Tradução de “Don't Tell Mama: A Role-Play Transcript”, páginas 273 a 289 do livro
Personagens
[NT: A opção por nomes portugueses, fictícios
como no original, procura significar que, se nunca aconteceu, uma conversação similar
pode acontecer entre nós]: Beatriz Barros, enfermeira
chefe; Carolina Costa, chefe de clínica; Gaspar Guimarães, filho
da doente; Guiomar Guimarães, filha da doente; Manuel Martins, médico
de família; Ricardo Reis, mediador bioético
Contexto A D. Guilhermina
é uma viúva com 82 anos que foi levada ao hospital há dois dias pela filha
depois de várias semanas de fadiga, fraqueza e perturbações gastrointestinais.
A sua história e exame físico apontavam fortemente para a hipótese de cancro do
cólon, o que foi confirmado por colonoscopia. Os seus filhos recomendaram
veementemente ao médico interno que não revelasse o diagnóstico à Mãe. A D.
Guilhermina encontra-se bem e parece consciente e atenta ao que a rodeia. Nos
primeiros dias não fez perguntas sobre a razão por que estava no hospital ou
sobre os seus problemas. Só depois perguntou ocasionalmente ao pessoal sobre os
motivos do internamento e os resultados dos exames.
Quando o interno disse à chefe de clínica, Dr.ª Carolina,
o que aconteceu esta ficou zangada. Disse que os doentes têm o direito legal a
conhecer a sua informação médica e não cabe à família dizer aos profissionais
de saúde que escondam essa informação. Quando a equipa passou visita na manhã
seguinte, a família estava à espera fora do quarto da doente e fez questão de
afirmar o mesmo à equipa. A Dr.ª Carolina explicou-lhes o direito à informação
de uma pessoa doente capaz e o correspondente direito a decidir sobre os
cuidados a receber. O filho da doente disse: "Ouçam, eu sou advogado, conheço
bem os direitos, mas se disserem o que quer que seja que incomode ou prejudique
a minha Mãe, descobrirão de fonte limpa o que a lei diz.” Antes que a
conversa ficasse mais tensa, o médico de família antecipou-se e assegurou que a
equipa hospitalar nada faria que pusesse a doente em risco.
O Dr. Martins pôs uma nota manuscrita em maiúscula na
capa do processo clínico: “Por indicação da família esta doente não deve
conhecer o seu diagnóstico”. Há uma manifesta diferença de opiniões na
equipa sobre a melhor maneira de lidar com a situação durante o internamento e
o tratamento da D. Guilhermina. Os esforços para evitar falar com a D. Guilhermina
sobre a sua doença estavam a ser muito complicados para os profissionais do
hospital. Vários enfermeiros sentiam que estavam a ser desleais para com a
doente e, como consequência, acabavam por não destinar tanto tempo para estar
junto dela como ela merecia. Outros sentiam-se intimidados pela ameaça de
perseguição judicial se não tivessem em conta as instruções da família.
A enfermeira chefe Beatriz Barros requereu uma Consulta
de Ética para clarificar as questões em aberto e ter orientações sobre como
lidar com esta situação desconfortável.
Transcrição e notas
Mediador bioético: Bom dia a todos. Eu sou o Dr. Ricardo Reis. Sou membro
da Comissão de Bioética e a Enf.ª Beatriz Barros pediu-me para os juntar de
modo a conversarmos um pouco sobre a D. Guilhermina. Pelo que percebi tem
havido algumas diferenças de opinião sobre quanto deve ser dito à D.
Guilhermina sobre a sua situação e por isso penso que seria bom para todos
sentarmo-nos à mesa e dialogar sobre os cuidados a ter com ela. Talvez pudéssemos
fazer uma ronda, para que cada um se apresente, e depois começaríamos.
