01 maio 2005

A utilidade do EEG


[Adaptação em modelo FAQ («frequently asked questions») de palestra feita no «I Encontro de Epilepsia em Matosinhos» Hospital Pedro Hispano, em 18 de Fevereiro de 2005]

Na Prática Clínica,  o Eletroencefalograma (EEG) é muito ou pouco útil?

Como todos os exames complementares de diagnóstico, há situações em que o EEG é muito útil e outras em que pouco ajuda. O EEG é um exame que foi inventado em 1924 por Hans Berger (1873-1941)1 e desde então tem havido enormes desenvolvimentos tecnológicos na área eletrónica que têm revolucionado a capacidade de analisar a atividade elétrica do cérebro2. As indicações quotidianas deste estudo foram largamente ultrapassadas pelas suas potencialidades no campo da investigação.

O EEG, ao medir a atividade elétrica do cérebro, serve para avaliar as suas funções?

Infelizmente o EEG não consegue dar informações sobre a maior parte das funções cerebrais (pensamento, memória, linguagem, etc.) mas somente registar diferenças de potencial elétrico entre pontos do escalpe. Tem por isso muitas limitações. Desde logo espaciais pois, em condições habituais, não se coloca senão um número limitado de elétrodos e, por outro lado, por mais elétrodos que se coloquem não se consegue ter elétrodos suficientemente próximo das faces internas e inferiores dos hemisférios cerebrais. Acrescem limitações temporais já que as medições que se explicitam em gráficos de curvas sinusoidais com amplitudes e frequências variáveis apenas reproduzem dados que ocorrem durante o registo, deixando-nos sem informação sobre acontecimentos que possam acontecer noutras épocas. Existem também limitações técnicas, pois entre o cérebro e a pele do couro cabeludo interpõem-se várias camadas de tecidos que prejudicam a condução elétrica. Finalmente podemos considerar as limitações de significado – muito ainda está para descobrir para que possamos saber tudo o que corresponde efetivamente a uma determinada variação de sinal elétrico.

Então o EEG é um exame de fraca utilidade?

Se na prática clínica for seguido o princípio geral da medicina que é começar a abordagem do doente pela anamnese e levá-la até às suas últimas consequências, então o recurso a este como a outros exames complementares revela-se útil na medida em que conheçamos a sua sensibilidade e a sua especificidade. O EEG é muito útil na confirmação de diagnósticos clínicos de algumas epilepsias. É no manejo clínico das epilepsias que este exame conhece níveis de especificidade maiores, chegando a 78 ou 98% conforme os estudos. No entanto, como se pode depreender do que já foi dito acima, a sensibilidade do EEG é fraca, situando-se entre 25 e 50%3,4. Isto significa que tem poucos falsos positivos, ou seja, que quando se encontram certos elementos gráficos sugestivos de certos síndromos epiléticos a probabilidade de confirmar o diagnóstico é alta mas que, por outro lado, tem muitos falsos negativos, ou seja, quando um exame não revela anomalias isso não pode ser argumento para anular um diagnóstico baseado noutros elementos, em particular, na anamnese.

Um doente com epilepsia pode ter EEG sempre normais?

Sim. Embora seja incorreto usar apalavra normal neste contexto. O que se pode dizer é que um determinado EEG realizado numa determinada hora em determinadas condições não revelou anomalias gráficas que confirmem a hipótese diagnóstica.

O que significa um relatório de EEG que revela uma «hiperexcitabilidade cerebral generalizada»?

Esse conceito está hoje ultrapassado e deve ser evitado. A regularidade ou irregularidade elétrica de um exame tem, só por si, pouco significado específico. Há demasiadas influências externas, para além das limitações referidas acima, que impedem atribuir valor diagnóstico a variações dispersas de amplitude e frequência do sinal registado. Citam-se, entre essas influências, a glicemia, o equilíbrio hormonal, a proximidade maior ou menor do sono prévio, a temperatura, as medicações em uso e os seus níveis de circulação, o grau de atenção ou relaxamento mental durante o exame, etc. Não se pode também esquecer que os artefactos técnicos podem simular anomalias gráficas e por vezes são difíceis de eliminar. Finalmente, deve referir-se que em crianças e adolescentes os padrões de normalidade são diferentes do adulto, como, por exemplo, a resposta à ativação provocada pela alcalose respiratória forçada na hiperpneia solicitada durante o exame5.

