, um consenso, aceite por todos como pela mediadora. Conheço bem a maioria do pessoal no hospital mas nunca estive envolvido neste caso antes.

Podemos começar por nos apresentar? [Omitem-se as apresentações do Dr. Domingues, de Ana e Beatriz Silva e da advogada do doente.]

Mediadora: [dirigindo-se a Ana e Beatriz] Qual é o vosso parentesco com a doente?

Ana Silva: É minha mãe. É a minha mãe e eu tenho estado a cuidar dela há muito tempo.

Beatriz Silva: É minha mãe.

Mediadora: OK, obrigado. Então, sei pouco sobre a situação médica da D. Florentina. Assim, podemos começar com o Dr. Domingues. Não se importa de nos dizer, do seu ponto de vista, como estamos?

Os mediadores têm duas escolhas sobre o modo de começar um debate construtivo: uma, como a que a mediadora fez, é pedir a um médico para explicar os factos médicos, outra, é pedir à família para informar o mediador sobre a doente e as suas preocupações, ou seja, apresentar a doente ao grupo. Muitas vezes recomendamos que se comece por pedir aos membros da família para apresentarem a doente: “Ana e Beatriz, posso tratá-las pelo primeiro nome? Peço, para começar, que me falem sobre a vossa mãe. Eu vi-a nos Cuidados Intensivos e estive a ver o processo clínico – fiquei com a impressão de que, nesta altura, está muito mal. Contudo, não consigo saber quem era ela, como vivia, o que lhe interessava. Falem-me da vossa mãe”.

Uma das razões para iniciar com uma pergunta à família sobre o doente é situar num nível elevado o estatuto da família no debate. Os médicos são peritos em medicina, diagnóstico, prognóstico e possibilidades e probabilidades médicas, mas os membros da família são peritos na Mamã. Começar pela família dá-lhe um lugar na mesa que é significativo. Teria sido útil que, antes de dar primazia ao Dr. Domingues, a mediadora começasse com a família e depois recorresse a ele para explicar os factos médicos.

A mediadora não deve pedir à família que exponha o que pensa dos factos médicos antes de ouvir o médico. Se o fizer corre vários riscos, nomeadamente amarrar os familiares a visões inadequadas e promover reações defensivas quando a equipa médica tentar corrigir tais posições. A mediadora disse que “sei pouco sobre a situação médica da D. Florentina.” Mostraria transparência se acrescentasse como obteve essa informação – pela leitura do processo clínico ou por conversar com a equipa médica.

Dr. Domingues: Certamente. Temos uma senhora, a vossa mãe, que tem múltiplos problemas médicos, sendo os mais importantes a insuficiência cardíaca congestiva e a diabetes. Tem sido minha doente há vários anos. Ultimamente, com o declínio da sua saúde, foi internada em Cuidados Intensivos e ligada a um ventilador, as tensões arteriais baixaram e está sob medicação para tentar impedir que continuem a baixar. Parece estar estabilizada mas o problema mais recente foi o dos rins que começaram a funcionar mal, o que nos leva à importante questão do que fazer agora para a tratar. Temos assim a questão de saber se a diálise era o próximo passo e espero que possamos realmente distinguir o que é ou não é compatível com as vontades da D. Florentina.

Mediadora: OK.

O médico deu-nos uma valiosa apreciação dos factos sem cair em termos do jargão médico e evitou defender o tipo de tratamentos que recomenda. Mesmo assim, a mediadora precisa de resumir o que foi dito, por duas ordens de razões. Primeiro, resumir dá tempo aos familiares para captarem e começarem a aceitar as más notícias sobre a doença da mãe, sobretudo no caso de a mediadora se aperceber que uma das filhas tem dificuldade em aceitar que a sua mãe está a morrer. Resumir também permite que a mediadora reformule em linguagem de leigos alguns termos ou conceitos mais difíceis de compreender. Assim, ainda que possamos assumir que a maioria das pessoas que passou muito tempo no hospital saiba o que é um ventilador, a mediadora podia explicar: “E ela está ligada a um ventilador, ou seja, precisa de uma máquina que a ajude a respirar”. A mediadora pode prosseguir o seu resumo com perguntas que clarifiquem a condição médica, em especial aquelas que pense que a família receie fazer.

Beatriz Silva: A minha mãe tem uma diretiva antecipada de vontades muito clara e ela não queria qualquer espécie de medidas extremas. Ela disse especificamente que não desejava fazer diálise e outros tratamentos agressivos. Nunca quis ser um peso. Ela tomou conta do nosso pai doente durante anos. Foi sempre muito clara. Nem percebo por que estamos a ter esta discussão.

Ana Silva: Não penso que o que ela queria dizer seja o que está nesse papel. Não é dela, não faz qualquer sentido, ela não era assim, isto não está certo.

Mediadora: Sabemos quando foi que a vossa mãe fez essa diretiva antecipada?

Estamos a ver, pelo curso da mediação, os problemas criados quando um mediador avança demasiado depressa para uma discussão médica. Ela precisava, em primeiro lugar, de pedir às filhas que lhe falassem sobre a mãe. Como era ela? O que gostava de fazer? O papel do mediador é conduzir o debate como se a doente e os seus valores estivessem à mesa. Levar as filhas a falar sobre a mãe em situações neutrais – ir à igreja, tomar conta do pai, almoços de família – dá ocasião a desenhar o perfil da pessoa sem estar se constrangido pelas decisões que têm de ser tomadas. A mediadora deve desacelerar a discussão e desviar o foco com uma afirmação como: “Certamente falaremos sobre as vontades da vossa Mamã sobre os cuidados médicos; é por isso que estamos aqui, mas gostaria de conhecê-la um pouco melhor como pessoa antes de nos focarmos nela como doente”.