O mediador identifica o tema que o levou a convocar esta sessão
mas falhou em dar uma explicação clara do seu papel ou sobre o que
participantes podem esperar do processo. Por exemplo, poderia ter dito: “Sou
membro da Comissão de Bioética e sou muitas vezes chamado a ajudar quando há desacordos
sobre um plano de cuidados de um doente. Não faço parte da equipa que trata da
D. Guilhermina. Trabalho neste hospital mas, nesta reunião, estou a atuar como Mediador
Bioético, não decido nada, apenas tentarei ajudar a que cada um possa aceitar
um consenso, uma resolução baseada em princípios, sobre a melhor maneira de
cuidar da D. Guilhermina.”
Neste caso, o mediador identificou a pessoa que lhe pediu
para vir ajudar. Os mediadores bioéticos devem ponderar se isso ajuda ou
prejudica o processo. Nomeadamente, quando a consulta tenha sido solicitada por
alguém com posições relativamente menos influentes na instituição, talvez seja
melhor não avançar com essa informação. Na nossa experiência, a referência a
quem pediu a consulta não deve ser feita por um participante na mediação, mas
essa informação e muitas vezes revelada no início do processo se for um modo de
o clarificar. Poderia talvez ser dito que foi “um membro da equipa de saúde”.
Como referido noutras ocasiões neste livro, esta é uma boa
altura para chamar o doente a participar. O mediador podia portanto iniciar o
debate dizendo: “Todos sabeis que um dos nossos objetivos neste género de
debates e tentar que os doentes participem, mesmo que possam não estar presentes.
Este é um caso particularmente difícil porque, embora a D. Guilhermina
aparentemente seja capaz de participar nas decisões sobre os seus cuidados de saúde,
os seus filhos opõem-se a esse envolvimento. Por conseguinte, trazê-la para
esta discussão seria fácil – bastava que fôssemos para o seu quarto – mas a sua
família, que a conhece e adora mais do que ninguém, apoiada pelo seu médico de confiança,
não gostariam que ela estivesse presente. Permitam- me que peça a família que
nos fale sobre a vossa Mãe. Que tipo de pessoa é? O que é importante para ela?
Como tem sido a sua vida? Não se esqueça que nós somos peritos em medicina mas vocês
são os peritos sobre a vossa Mãe e a vossa família.”
Enf.ª Beatriz: Bem, pedi a sua intervenção porque é muito desagradável
para mim ver que nada dizem a D. Guilhermina sobre a sua situação. Penso que a
gente se sente desajeitada na sua presença porque tem receio de lhe dizer
inadvertidamente qual a sua real situação e qual o estádio em que está a sua doença.
A família pediu-nos para nada lhe dizermos e portanto penso que estamos, de
certo modo, a diminuí-la. Além disso, alguns de nós sentem-se desconfortáveis
porque nos ensinaram que um doente que compreenda os seus problemas médicos necessita
ser informado de tal modo que possa dar o seu consentimento para quaisquer
procedimentos. É por isso que estamos confusos e desconfortáveis.
O mediador precisa de ter em especial conta a escolha de
quem inicia o debate. Neste caso a decisão de escolher a enfermeira, que foi
quem desencadeou o processo de apreciação bioética, resultou. Ela fez uma
declaração cuidadosa das suas preocupações. A escolha de ter a Enf.ª Beatriz a
falar em primeiro lugar podia ter sido vista como um modo de validar o seu
pedido de ajuda e de corroborar o seu enquadramento do problema. Mas começar
com ela também teve o risco de torná-la alvo de atenção dos outros
participantes.
Podia ter sido melhor que o mediador começasse por
afirmar o seu entendimento sobre o problema: “Estamos aqui por que me
pareceu que há algumas diferenças entre a equipa de cuidadores e a família no
que se refere ao que deve ser dito a D. Guilhermina sobre o diagnóstico e o
pessoal está preocupado por nada lhe dizer sobre a sua situação, pelo que estamos
aqui para falar sobre isso e também sobre o que precisamos fazer para lhe
proporcionar os melhores cuidados possíveis. Antes de entrarmos nessas questões,
queria ter a certeza de que estamos todos a par da situação clínica da D.
Guilhermina.” O mediador deveria então pedir a um membro da equipa,
tipicamente a um médico, que fizesse uma apresentação sobre os factos médicos.