Quais são as formas de epilepsia em que o EEG é específico?

Há várias. A mais vulgar é a epilepsia de ausências da infância que se manifesta por interrupções momentâneas (poucos segundos de duração) da consciência, por vezes com pestanejo ou automatismos gestuais breves, sem queda, com recuperação imediata, repetindo-se várias vezes ao dia. Este síndromo é muito facilmente diagnosticado em crianças na idade escolar (ciclo básico ou primeiros anos do secundário) e o EEG é típico – em cada ausência, surgem complexos de ponta-onda, a 3Hz, síncronos, simétricos e generalizados a todos os elétrodos colocados (Figura 1).Há também um síndromo bastante frequente que ocorre em crianças um pouco mais velhas, podendo iniciar-se antes da puberdade, em que ocorrem crises durante o sono. São crises de início focal (a maior parte das vezes com contrações de meia face ou sensações estranhas na boca acompanhadas de dificuldade em falar) seguindo-se, mas não sempre, uma convulsão generalizada. Um quadro destes configura o síndromo de epilepsia benigna da criança com paroxismos centro-temporais onde se detetam pontas nas derivações centrais ou temporais (Figura 2) num EEG realizado durante o sono. Estes elementos gráficos surgem por vezes mesmo com a criança acordada, assim como há casos em que não se consegue registá-los mas que cursam como os outros para uma cura espontânea ao fim de poucos meses ou anos6. Há outros síndromos em que os traçados de EEG muito ajudam ao diagnóstico. É o caso do Síndromo de West que ocorre em bebés com menos de um ano, com crises (espasmos infantis) em que a criança se contrai em flexão, em salvas, e se verifica uma paragem ou retrocesso do desenvolvimento psicomotor (deixa de sorrir ou de se sentar, por exemplo). O EEG que neste caso é considerado urgente apresenta um padrão de «tempestade» e falta de sincronização (hipsarritmia) que é típico. Também, sobretudo no adulto, se podem encontrar focos de ondas lentas persistentes que sugerem, de forma mais ou menos significativa, que uma região sofreu uma lesão e está disfuncional. Todavia, o EEG não é o exame indicado para confirmar lesões e muito menos para identificar a sua origem. Hoje, os exames de imagem cumprem essa tarefa com elevados graus de especificidade e sensibilidade. É frequente sermos «surpreendidos» por um EEG «normal» sobre um grande glioma.

A fotossensibilidade, enquanto perturbação que explica crises epiléticas desencadeadas pelos televisores e monitores de computadores, é detetada pelo EEG?

Algumas pessoas são sensíveis a estímulos luminosos repetidos, apresentando facilmente, perante certos «flashes», convulsões generalizadas, precedidas ou não de abalos mioclónicos, e de facto esse fenómeno pode ser detetado no EEG. Havendo casos de fotossensibilidade extrema que obrigam a medicação permanente, outros há em que basta tomar algumas precauções para evitar a repetição de crises: ver TV ou usar computadores não muito perto, não muito tempo, em ambiente não muito escuro e, sempre que possível, preferir monitores de 100 Hz ou LCD («liquid cristal display»). Seja como for, de novo a clínica, mais do que o EEG, leva a recomendar que, por melhores que sejam os monitores e por mais precauções que se tome, deve ser prestada a maior atenção às imagens visionadas – padrões de luminosidade forte em ciclos alternados – pelas pessoas fotossensíveis7. Por tal razão, a estimulação luminosa intermitente (ELI) é uma prova de ativação rotineira num EEG.

O EEG é útil à decisão quando se pretende descontinuar a medicação depois de obtido o controlo das crises?