Além disso, a mediadora faz uma pergunta factual em vez de seguir os que Ana e Beatriz disseram. Fazer isso afasta a discussão das suas preocupações. A mediadora precisa, para começar, de resumir o que ouviu de Ana e Beatriz e depois clarificar o que Ana quis diz com «ela não era assim». Uma resposta possível da parte da mediadora seria: “Ana e Beatriz, agradeço por me permitirem perceber os vossos pontos de vista sobre o que a vossa mãe desejaria numa situação como esta. Entendi que ambas querem respeitar as vontades da vossa mãe, embora tenham diferentes entendimentos sobre como o fazer. A Beatriz sente que ela foi clara sobre não querer tratamentos e a Ana não está tão segura disso. Ana, pode dizer-nos algo mais sobre o que significa esse «ela não era assim»?

Beatriz Silva: A mãe fez o testamento vital logo que começou a sentir-se doente. Na verdade, atualizou o testamento vital uma série de vezes desde então, manteve-o atualizado e fez várias alterações.

Mediadora: Há quanto tempo foi a última alteração?

Beatriz Silva: Há cerca de quatro meses.

Mediadora: Muito bem.

Ana Silva: Penso que ela estava apenas pressionada e confusa, não era isso o que queria dizer, percebe? Tomava conta do Papá, era uma pessoa enérgica, nunca admitiria desistir, nunca queria desistir, não era isso que havia de querer.

Aqui a mediadora podia fazer uma pergunta clarificadora para perceber as preocupações subjacentes à posição de Ana, dizendo: “É interessante, Ana. Fale-me mais sobre a sua mãe e o seu caráter. Diz-nos que ela nunca queria desistir. Diga-me por que acha que era assim. Asseguro, a todos vós, que havemos de chegar às decisões médicas – é por isso que aqui estamos – mas preciso de conhecer mais a doente antes de continuarmos.”

Beatriz Silva: De que estás a falar? De qu’estás afinal a falar? Ela escreveu direitinho na sua diretiva antecipada o que queria. Como podemos não respeitar as suas vontades? Ela teve o cuidado de afirmar essas vontades.

Mediadora: OK.

A mediadora deveria aperceber-se da óbvia frustração de Beatriz, dizendo: “Percebo o que diz, Beatriz, e sei que é difícil para si mas mantenha-se firme connosco e verá que chegaremos ao que é importante”.

Dr. Domingues: Efetivamente posso atestar que ela falou sobre situações específicas relativas aos cuidados que queria ter quando falámos sobre o que era a hemodiálise e o que significava. Do mesmo modo, conversámos sobre ventiladores e o que faziam. Em termos do seu entendimento sobre o que estava a assinar, estou à vontade para dizer que ela sabia o que queria e percebia o que estava a assinar nesse tempo.

Eis uma mudança importante, a qual a mediadora necessita de resumir para ter a certeza de que tanto ela como os outros participantes compreenderam o que o Dr. Domingues está a dizer. “Dr. Domingues, deixe-me ver se percebi. Apresentou a possibilidade de uma diálise e do uso de ventilador à D. Florentina e ela foi categórica em dizer que não queria qualquer um desses tratamentos?”

Ana Silva: Ela não queria morrer, essa não era a sua intenção. Só queria ficar boa para tratar do Papá e estar disponível para nós.

Beatriz Silva: Isso é porque tu não querias tomar conta do Papá, onde tens estado? É com isso que te preocupas?

Mediadora: OK, vamos acalmar, vamos acalmar e tentar organizarmo-nos. Quero ter a certeza de estar a compreender o que cada um diz. No caso aqui do Dr. Domingues, julgo perceber que nos está a dizer que a D. Florentina está muito doente, que está a precisar de um conjunto de cuidados médicos imediatos, está entubada e ventilada, as tensões estão muito fraquinhas e precisa de medicações para as fazer subir, e estas coisas estão mais ou menos estáveis nesta altura, contudo os seus rins estão a falhar e é preciso decidir o que fazer agora.

Ana Silva: O médico dos rins disse que a diálise podia ajudar. Por isso temos de fazer o que possa ajudá-la. Foi o que ele disse e disse-o de forma clara,

Dr. Domingues: Gostaria de explicar essa afirmação quando achar que seja oportuno.

Mediadora: OK, muito obrigado. Já iremos ao que ponto do que a diálise pode fazer de bem ou de menos bem. Estou apenas a tentar equacionar o que foi dito agora, mas certamente discutiremos esse ponto. OK? Para mim, a Beatriz acredita que a sua mãe preencheu um testamento vital que, de certo modo, lhe diz o que ela queria fazer e o que não queria, e deseja poder ver as suas vontades respeitadas. Pensa que seguir as vontades expressas no testamento vital é o melhor para ela.

Beatriz Silva: Sim, é isso.

Mediadora: E a Ana, segundo entendi, está preocupada com as vontades da sua mãe e quer para ela o melhor. Pensa que o melhor para ela é proporcionar-lhe cuidados médicos pesados para tentar que melhore, porque, nas suas palavras, «ela é uma lutadora».

Ana Silva: Sim.

A mediadora reconhece que precisa de intervir, apercebe-se do que Ana, Beatriz e o Dr. Domingues disseram, baixou a tensão e recordou a Ana e a Beatriz o interesse comum referente às vontades da mãe e à procura do seu melhor interesse. Agora, quando o doente está a morrer – embora isso ainda não tenha sido dito especificamente – o seu melhor interesse é evitar que sofra durante o processo de morte. A mediadora usa o resumo da situação médica da D. Florentina para dar a cada um algum tempo para respirar.

A mediadora reconhece também parte do que Beatriz e Ana disseram mas ignora alguns pontos importantes. O comentário de Ana – «ela não queria morrer… queria ficar boa para tratar do Papá e disponível para nós» – também precisa de ser reconhecido. Podia ter dito: “E isto é difícil, Ana, porque para si se seguirmos as vontades como ela os expressou é como que dizer que ela escolheu a morte em vez de ficar a olhar pela vossa família. Ana e Beatriz, ambas se referiram ao vosso pai e à necessidade de pensar em como se cuidará dele no futuro. Como eu vos disse, precisamos de responder às perguntas de Ana sobre a razão por que os médicos têm diferentes opiniões no que toca a saber se a diálise será útil”. Este resumo reconhece tanto o que foi dito como dá início à definição de uma agenda para o resto do debate: que tipo de cuidados precisa o marido e qual a adequação da diálise.