Um enfermeiro poderia também dar esta informação, mas a cultura hospitalar dominante
leva-nos habitualmente a preferir um médico como o primeiro a falar destes
factos.
Também aqui, perante um desacordo entre o médico de família
e a chefe de clínica, o mediador tem uma escolha potencialmente difícil. Começar
por aquele privilegia uma relação de forças no hospital e o papel que tem junto
da família. Contudo, num hospital escolar é costume pedir ao chefe de clínica
para relatar o caso e o restante pessoal pode esperar que o mediador comece
desse modo.
Tendo começado pela enfermeira, é tempo de passar a um
dos médicos e saber dos factos, mas não sem antes reconhecer como são
preocupantes e comoventes as afirmações dos filhos da D. Guilhermina. A D.
Guiomar falou sobre ter demorado a trazer ao hospital a D. Guilhermina. E possível
que ela se sinta culpada e receie que ela e o seu irmão não tenham ajudado a
evitar a morte da Mãe. Receia também que conhecer o diagnóstico de cancro
signifique “matar-lhe a alma”.
O mediador deveria ter dito: “A situação parece ser
realmente horrível. A vossa família passou um mau momento. É de facto difícil
passar de novo por tudo isto depois de perderem o vosso Pai por cancro. Também
percebo que desejavam ter sabido desta doença mais cedo e que querem estar
seguros de que quaisquer decisões que se tomem sobre a vossa Mãe sejam as
certas.” Ao introduzir esta mudança no debate, o mediador mostrava que
estava preocupado em que o reconhecimento por parte da filha, relativo a sensação
de que poderia ter-se atrasado em trazer a Mãe ao hospital, pudesse fazê-la
sentir culpada. Uma resposta como “Portanto sente-se culpada por ter
demorado a compreender as queixas da sua Mãe” seria certamente desadequada.
A última parte desta afirmação sugere um juízo de valor sobre o passado. Alem
disso, a palavra culpa provavelmente
produziria um forte recuo. Na nossa experiência é importante fazer duas coisas
quando tratamos de reagir a fortes afirmações de sentimentos: confirmar que são
sentimentos fortes e ajudar as partes dar uma ordenação a mistura de emoções.
Neste caso, a filha está a sentir uma terrível sensação sobre o que serão os
cuidados para a sua Mãe e esta também a voltar a viver a dor da perda do Pai.
Dizer “Compreendo que gostasse de ter trazido a sua Mãe mais cedo” não é
o mesmo que concordar em que ela o devia ter feito.
Guiomar Guimarães: Tanto eu como o meu irmão agradecemos-lhe muito. Conhecemo-lo há muito tempo e sentimos que respeita a maneira de ser da nossa família. É perturbador pensar que as preocupações do pessoal – que afinal não nos conhecem – é sentirem-se desconfortáveis, tenham alguma prioridade sobre as vontades que conhecemos da nossa Mãe há tanto tempo, não nos dando ouvidos. Têm de seguir o que dizemos pois somos nós quem a conhece melhor.
Mediador bioético: Gostaria de fazer mais uma pergunta ao Dr. Martins. A D. Guilhermina está capaz de tomar decisões autonomamente?
O mediador precisa resumir o que o Dr. Martins disse
sobre o sombrio prognóstico da D. Guilhermina. Por vezes este resumo da
apresentação dos factos é um caminho para aumentar a probabilidade de que os
membros da família compreenderem o que foi dito, especialmente se o médico usar
termos técnicos ou eufemismos. Neste caso, os factos são claros e os filhos
parecem bem informados. Contudo, seria útil um resumo para suavizar a conversa
é dar a cada um oportunidade para assimilarem o que foi dito.
