01 maio 2005

Corino Andrade (1906-2005), um médico progressista

Quando estávamos nos preparativos finais do caderno sobre epilepsia que a Revista Portuguesa de Clínica Geral nos pedira, soube-se do falecimento do Dr. Corino Andrade e surgiu o convite para redigir, em cima da hora, um breve depoimento/testemunho sobre esse grande médico e a sua vida.

Este registo para «memória futura» sobre o Dr. Corino fundamenta-se nos idos de 1977 quando participei com ele e com Paula Coutinho numa viagem aos Açores para, por incumbência do Diretor Geral de Saúde Dr. Arnaldo Sampaio, se proceder ao levantamento das famílias afetadas pela novel doença de Machado-Joseph, descrita na América.

O Dr. Corino estava já aposentado da sua longa carreira hospitalar por ter atingido os 70 anos no ano anterior mas estava muito ativo e altamente envolvido na instalação e consolidação de uma escola médica de novo tipo no Porto – o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar crescia com a sua marca pessoal.

No Serviço de Neurologia do Hospital de Santo António, onde o conhecera como diretor, o Dr. Corino era um chefe respeitado (os mais velhos referiam-se a ele como «o patrão» – fosse dito à francesa ou à Porto). A sua fama de líder não resultava apenas de ser aparentemente austero ou mesmo severo mas, sobretudo, da estranha sensação que dele irradiava: parecia sempre saber tudo e ter sempre razão!

Dele se diz que descobriu uma doença nova mas essa é uma visão distorcida da realidade. A doença dos pezinhos, como todos os médicos sabem ou sabiam, «sempre» existiu (pelo menos desde a mutação genética inicial). O que Corino Andrade fez foi, simplesmente, reconhecê-la e estudá-la. Com metodologia científica da mais simples a que juntou os conhecimentos de neuropatologia microscópica que aprendera na sua estadia na França e na Alemanha nos anos 30, começou a estudar os nervos periféricos e definiu a paramiloidose amiloidótica familiar. Conseguiu assim estabelecer não só as bases que permitiram explicar a fisiopatologia e a genealogia desta doença como levou à criação de linhas de investigação que ainda hoje dão frutos.

Dele se diz que foi um dos fundadores da Neurologia em Portugal mas essa é uma visão redutora da realidade. Efetivamente, quando em 1938 decidiu radicar-se no Porto, a Neurologia não tinha ainda a sua autonomia como especialidade médica. É no decorrer do século XX que surgem os primeiros serviços dedicados às doenças orgânicas do sistema nervoso no seio dos hospitais gerais e deixam de estar anexos aos manicómios do século anterior. Mas o Dr. Corino não se satisfez em juntar colaboradores neurologistas. Graças ao seu empreendedorismo organizativo, atraiu para o Hospital as pessoas de que precisava para as outras vertentes de assistência aos doentes neurológicos. Criou as primeiras unidades de cuidados intensivos para traumatizados cranioencefálicos e de reanimação respiratória para as lesões vertebromedulares, facilitou o crescimento dos meios complementares de diagnóstico de que necessitava – na imagem (neurorradiologia) como na função (neurofisiologia), envolveu-se diretamente nos centros de estudos bioquímicos e neuropatológicos, abriu as portas à neurocirurgia. Em todas estas áreas estimulou estadias no estrangeiro que pôs a render nos respetivos regressos com elevada produtividade.

Com todo este passado o jovem interno que o acompanhou nessa viagem às ilhas de S. Miguel, Terceira, Graciosa e Flores, cumprindo as tarefas de motorista, porta-bagagens, tesoureiro e anotador das observações clínicas e das árvores genealógicas, sentia-se algo intimidado com a presença do Patrão. Durante aquelas três semanas, pude então aperceber-me da sua vastíssima cultura, sentir a sua simpatia protetora e reconhecer aquela personalidade que, a todos os títulos, cativava quem melhor o conhecia. Talvez influenciado pelos ventos frescos da jovem democracia portuguesa da época, sentia-me fascinado por conhecer, com alguma intimidade, um vulto da resistência aos anos cinzentos da ditadura. A verdade é que essa impressão se mantém passadas quase três décadas.

Estava perante alguém que resistira às adversidades com uma pertinácia ímpar, sem concessões facilitistas. Corino Andrade era a personificação mais clara e evidente do médico progressista. Poucos, como ele, terão contribuído tanto para o progresso do seu país, seja do ponto de vista científico como do social. No final da sua vida quase centenária, recordar o modo como desempenhou o seu papel de médico e de cidadão é um dever inultrapassável. A sua figura perdurará na nossa memória como o exemplo de como se pode transformar este concreto e admirável mundo novo.

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