Provedora do doente: Desculpem-me, por favor, mas gostaria de entrar no debate. Só queria dizer o que me parece importante agora. Na verdade, não se trata do que elas querem – é o que a doente quer. Se ela decidiu o que queria em termos de cuidados a receber no final da sua vida, temos de a respeitar pois as suas intenções eram claras no que assinou. Penso que temos a obrigação moral de respeitar e seguir o que subscreveu.

Mediadora: OK. Pois, estamos aqui para cumprir as vontades da D. Florentina, embora talvez não haja necessariamente um acordo sobre quais seriam exatamente essas vontades. Podemos explorar esse ponto específico. Mas antes de o fazermos, não sinto que conheça deveras a D. Florentina. Beatriz ou Ana, será que uma de vós poderia, em poucos momentos, dizer-me mais alguma coisa sobre a vossa mãe, que tipo de pessoa era?

A mediadora afasta a afirmação depreciativa e pouco útil da provedora da doente reconhecendo a ambas os objetivos de respeitar as vontades da D. Florentina e as diferentes perspetivas sobre quais são as suas vontades.

Embora a apresentação de um doente pelos familiares não lhe permita participar, é muitas vezes melhor que seja feita no início da mediação, este é um bom exemplo em como a mediação é um processo benévolo no qual uma apresentação tardia continua a ser útil.

Ana: Bem, a Mamã gostava de ser o centro das atenções. Gostava de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Tomava conta do Papá, ajudava toda a gente; era muito dramática – penso que ela nunca queria desistir. Se quisesse desistir, ela mesma poria fim à sua vida, cometeria suicídio, nunca iria recorrer a esses papéis legais extravagantes para decidir o que fazer. Ela queria estar aqui para o Papá. Queria ter a certeza de estaria pronta para cuidar dele e de que ele poderia chamá-la e vê-la. Nunca queria que alguém perdesse a esperança nela.

Mediadora: Ana, alguma vez falou com a sua mãe sobre decisões médicas?

Ana: Eu vivia com os meus pais.

Mediadora: Mas alguma vez falou com ela sobre decisões médicas? O que queria ela?

Ana: Falávamos todos os dias. Ela queria tomar conta das coisas e estava sempre pronta para qualquer um.

A mediadora fez uma pergunta teste da realidade: Ana debateu decisões médicas com a mãe? Ana evita a questão e a mediadora está atenta. Não é raro que um participante tente esquivar-se a perguntas difíceis e foi o que fez Ana, em vez de reconhecer que a sua leitura da situação pode ser inconsistente. Mas, como vemos, é provável que a pergunta teste da realidade ajude a pessoa a quem é dirigida a reconsiderar a sua posição.

Beatriz: Ela protegia-te. Não falava contigo sobre as suas inquietações. Tu vives num mundo quase imaginário. Não fazes ideia do que passa à tua volta.

Ana: Mas tu não vives com eles por isso penso que és tu quem não faz ideia.

Mediadora: OK. As pessoas têm relacionamentos diferentes dentro de uma família e podemos aprender certas coisas vivendo com as pessoas, assim como falando com as pessoas, por isso penso que há coisas em comum e que podemos continuar a falar, respeitando-nos mutuamente e tentando compreender melhor a D. Florentina já que, no fundo, é para isso que estamos aqui, ou seja, cumprir as vontades da D. Florentina. Parece-me que podemos ser cordiais e prosseguir ouvindo a Ana. Estava a dizer que a sua mãe era uma mulher muito enérgica, que gostava de ser o centro das atenções e que tinha feito muito pela família, como tomar conta do vosso pai, não era?

Foi apropriado que a mediadora interviesse interrompendo a desnecessária troca de palavras em escalada entre as irmãs, mas o tom foi um pouco de reprimenda. Seria mais útil que reconhecesse os seus sentimentos assim como as diferentes perspetivas sobre o que a mãe pensava sobre a sua doença e possível morte. Do mesmo modo, a mediadora precisa ter cuidado com o uso da palavra «nós». Parece correto dizer “podemos aprender certas coisas vivendo com as pessoas, assim como falando com as pessoas” mas já não tanto dizer “há coisas em comum e que podemos continuar a falar”.

Alguns mediadores podiam ainda ser mais diretos sobre a zanga e dizer: “Bem, vejo que estão ambas um bocado zangadas e seguras das suas versões sobre o que a D. Florentina havia de querer. Não me surpreende que as emoções se sobreponham, corremos esse risco, mas eu procurarei que cada uma diga o que tem a dizer de modo que possamos explorar todas as opções”.

Ana: Sim.

Mediadora: E isso é bastante importante nesta altura?

Ana: Sim.

Mediadora: Posso perguntar o que aconteceria ao seu pai se a mãe não tivesse condições de voltar a casa?

A mediadora foca-se nos receios de Ana sobre o modo como os cuidados do pai podem estar no centro da disputa e começa a fazer perguntas sobre isso.

Ana: Bem, creio que mesmo que ela tenha de ir para um lar, ou para outro lugar qualquer, isso seria aceitável porque ainda assim ela estaria presente para o Papá. Ele podia visitá-la e ambos podiam estar juntos.

Mediadora: Portanto é sobretudo a sua presença que a preocupa, não necessariamente que ela…

Ana: Ela queria ainda ficar connosco.

Mediadora: OK. Beatriz, não entendi bem como vê a sua mãe, quer dizer-nos?

Embora a mediadora tenha começado a focar-se no pai, apercebeu-se que a Beatriz precise de ter a sua oportunidade falar sobre a mãe.

Beatriz: Eu adoro a Mamã, quero o melhor para ela, e sinto como que entrasse no seu íntimo e o meu papel fosse garantir que as suas vontades sejam respeitadas. Não quero que ela morra, adoro-a, mas ela foi muito explícita, afirmou com clareza no seu testamento vital que não queria essas medidas extraordinárias. Parece que o médico falou com ela e ela sabia o que estava a assinar e o seu significado – como podemos não a respeitar?

Mediadora: Falou com a sua mãe sobre o testamento vital?

Beatriz: Sim. Estava bem par do que ela sentia. Não sei se concordo com ela ou não, mas isso não interessa, porque era o que ela desejava.