O mediador, depois de uma resposta ligeiramente defensiva
(“não sou eu quem decide”) ignora as ameaças com o objetivo de minimizar
o seu impacto e evitar confrontos. Ao não se referir às ameaças incorre no
risco de que outros participantes se sintam inibidos por elas. Poderia ser útil
admitir a força dos sentimentos de Gaspar e encarar as suas ameaças como uma
expressão do seu compromisso com a Mãe. “Posso entender os seus sentimentos enérgicos
quanto ao que acha melhor para a sua Mãe e que use todas as suas habilitações
para lutar por ela. Espero bem que não seja necessário abrir um conflito
desses. Estamos aqui reunidos para tentar chegar a um acordo sobre a melhor
maneira de proceder.” Este modo de enquadrar reconhece os interesses e os
sentimentos subjacentes as ameaças ao mesmo tempo que as neutraliza. Também
permite que outros participantes ouçam esta linguagem agressiva como uma expressão
da sua dor mais do que um ataque a equipa médica.
O mediador podia também ter dito: “Dr. Guimarães, o
senhor é um grande advogado da sua Mãe e defensor do que pensa ser a sua
vontade. Mas, por agora, gostaria que aceitasse uma regra muito simples: eu
garanto-lhe que não deixarei que o afrontem, mas peço-lhe o mesmo da sua parte.
Todos aqui torcemos pela sua Mãe, bem como pelos filhos e pelo seu médico. Mas
estamos a explorar todas as perspetivas da família e dos prestadores de
cuidados e a tentar encontrar uma solução em todos se sintam confortáveis.
Peco-lhe que nos permita isso.”
Antes de recolher mais informações sobre o problema com
esta importante série de perguntas, o mediador precisa saber responder ao
expressivo depoimento da filha. Dizer simplesmente “Compreendo” não é
suficiente. O mediador precisa de dizer o que compreende, isto é, o que
aprendeu com as afirmações da filha sobre o modo como a família lida com os
problemas médicos e sobre os receios da sua Mãe. Quando Guiomar fala sobre a
sua Mãe “ser intimidada, ser deprimida, sentir-se abandonada e cair na desgraça
terrível que possa acontecer”, parece provável que essas palavras também
descrevam o que sente a filha. Estes sentimentos também precisam ser
reconhecidos antes de perguntar à equipa sobre as suas reações face a D.
Guilhermina.
O mediador devia também aproveitar para dizer: “Se bem
percebi a vossa família partilha de uma cultura particular que influencia muito
o modo como as decisões são tomadas e podemos dizer que o pessoal de saúde é também
parte de uma cultura, estruturada na bioética e nas leis nacionais, que
considera que o doente que seja capaz de assumir as suas decisões em matéria de
saúde tem o direito de conhecer as opções e de escolher por si mesmo como
decidir. Este debate é sobre como conciliar estas duas culturas. Portanto,
permitam que todos mostrem abertura para se ouvirem mutuamente antes que
tentemos decidir algo.”
Dependendo da etnia da família, pode haver outros fatores
em presença. As regras que prevalecem no que respeita a decisões sobre cuidados
de saúde resultam das leis nacionais e dos conceitos de liberdade, dignidade e
autodeterminação que lhes subjazem. Muitas culturas não têm estes conceitos. Em
muitas culturas asiáticas, por exemplo, assume-se que a doença e a morte não
devem ser mencionadas ao doente. Em algumas culturas indígenas da América,
acredita-se que falar sobre a morte acelera a sua chegada e é uma norma
comportamental desadequada. Muitos destes padrões familiares e culturais surgem
no decurso de processos de mediação.
Eis um bom exemplo de uma pergunta que clarifica.
Dr.ª Carolina Costa: Quando passo visita ou a vejo, pergunta-me sempre, “Qual
foi o resultado? O que mostra o exame?” Faz perguntas sobre o que penso. E
muito difícil responder-lhe parcialmente e não lhe dizer tudo, já que é alguém
capaz de tomar as suas decisões. Está muito atenta. Não está inconsciente nem
desatenta ao que se passa. Faz perguntas inteligentes sobre os resultados dos
exames. Se está a melhorar ou não está a melhorar, por que faz este exame, por
que não fazemos outros, quais as implicações, o que isso significa e porquê?
Por isso não dizer, não lhe explicar o quadro completo sobre o que estamos a
fazer e esconder-lhe coisas – não me parece que seja o que devemos fazer
enquanto médicos, designadamente estando ela capaz.
Vemos que há dois retratos diferentes da D. Guilhermina –
um em que ela é assustadiça e não quer saber o que passa consigo e outro em que
ela está cheia de dúvidas. O mediador precisa de admitir estas duas versões. “Quando
vos ouço, Dr. Gaspar Guimarães, D. Guiomar, Dr. Martins, e depois ouço a Dr.ª
Carolina e a Enf.ª Beatriz, fico confuso – é como se estivessem a falar de
pessoas diferentes. Gaspar e Guiomar, vocês descreveram a vossa Mãe como
querendo renunciar ao conhecimento e as decisões relativas aos seus cuidados,
deixando isso para ambos, e não querendo ser informada. Dr.ª Carolina e Enf.ª
Beatriz, vocês descreveram alguém que faz perguntas sobre os seus cuidados e a
sua situação. Gostava de saber o que pensam sobre estas diferenças.” Uma
afirmação como esta podia provocar uma resposta de qualquer dos participantes,
como por exemplo, que a D. Guilhermina está a tentar proteger os seus filhos,
evitando falar sobre o cancro ou que ela sente que eles não se sentem confortáveis
usando a palavra cancro, ou ainda que o
pessoal está sub-repticiamente a fazer com que ela pense que deve fazer
perguntas.
Seria útil que o mediador aqui avançasse e resumisse: “Então,
Dr. Martins, só para eu ver se estou certo, o cancro da D. Guilhermina não é curável
e o seu tratamento – da doença e das possíveis dores que venha a ter – não será
influenciado conforme se seja ou não dito que tem um cancro, é assim?” Então
o mediador podia ter perguntado à Enf.ª Beatriz e à Dr.ª Carolina se elas
concordavam em que o tratamento não dependia de a D. Guilhermina saber o seu diagnóstico.
Tal resumo e subsequentes perguntas podiam ter impedido a não muito produtiva
troca de palavras que se seguiu.
O mediador faz um bom resumo dos factos médicos e tentar
aperceber-se das tradições familiares sobre o modo de encarar as doenças.
Recorda que todos estão igualmente interessados no bem da D. Guilhermina. Havia
ainda uma parte para o mediador trabalhar. Os filhos atiraram-se ao uso pela
enfermeira da palavra impressões e
reagiram a isso. Seria útil que o mediador sublinhasse que o que a Enf.ª
Beatriz estava a querer dizer é que admitia ter os seus valores pessoais – os
seus preconceitos – mas estava também estava a tentar pô-los de lado e a
respeitar os valores da família. Poderia também fazer notar que a Enf.ª Beatriz
estava também a mostrar como era difícil compatibilizar a abordagem tão
protetora como amorosa de Guiomar e Gaspar com as respostas que queriam dar às
perguntas da sua Mãe. Poderia ajudar a Enf.ª Beatriz a completar o seu
pensamento dizendo o que ela quase disse: “Dr. Gaspar, D. Guiomar, vi que reagiram
ao que disse a Enf.ª Beatriz sobre as suas impressões ou preconceitos. Posso
estar enganado, mas a minha impressão é que a Enf.ª Beatriz está a tentar
respeitar as vossas vontades e as vossas tradições familiares. E, Enf.ª Beatriz,
corrija-me se estou a ver mal, penso que ia dizer que, na sua experiência, as
pessoas muitas vezes querem ter uma oportunidade para se despedir”.
Eis um novo caminho que, nesta altura, o mediador poderia
seguir. Poderia dizer que há estudos sérios que demonstram que os doentes que
estão a morrer se apercebem disso e com demasiada facilidade se isolam nos seus
medos. Esses estudos mostram um nível acrescido de conforto quando a informação
sobre o diagnóstico e o prognóstico e partilhada e serve de base as conversas.
Certamente que não é o caso da D. Guilhermina mas é muitas vezes uma perspetiva
a considerar. É bem possível que a D. Guilhermina esteja a proteger os seus
filhos que estão ocupados a protegê-la – seria um mal-entendido circular pouco benéfico
em cuidados de fim de vida.