Beatriz acaba de dizer algo importante, distinguindo entre os seus próprios sentimentos e desejos e os da sua mãe e isso pode ajudar Ana a ouvi-la. Uma vez que as partes em disputa tendem a não se ouvir uma à outra, a mediadora precisava de melhorar a disposição de Ana para ouvir Beatriz, resumindo o que esta disse antes de avançar com mais perguntas.

Mediadora: OK. Sabem se ela teve alguma experiência pessoal relativa a estas decisões, alguma pessoa de família que a tenha motivado para estas escolhas?

Boa tentativa da mediadora para os fundamentos das escolhas da D. Florentina.

Dr. Domingues: Desconheço.

Beatriz: Penso que, quando o Papá começou a ficar doente – está demente e necessitado de muitos cuidados em casa – ela sentiu que queria manter a sua dignidade e não queria ser um peso para as pessoas,

Dr.ª Carla Cardoso: Julgo que, se virmos bem o que acontecia, ela não ia quer que lhe aconteça a si –

Ana: Ela queria estar presente para o Papá.

Dr.ª Carla Cardoso: Estamos a fazer com que aconteça isso agora. Ela não queria estar ligada a um ventilador mas está. Não queria ser um peso. Temos de decidir por ela, não contra ela. Não devíamos ignorar o seu testamento por os seus filhos estarem a vacilar sobre o ponto principal. O nosso trabalho é no seu interesse ou no nosso interesse?

Mediadora: Portanto, Dr.ª Carla Cardoso, julgo que levantou um ponto importante – segundo percebi o testamento vital da D. Florentina diz “não quero ser um peso para a minha família”.

A mediadora reconhece o ponto da provedora da doente mas necessita de fazer mais para a trazer para o campo das soluções em vez de incendiar a discussão, dizendo qualquer coisa como: “Vejo que está a fazer o seu papel de defensora da D. Florentina para que as suas vontades sejam respeitadas. Penso que é o que todos queremos mas queria ouvir da Ana se esse documento não contém todos os objetivos da D. Florentina. Vale a pena dedicarmos algum tempo a falar como podem ser apreciados.

Mediadora: [para Beatriz] Referiu que também ela não queria ser um peso para a família. Pode explicar-me qual o seu entendimento sobre o que ela queria dizer com “peso”?

Beatriz: Não queria ser ligada a máquinas, não queria perder o controlo sobre o que estaria a acontecer ao seu corpo, não queria ser um escoadouro financeiro. Queria ser independente e agora não pode ser independente.

Mediadora: O que acha, Ana? O que pensa que a sua mãe queria dizer com “peso”?

Ana: Bem, ela, não creio que fosse um peso. O que queria era estar presente para o meu pai e ele precisa dela. Ela queria ser o centro das atenções, amava as pessoas que a rodeavam e é a isso que ela tem direito agora. Portanto não vejo como isso possa ser um peso. Não faz sentido para mim e o nefrologista disse que esse tratamento a podia ajudar, portanto só temos de ajudar.

Mediadora: Compreendo que ache que a intervenção que foi proposta não seja um peso, mas posso perguntar- lhe o que seria então um peso, o que quereria ela significar com essa palavra?

Ana: Se morresse. Porque nesse caso não estaria presente para ninguém – que era o que entendia ser o seu papel. Então isso seria um peso para ela.

Esta resposta é tão estranha que tem de obrigar a mediadora perguntar-se o que mais acontecerá e a considerar se Ana tem dificuldades emocionais que impeçam qualquer solução. Mas tal resposta fora do normal pode também ser uma indicação de que Ana apreendeu a mensagem de que as orientações da sua mãe precisarão de ser seguidas embora ainda não esteja na altura de o reconhecer. A mediadora precisa pensar sobre como fazer com que Ana se sinta compreendida e aprovada.

Dr.ª Carla Cardoso: Ena! Isto é incrível, como podia ela –

Ana: Você não a conhece –

Dr.ª Carla Cardoso: Como pode ser um peso para si mesma quando estiver em repouso?

Eis um exemplo do princípio da mediação, segundo o qual, quando se quer esmagar um participante, se deve, em vez disso, tentar atacar com: “Provedora, sei que tem a função de defender a D. Florentina e que o está a fazer fortemente. Mas, sabe, uma das razões para termos esta reunião é que é nossa experiência que o que estamos a tratar é mais do que um pedaço de papel. Sabemos que, quando enfrentamos a decisão de continuar ou não um tratamento, é melhor para o doente se quem o ama e quem está envolvido nos seus cuidados se mostra de acordo com as opções a seguir. Por isso, muito obrigada por estar connosco, agradeço que seja uma boa provedora”. É uma boa maneira de ensinar a provedora da doente a ficar no seu lugar.

Ana: Ela não sabe do que está a falar.

Mediadora: Portanto, Ana, estava a dizer que enquanto a sua mãe for viva ela não é um peso para si? Parece que, para si, ser um peso deve ser diferente do que a sua mãe receava que fosse?

Ana: Talvez.

Mediadora: Portanto, Ana, a doença da sua mãe e o internamento deve ser bastante difícil para o seu pai? Como correm as coisas?

Ana: Sabe, o Papá depende dela e precisa realmente de a ver. E o médico, o médico dos rins, disse que, se fizéssemos essas coisas, isso ajudaria. E os outros médicos têm estado a fazer todo este esforço para a ajudar e portanto, sabe, estou muito preocupada com ela se não se fizer nada para a ajudar, por isso é o que devemos fazer.

Dr. Domingues: Posso clarificar o que a hemodiálise faria?

Mediadora: Com certeza.

Dr. Domingues: A hemodiálise seria um meio de pôr os rins da sua mãe a funcionar por pouco tempo mais…

Ana: Isso é bom.

Dr. Domingues: Bem, de facto é, mas não muda verdadeiramente todos os outros problemas que a afetam. Portanto, em termos de prognóstico, não é uma verdadeira alteração – pode prolongar a sua vida, mas não a tornará verdadeiramente melhor. Portanto não a tornará a pôr mais perto de tomar conta do seu pai e ficar perto dele. Parece-me que é isso – não quero dar-lhe falsas esperanças ou dizer que com a diálise vai poder tê-la de volta e viver a vida como fazia antes.