Gaspar Guimarães: A nossa Mãe foi sempre uma grande mãe, tomou sempre conta muito bem de nós e é como se precisássemos de retribuir esses cuidados que teve connosco, sabe, ela é o género de pessoa que se amedronta facilmente, e bastante ansiosa, de tal modo que durante toda a vida era o Pai que tomava conta de tudo. Ela é muito viva, ativa e lúcida mas não lida muito bem com o stresse. E por isso que precisamos efetivamente de assumir o stresse para nós e deixar que desfrute a vida de modo a ser o que é, de modo que não seja a equipa médica a liquidá-la antes do tempo.
O mediador faz uma pergunta útil mas poderia ter ajudado
se levantasse antes o tema da dor. Como Guiomar referiu a morte dolorosa do pai
parece que a dor é uma grande causa para os receios tanto da D. Guilhermina
como dos seus filhos. Eles (e ela) precisam de ter a certeza de que os médicos já
conseguem controlar a dor muito melhor. O mediador, que chama o assunto mais
tarde, poderia já dizer: “O controlo da dor é uma questão concreta neste
caso e estou certo de que o Dr. Martins nos pode dizer que a equipa de cuidados
paliativos tem feito grandes progressos nos últimos anos com intervenções que
tranquilizam o doente. Seja o que for que aconteça a D. Guilhermina, podemos
garantir que ela será poupada à dor.”
Enf.ª Beatriz: Tudo o que pudermos fazer para ajudá-la nos seus medos e ansiedade. Há alguma coisa que poderíamos fazer para atenuar algum destes aspetos?
O mediador, fundamentando-se no reconhecimento da
enfermeira de que um dos maiores receios dos filhos fosse que a Mãe estaria
condenada à mesma morte dolorosa que o seu Pai, pede ao Dr. Martins que
confirme. O mediador proporciona então uma importante reafirmação da
possibilidade de se controlarem as dores da D. Guilhermina e os seus sofrimentos.
Contudo não se referiu a um outro problema que muito preocupa o pessoal, que é
sentirem que estão a mentir e a menosprezar as suas obrigações éticas e deveres
legais, não revelando a doente à sua situação.
O mediador percebeu que a doente sempre delegou nos seus
filhos. Talvez pudesse sugerir que os filhos e o pessoal conversassem com a
doente de modo que a filha ou o filho perguntassem: “Mãe, acha bem sermos
nos a resolver as coisas que estão a acontecer, para o seu bem e o seu
conforto? É o que temos feito quando falamos com o Dr. Martins. Podemos
continuar assim?” Esta clara delegação de poderes e autonomia sossegaria o
pessoal.
O mediador apercebe-se de que o grupo se aproxima de um
acordo mas há pormenores que precisam ser acertados antes do fim da sessão. É
tentador saltar passos, especialmente depois de uma longa e tensa conversa. É
altura em que seria útil fazer um resumo e reconhecer que os participantes
fizeram progressos significativos antes de testar a proposta do Dr. Martins: “Então,
penso que estamos a caminhar para uma solução aceitável por todos. Dr.ª
Carolina e Enf.ª Beatriz, segundo parece, depois de ouvirem o Dr. Guimarães e a
D. Guiomar e de ouvirem o Dr. Martins, podem trabalhar sem revelar a D.
Guilhermina o diagnóstico de cancro. Quero agradecer-lhes por isso. Dr.
Martins, o que mais o preocupa a si e aos filhos da D. Guilhermina é que,
quando chegar a altura – embora pensem que seja pouco provável – em que a D.
Guilhermina pergunte pelo diagnóstico, possam estar presentes para a apoiar.”
Resumir deste modo favorece as possibilidades de que a Dr.ª Carolina e a Enf.ª
Beatriz compreendam e transmitam ao resto da equipa a importância de não forçar
a D. Guilhermina enfrentar a palavra cancro sem a presença
do seu sistema de apoio.
Dr.ª Carolina: Podemos fazer uma nota sobre isso e pô-la no processo clínico,
como você fez ao escrever “não revelar o diagnóstico à doente” na porta
do quarto.
Há aqui alguma tendência para ver ironia nesta fala da Dr.ª
Carolina. Poderia merecer uma reação do mediador: “Bem, pode não ser preciso
um anúncio publico. Isto é uma matéria de foro privado e não precisa sem
anunciada aos sete ventos. Sinto que, com este comentário, poderemos precisar
de dar mais um passo de modo a conciliar este caso com a regra normal que tive
ocasião de formular antes – a de que os doentes capazes podem decidir. Que tal
se concordarmos em que, quando a D. Guilhermina fizer perguntas, se responda
que o Dr. Martins está a reunir todos os exames e lhe falará disso a breve
prazo? Assim, Dr. Martins, o senhor pode ajuizar o nível das perguntas, decidir
se fala à família e preparar o nível de resposta que acha necessário.” Este
resumo põe a responsabilidade e a autoridade nas mãos do médico de família, que
é a figura central da relação médico-doente e o que tem a experiência de cuidar
da doente – e uma boa parte das suas funções é partilhar e interpretar informação.
De novo, foi uma boa sequência ao que aconteceu agora.
Teria sido ainda melhor levantar o assunto da consulta de cuidados paliativos
com uma pergunta (“Acham que podíamos falar um pouco mais sobre chamar os
cuidados paliativos?”) em vez de como uma recomendação (“Julgo que podíamos
ainda falar…”).
O mediador poderia finalmente dizer qualquer coisa que
indicasse que este era um caso pouco vulgar e como o pessoal estava a seguir os
princípios éticos gerais: “Gostaria de fazer um comentário final ao debate.
Estou satisfeito com as decisões que tomamos, mas todos nós, em cuidados de saúde,
sabemos que foi uma conclusão pouco frequente. Concordo em que faz todo o
sentido neste debate que o que interessa são os cuidados com a D. Guilhermina.
Contudo, isto está contra os direitos legais da D. Guilhermina e é mesmo uma
exceção às regras que seguimos no ensino do pessoal da saúde. Por isso quero
assegurar aos profissionais que os seus instintos e formação eram os melhores e
que este caso é um desvio dos nossos procedimentos habituais.”
“Finalmente, está certo de que o Dr. Martins pergunte
a D. Guilhermina se ela aceita que seja ele a pedir os exames e lhe explique
tudo sobre os exames? Está certo de que os seus filhos falem com ele sobre os
cuidados que lhe dizem respeito?” (Seria surpreendente que este mediador
partisse para a discussão de alguns temas ligeiramente diferentes.)
Debate adicional Geralmente, num
caso como este em que há desacordos dentro da equipa de saúde, o mediador bioético
reúne com o pessoal primeiro (como referido no Capítulo 4) para ver se as suas diferenças
podem ser resolvidas e, se não forem, para tentar que concordem sobre como
apresentar os seus desentendimentos perante a família.
Este caso mostra bem a tensão entre o princípio bioético
da autonomia e as normas sobre a decisão de certas famílias no que se refere a
assuntos de saúde sérios. Muitas pessoas acham difícil imaginar como é que alguém,
não conhecendo a sua própria doença, poderá sofrer menos, numa época em que
toda a informação médica mais sofisticada está ao dispor do clique num
computador. Respeitando o princípio da autonomia, é também importante
reconhecer que, em muitas culturas, são as famílias que assumem, partilhando ou
controlando as decisões sobre problemas de saúde importantes dos seus entes
queridos. Se a doente dispõe da capacidade para mudar de ideias e de pedir
informações, a decisão de delegar a sua autonomia é eticamente valida.
O problema neste caso é que a D. Guilhermina nunca
delegou explicitamente esta responsabilidade – é com isso que o mediador e os
membros do pessoal se estão a debater. Uma resolução baseada em princípios
exige que o consenso da mediação assente em limites legais e regulamentares
conhecidos. É perfeitamente aceitável que um doente delegue o poder de decidir,
optando assim por uma autonomia apoiada ou diminuída, mas esta delegação só
deve ser ter efeito se, fora das regras habituais, for um abrigo seguro do
processo de decisão. Neste caso não havia uma delegação tão explicita assim.