Ana: Mas ajudaria?

Mediadora: Portanto deixe-me ver se compreendi o que disse, Dr. Domingues. A diálise resolveria o problema dos rins temporariamente, durante um período –

Dr. Domingues: Não resolve mesmo o problema.

Mediadora: Ajudará no problema dos rins durante um período de tempo, mas apenas o que o problema dos rins está a causar. OK. Então pode dizer-me mais sobre o que causa o problema dos rins e o que significam para a D. Florentina, em termos de prognóstico, os próximos dias – ou o que espera que possa acontecer?

Dr. Domingues: De uma maneira geral, todos os órgãos da D. Florentina estão a começar a falhar. O seu coração não é mais capaz de bombear a tensão sanguínea por si só para levar o sangue a todo o lado. E são estas alterações tão dramáticas nas tensões que afetam o modo como os rins funcionam. Temos um círculo vicioso já que todos os diferentes órgãos não estão a funcionar bem – os rins continuam a dar diferentes alertas e, porque não funcionam bem, isso afeta todos os órgãos, levando a uma espiral de decadência onde a diálise nos permitia manter-lhe o equilíbrio de eletrólitos e algumas coisas normais para que pudesse ainda produzir alguma urina. Pode ainda eliminar algumas toxinas mas não faz realmente nada que ajude os outros órgãos que estão a falhar, por exemplo os seus pulmões e, como está liga ao ventilador, portanto…

Mediadora: Afinal o que está a fazer sofrer tanto a D. Florentina? Não há tratamento para ela, que corrija esse problema?

Dr. Domingues: Lamento muito dizê-lo, nesta altura, mas não há maneira de reverter o estado em que ela se encontra.

Mediadora: Portanto seria correto pensar que vê, na sua opinião profissional, o prognóstico da D. Florentina do igual modo, com ou sem diálise?

Dr. Domingues: Diria que com a hemodiálise ela pode viver mais tempo mas não recupera qualquer funcionalidade. Sem diálise o período do seu declínio e de desconforto será mais curto,

Mediadora: Portanto, OK. Compreendo que ela está muito doente e a sua insuficiência renal é mais uma espécie de sintoma da sua doença, que se pode aliviar um pouco o sintoma mas, no final, não se resolve a causa da falência renal.

A discussão sobre o prognóstico, que era necessária nesta altura da mediação, pode ter sido ainda mais útil do que se tivesse acontecido mais cedo. Todos têm estado a girar à volta do facto de a D. Florentina estar a morrer. O médico evitou repetidamente usar a palavra «morte». Quando o Dr. Domingues se referiu ao facto de o coração não ser capaz de bombear o sangue para os outros órgãos no início da sua fala, a mediadora precisava dizer: “nesse caso, Dr. Domingues, se bem percebi, o senhor pensa que a D. Florentina está a morrer e que não há nada que possa fazer para a melhorar”. Este é um dos momentos em que é crítico concentrarmo-nos no que implica a linguagem simples. Quando o médico, ou outros membros da equipa, e a família não conseguem introduzir a palavra «morte» na conversa, cabe ao mediador fazê-lo e tornar evidente para a discussão que o doente está a morrer.

Dr. Domingues: OK, é isso mesmo.

Ana: Mas nós não desistimos.

Dr. Domingues: Não desistimos. Estamos a fazer o que podemos mas penso que –

Ana: Penso que não devemos desistir.

Mediadora: O que quer dizer, para si, “desistir”?

Ana: Eu sei, a minha irmã pode querer desistir, mas eu não quero.

Mediadora: Estamos somente a falar do que sabemos e do que sentimos, contudo eu queria saber o que é desistir, o que significa “desistir”, na sua opinião?

É importante que a mediadora tente de novo obter de Ana uma clarificação da expressão “desistir”, mas isso podia ter acontecido quando da primeira vez que Ana enfrentou repetidamente Beatriz, realçando os seus interesses comuns: “Ana, eu percebi que quer fazer tudo o que for possível pela sua mãe. O que ouvi de si, Beatriz, foi que isto também é para si arrasador, mas que quer ser fiel ao que prometeu a sua mãe. Ambas tentam, à sua maneira, estar do lado vossa mãe”.

Ana: Qualquer coisa que possa mantê-la connosco – acho que não devemos desistir.

A mediadora podia também perguntar de novo o que Ana queria significar com “desistir”: “Ana, falou em desistir. Desistir de quê? O que quer dizer com ‘desistir’? Diga-me o que quer dizer de modo que possamos compreender o seu ponto de vista”.

Mediadora: Assim, seria correto dizer que, se uma intervenção na sua mãe representar uns minutos mais de tempo junto de vós ou uma poucas horas mais ou uns poucos dias mais, isso não faria diferença. É isso?

Ana: Sim.

Uma razão para que esta discussão se esteja a arrastar sem muitos progressos reside na incapacidade da mediadora, até agora, em reconhecer os sentimentos e medos de Ana. Quando ela o fizer, no seu próximo comentário, as partes entrarão no caminho de uma solução.

Mediadora: Ana e Beatriz, isto tem sido muito difícil para vós, com ambos os vossos pais tão doentes. Ana, deve ser especialmente difícil e triste para si por viver com eles. Entendo bem como está inquieta com o que acontecerá com o seu pai agora que a sua mãe não pode mais tomar conta dele. Deve ser mesmo difícil para si agora que a mãe não pode cuidar dele nem interagir com ele?

Ana: Sim. Estamos muito inquietas com o Papá e com o que vai acontecer com ele agora que a Mamã não pode estar com ele. Mesmo que ela estivesse num lar, o Papá poderia ir vê-la, ainda seria capaz de estar com ela e a Mamã com ele,

Mediadora: Portanto, o seu pai tem ido visitá-la ao hospital?

A mediadora percebe que Ana persiste na ideia de que, enquanto a sua mãe for viva, ainda que inconsciente, poderá evitar enfrentar a dolorosa realidade da sua vida sem ela. Para ajudar Ana a pensar no que precisa de acontecer, para que a sua vida se torne suportável, a mediadora faz um conjunto de perguntas teste da realidade.

Ana: Não, não, ele não tem sido capaz de vir ao hospital.

Mediadora: Percebo que está a dizer que pensa que seria útil que ele a visitasse, mas questiono-me sobre como reagiria ele. Disse que ele tem estado algo confuso. Como vai ele reagir se ela estiver fisicamente presente mas não interagir com ele?

Ana: Pois, mas é por isso que penso que – porque os médicos dizem que essas coisas a podem ajudar – penso que devíamos tentar.

Note-se que Ana pode ter acabado de oferecer uma solução para o conflito. Quer tentar coisas que possam “ajudar”. É possível que não insista em tratamentos que não levem à melhoria da condição da mãe ou que venha a concordar com a interrupção do tratamento ao fim de uma breve tentativa.

Mediadora: Então, a Ana acha que, se ajudasse, gostava que avançasse e que seu objetivo é que a sua mãe continue presente para vós? Qual é a sua ideia de quanto a diálise e outros tratamentos poderiam ajudar a sua mãe? Até onde poderia ir?

Ana: Bem, poderia estar presente para o Papá, para mim e poderia, bem vê, …

Mediadora: Consegue ver a sua mãe acordada e atenta?

Ana: Porque não poderia estar acordada?

Mediadora: O que percebi dos médicos é que eles não preveem que a sua mãe desperte.

Ana: Porque não poderia estar acordada? Eles disseram que fariam essas diferentes coisas e isso ajudá-la-ia. Mesmo que ela não regressasse a casa, poderíamos sempre visitá-la, portanto porque não estaria acordada?

A incapacidade de cada um usar a palavra «morte», falar no facto de a D. Florentina estar a morrer, leva a que Ana continue a evitar usar termos dessa triste realidade. Evitar falar de morte pode ser confortável para quem fala mas não é útil para Ana que está a lutar, aterrorizada e em dor. Não falar no que efetivamente vai acontecer apenas acrescenta terror. Além disso, a mediadora identificou corretamente as expectativas não realistas de Ana sobre a possibilidade de a diálise melhorar a condição de sua mãe, de modo a recuperar a consciência. Podia ser melhor perguntar ao médico sobre o impacto da diálise no nível de consciência da D. Florentina. Perguntar a Ana quais as suas expectativas é correr o risco de perder a face e de que ela se torne mais defensiva se lhe disserem que está errada.

Mediadora: Portanto, o que também entendi dos médicos foi que a doença da vossa mãe está a avançar rapidamente, causa uma série de lesões dispersas pelo seu corpo; o seu cérebro está atingido, os seus rins foram atingidos, e eles não veem como possa melhorar. Talvez possam atuar durante pouco tempo para que fique ao nível do que está atualmente mas não muito melhor. O modo como ela se debate agora, permanecendo no leito, incapaz de interagir convosco, é o melhor que conseguem. Foi o que percebi do que os médicos disseram. Perceberam algo de diferente?

Dr. Domingues: Detesto dizer isto mas não acredito que possa deixar o hospital e não gostaria de a ver sofrer desnecessariamente.

Esta é uma oportunidade real para a mediadora tomar conta da discussão e ajudar Ana a aceitar as consequências do que a doente e a família enfrentam: “Dr. Domingues, deixe-me ver se percebo, atendendo à falha de funcionamento do seu coração e dos seus rins e atendendo aos danos causados no seu cérebro, é possível que a D. Florentina desperte e ter alta do hospital? Entendi que nenhuma dessas hipóteses são possíveis, estou certa?

É também a altura para a mediadora explicar à Ana que continuar os tratamentos impõe uma carga sobre D. Florentina, fazendo perguntas tais como: “Dr. Domingues, ela está a sofrer?” “É possível que o ventilador lhe esteja a causar dores?” “Há alguma maneira de se saber que não está a ter dores?” O tema do sofrimento sem benefícios é um dos que a mediadora deveria realçar junto das filhas.

Dr.ª Carla Cardoso: Neste momento ela está ligada ao ventilador e com poucas probabilidades de poder ter alta de todo. Está gravemente doente, tem múltiplos problemas médicos e já foi reanimada uma vez.

Ana: É como diz. O seu coração parou e eles reanimaram-na, fizeram todas aquelas coisas e ela ainda está connosco. Por isso, não compreendo que …

Mediadora: Ela foi alvo de intervenções no hospital e isso tem levado a uma pausa na sua doença. Foi possível repor o batimento do seu coração que está a trabalhar assim [faz um gesto em que as mãos estão a uns doze centímetros uma da outra] e daqui a nada estará a trabalhar assim [as suas mãos estão a cinco centímetros apenas].

Ana: Portanto, se voltar a parar, podem voltar a pô-lo a bater de novo!

O problema com a dificuldade de cada um falar em que a D. Florentina estar a morrer e de usar palavra «morte» leva a que Ana continue a avançar com ideias não realistas.

Dr. Domingues: Não sei se voltaria a bater.

Ana: Se voltarem a atuar.

Mediadora: Cada vez que se cai um nível não se regressa ao nível anterior e cada vez que se fica mais doente e com mais danos, mais se avança para menos e menos funcionamento.

Bom uso de imagem: ainda melhor seria se a mediadora tivesse iniciado a afirmação sob a forma de pergunta: “Portanto, o doutor está a dizer que …”

Dr.ª Carla Cardoso: Ela terá dores? Estará a sofrer a esse ponto?

Ana: O que significa “menos e menos funcionamento”?

Mediadora: O que quis dizer é que, se dissermos que antes de ser internada, digamos, ela tinha um depósito, como um depósito de gasolina. Digamos que o depósito do seu coração estava cheio quando veio para o hospital, a sua doença esvaziou-o para uns 50%, digamos que perdeu metade, e não há maneira de o encher de novo. No próximo evento, a próxima vez que o coração parar, o depósito volta a esvaziar algo mais e, de novo, não há hipótese de o voltar a atestar. Os médicos estão preocupados, como sabe, se voltar a acontecer e não forem capazes de a manter pois cada vez a reserva estará mais em baixo.

Esta é uma metáfora eficaz para ajudar Ana a compreender que a sua mãe não vai melhorar mesmo que os médicos consigam manter o seu coração a bater.

Ana: Então como podemos ajudá-la, porque eu não quero abandoná-la. Sei que a Beatriz quer desistir, mas eu não quero desistir -

Beatriz: Não estás a ser justa. Sabes que eu amo a Mamã, não é justo.

Mediadora: Acho que ouvi a Beatriz dizer que não a quer abandonar, penso que não quer desistir dela. Julgo que vocês não estão necessariamente em desacordo. Ouvimos que ambas amam a vossa mãe e que querem ajudá-la e creio também ter percebido que, como a vossa mãe era quem tomava conta do vosso pai, o facto de ela não poder continuar a exercer esse papel torna tudo muito difícil para ambas. Há decisões muito difíceis a tomar por vós em conjunto sobre o vosso pai e a forma como cuidar dele. O que pensam ambas sobre – uma vez que a vossa mãe, viva mais um dia ou mais um ano, não vai estar, conforme dizem os médicos, acordada e no fundo capaz de participar como fazia antes – o que pensam sobre o que é preciso fazer pelo vosso pai?

A mediadora muda o foco do debate do que seria o tratamento adicional da D. Florentina para o problema de arranjar serviços para o pai. É um movimento crítico (e algo que poderia ter sido feito mais cedo).

Beatriz: Que vamos fazer, Ana? Que vamos fazer com o Papá?

Ana: Acho que com a Mamã, a Mamã tomava conta dele e a ela está aí e o Papá precisa da Mamã.

Beatriz: Mas não me parece que vá poder tomar conta dele do mesmo modo que fazia, por isso o que faremos com o Papá? Temos de ter a certeza de que o Papá fica bem e que tomamos conta dele como deve ser.

Ana: Eu sei.

Quando a mediadora levantou a questão dos cuidados com o pai como um problema que tinham de partilhar o tom da discussão abrandou e as irmãs, pela primeira vez na mediação, começaram a falar uma com a outra.

Dr. Domingues: A vossa mãe está nos Cuidados Intensivos há coisa de um mês – quem tem tomado conta dele?

Ana: Eu tenho feito o que posso porque o Papá, a Mamã e eu vivemos juntos.

Mediadora: Está a trabalhar, Ana?

Ana: Por vezes, sim.

Mediadora: Portanto, o peso tem recaído todo sobre si neste mês ao mesmo tempo que olha pela sua mãe no hospital – isso deve estar a ser realmente muito difícil.

Este reconhecimento dos esforços de Ana e do peso que tem suportado é importante para se chegar a uma solução.

Ana: É muito difícil.

Mediadora: Como estar a conseguir lidar com isso?

Ana: Têm sido de facto uns tempos muito duros.

Mediadora: O que poderia ajudá-la?

Ana: Não sei, é por isso que temos de …, não posso desistir da Mamã.

Mediadora: Portanto o que está a dizer é que está bastante sobrecarregada com isto?

Ana: É muito difícil.

Mediadora: É difícil. É realmente difícil. A Beatriz não tem estado cá e por isso –

Beatriz: Não, acho que não tenho sequer pensado sobre isso. Acho que deixei que tomasses conta do Papá e penso que precisamos de agir em conjunto. Precisamos de fazer planos em conjunto para tomar conta do Papá de modo que não caia tudo sobre ti. Não me parece justo, por isso desculpa, peço muita desculpa. Nunca disse nada porque assumia que tudo estava bem. Lamento tanto. Que posso fazer para ajudar?

Ana: De facto nem sei.

Mediadora: Não podemos, quem dera que pudéssemos, mas não podemos mudar a realidade de que a vossa mãe está a morrer, mas uma das coisas que podemos fazer é chamar a nossa equipa do serviço social para falar convosco. Podemos marcar uma reunião de modo que se inicie um plano e se veja o que precisam para lidar com a situação na falta da vossa mãe. Parece-lhes uma boa ideia?

Ana: Eu gostaria de ser ajudada.

Mediadora: Muito bem. Portanto ambas irão trabalhar para chegar a um acordo que permita tomar conta do vosso pai. A assistente social certamente vos dará a conhecer os programas que temos e a assistência que poderemos oferecer para vos ajudar neste tipo de coisas.

Dr. Domingues: Acho que posso dizer, como médico assistente encarregado dos cuidados à vossa mãe, que sei que há um consentimento escrito no processo clínico para a diálise. Com todo o respeito, gostaria de saber se, sabem, posso prosseguir com os cuidados da vossa mãe de modo a dar-lhe todo o conforto ou se preciso tratar das coisas para que a diálise se inicie?

Mediadora: Portanto, Dr. Domingues, a diálise – o senhor diz que preferia não a fazer mas que não se opõe a que seja feita, e usou a palavra “conforto”?

Dr. Domingues: Sim.

Mediadora: Acredita que se ficar em diálise isso seria desconfortável para ela?

Dr. Domingues: Não creio que seja confortável. Acho que já o disse antes, sinto que apesar de tudo está a sofrer mais com os tratamentos do que a beneficiar deles. Penso que há dores que derivam das quedas de tensão e de todos os soros e da busca de lugares para encontrar veias. A diálise significa pôr-lhe mais uma série de tubos e eventualmente construir uma fístula no seu braço – todas essas coisas realmente invasivas e dolorosas mas efetivamente sem utilidade. São coisas que prolongam a sua morte e não estão realmente a dar-lhe nada de melhor. Penso na vossa mãe – preocupa-me por não estar a prestar o melhor serviço avançando para a hemodiálise.

Ana: Então isso não a vai ajudar?

Dr. Domingues: Não.

Ana: Então o que vamos fazer por ela?

Dr. Domingues: Vamos assegurar de que fica confortável e que vive o que resta da sua vida na maneira que ela queria. Ela foi muito clara sobre o que queria e o que não queria.

Ana: Às vezes penso que a respeitamos fazendo isso.

Mediadora: Muitas vezes, com doentes em fim de vida, os médicos são capazes de deixar de fazer procedimentos desnecessários para passarem a garantir que ficam confortáveis durante o tempo que lhes resta, não é assim?

Eis um bom resumo do desvio de foco dos cuidados da D. Florentina, mas teria sido útil reconhecer o quanto Ana mudou de posição: “Ana, quero fazer uma pausa breve para reconhecer como esta conversa está a ser difícil para si e como tem sido uma filha realmente devotada e grande defensora da sua mãe. Sabemos que ambas amam a vossa mãe e o vosso pai, mas, como disse a Beatriz, você apanhou com o maior peso neste último mês. Manteve-se fiel à sua mãe procurando sempre o que seria melhor para ela. Foi realmente forte na defesa da sua vida. Mas agora, estando todos de acordo em que ela está a morrer, você foi capaz de ver o que é melhor para ela, e isso é muito duro. Agradeço-lhe sinceramente por ser assim para a sua mãe.”

Dr. Domingues: É exatamente como diz.

Mediadora: Que lhes parece?

Ana: Beatriz, então podemos ir vê-la e o Papá pode vir.

Beatriz: Claro.

[As conclusões e os agradecimentos às partes foram omitidos.]

Debate adicional

Este caso contém um problema que não é raro: apesar de a D. Florentina ter passado a escrito as suas vontades com clareza (apenas cerca de 15% da população passa a escrito as suas vontades antecipadas ou testamentos vitais), ela apenas debateu as suas vontades com uma das suas filhas. O resultado é que a melhor maneira de resolver conflitos intrafamiliares não é por recurso a autoridades legais mas através de uma mediação onde os receios e sofrimentos subjacentes dos filhos podem ser devidamente tratados.

O conflito foi agudizado porque Ana, a filha adulta que vivia em casa, foi sobrecarregada e ficou cheia de dúvidas sobre como poderia organizar a sua vida com um pai demente depois da morte da mãe. Outra fonte de conflitos foi o nefrologista que criou um problema dando a Ana a falsa esperança ou, pelo menos, usando uma linguagem que permitiu essa interpretação e um mal-entendido que, na verdade, não foram muito úteis.

A mediadora deste caso foi, assim, levada a demorar demasiado tempo a chegar à palavra «morte» e a dizer o que todos estavam a contornar – que a D. Florentina estava a morrer. Só mesmo na fase final da mediação é que o Dr. Domingues reformulou o ponto em que prolongar a sua vida era prolongar o seu morrer. Pode muitas vezes ser útil ao mediador, precocemente, dizer qualquer coisa como: “Portanto, caro doutor, o senhor está a dizer que a D. Florentina está a morrer e que começar uma diálise não vai melhorar a sua vida mas apenas acrescentar desconforto e prolongar o seu morrer?” Note-se como esta forte mudança de atitude da mediadora, usando perguntas, a suaviza e dá espaço a que os familiares façam também perguntas e tenham tempo para amadurecer as suas implicações.

É muito importante recordar que os familiares não estão acostumados com a linguagem, terminologia e conceitos da moderna medicina e provavelmente sentem-se confusos e afastados do debate. Mas falta um elemento mais nesta mediação – a noção de que a equipa de cuidados médicos tem de assumir a responsabilidade das decisões embora sem desvalorizar os familiares. Neste caso a mediadora necessitou de perguntar ao médico o que é que ele sugeria e porquê, numa forma de restabelecer a responsabilidade e a autoridade relativa a esta terrível decisão que significa a morte.

A mediadora podia ter dito: “Dr. Domingues, percebi que disse que a D. Florentina está a morrer e que o senhor ou qualquer intervenção médica no hospital não podem evitar isso. É assim? Também percebi que disse que essas intervenções, que não a podiam melhorar e levá-la ao estado em que estava antes, lhe podiam causar também dores e sofrimentos. Portanto, parece que o senhor pensa que o melhor para a D. Florentina é dirigir os nossos esforços para o seu conforto e que prolongar o funcionamento dos seus órgãos não a faz voltar para junto das filhas. Se é assim, então é justo dizer que sugere que o melhor para a D. Florentina é deixá-la morrer confortavelmente?” Se seguirmos esta lógica, as filhas compreendem a progressão e entendem a responsabilidade do médico nessa decisão. E não sentirão que são elas a causa da morte da sua mãe.

Este caso ilustra ainda um outro tema. Os testamentos vitais são importantes mas, no cerne de decisões difíceis, eles são apenas uma peça informativa a acrescentar a outras, as quais devem ser trabalhadas para se alcançar uma solução. Podia ter sido útil fazer, precocemente, citações do documento e perguntar porque é que Ana pensava que a sua mãe não queria dizer com o que lá estava. Mas o processo mostrou-se relevante na ajuda para as filhas compreenderem e chegarem a um acordo. Impor os ditames do testamento vital num caso como este acabaria por ser ineficaz e mesquinho. Não ajudaria estas filhas a lidar com a realidade com que se confrontavam ou com o futuro que elas necessitam viver juntas.

Estas eram as vontades da mãe e estavam definidas num documento legal. Muitos juristas perguntarão por que razão isso não acaba com a discussão? A resposta é que em cuidados médicos há obrigações éticas para todos quantos participam nas decisões. É por isso que falamos em soluções honrosas de conflitos. Havendo um testamento vital, não havia suporte legal para dar início à diálise naquela altura. Não podíamos argumentar que seria uma intervenção de curta duração que ela havia de querer para recuperar a sua saúde. Tratava-se de uma intervenção de longa duração que não iria possibilitar senão o prolongar do processo de morte. É por isso que neste caso, como em muitos outros, o conflito é um incentivo para se examinarem todos os dados, assim como a maneira de se chegar a um consenso que preencha as necessidades emocionais da família e se compatibilize com as vontades legalmente documentadas da doente.

O pessoal médico encara a morte como algo natural. Estão treinados para tratar destes casos com competência e sem excessivas emoções. O distanciamento que resulta da educação médica permite que o pessoal saiba lidar com situações mais emotivas. Os familiares não estão acostumados e os profissionais devem mitigar as suas sobrecargas de modo que possam desempenhar os seus papéis no seio da família e cumprir as suas responsabilidades depois de os entes queridos morrerem.