O valor prognóstico do EEG é controverso. Quando persistem anomalias gráficas é difícil assumir a decisão de interrupção de medicamentos mas pode haver situações em que isso é possível. No entanto, está suficientemente comprovado que os fatores decisivos são essencialmente clínicos. A idade do início das crises, a existência ou não de anomalias estruturais do sistema nervoso central, o tipo de crises ou o síndromo epilético, a facilidade com que se obteve o controlo – tudo pesa, juntamente com os resultados do EEG e o tempo decorrido desde que o doente está sem crises8.

O EEG tem outras aplicações na epilepsia?

O EEG é da maior utilidade para o refinamento de localizações quando se seleciona um doente para a cirurgia, seja através de elétrodos no escalpe, seja através de elétrodos corticais colocados junto ao cérebro antes da intervenção cirúrgica propriamente dita. Além disso, têm sido desenvolvidas técnicas digitais de mapeamento e de reconstrução espacial, por vezes integrando dados de EEG e de imagem que são muito eficazes na identificação de focos epileptogénicos. Também a conjugação do EEG coma gravação videográfica do doente (vídeo-EEG) se revela da maior utilidade para estabelecer conexão entre as alterações elétricas do encéfalo e as manifestações clínicas, permitindo frequentemente obter bases sólidas para distinguir crises epiléticas de crises não epiléticas (sejam elas psicogénicas ou devidas a perturbações orgânicas de outras origens).

O EEG só serve para apurar o diagnóstico clínico das epilepsias?

É também utilizado com eficácia como complemento de diagnóstico na Doença de Creutzfeldt-Jakob, assim como na variante humana da encefalopatia espongiforme bovina visto que, nas doenças priónicas, existem sintomas (mioclonias) que são explicados por atividades elétricas periódicas com tradução no EEG9. A deteção de focos de atividade paroxística no lobo temporal pode pôr na pista de uma encefalite herpética se as manifestações clínicas forem consentâneas com essa hipótese diagnóstica. O EEG é igualmente útil no estudo do sono, em particular mas hipersónias diurnas e, associado ao registo de outros sinais (movimentos, ECG, oximetria, fluxos ventilatórios, etc.) funciona como um auxiliar precioso na caracterização dos quadros de apneias do sono e no diagnóstico de outras perturbações intrínsecas do sono, como por exemplo na narcolepsia.

Quais são as aplicações do EEG no campo da investigação científica?

O EEG é utilizado sobretudo na investigação do sono e das influências de novos fármacos tanto no sono como na eletrogénese. Existem também estudos e já algumas aplicações sobre o uso de métodos quantitativos para monitorização eletroencefalográfica de comas10 e de intervenções cirúrgicas com circulação extracorporal. Também os estudos de demências têm sido direcionados para avaliações quantitativas seriadas11,12.

O EEG é um exame que tem utilidade no rastreio de doenças quando há sintomas de provável compromisso cerebral?

O papel do EEG nesse campo é muito limitado. O recorrer sistematicamente a um exame como este a propósito decefaleias13,14, dificuldades escolares ou atrasos intelectuais15, depressões ou ansiedade, alterações de comportamento16, défices cognitivos ou motores, sequelas de traumatismos cranianos17 ou de infeções meníngeas é certamente uma má prática se não houver outras razões associadas. Uma perda de conhecimento não testemunhada e não explicada pode ser uma boa razão para pedir um EEG, conquanto que se esteja ciente de que um traçado normal nada acrescentará às conclusões. Nunca será demais chamar, por outro lado, a atenção para o conhecido «mandamento» da clínica: «não tratarás exames mas apenas doentes». O primado da anamnese, de novo, é a chave da questão.

Referências bibliográficos
1. Gerhard UJ, Schonberg A, Blanz B. “If Berger had survived the second world war – he certainly would have been a candidate for the Nobel Prize”. Hans Berger and the legend of the Nobel Prize]. Fortschr Neurol Psychiatr 2005Mar; 73(3): 156-60.
2. Niedermeyer E, Lopes da Silva F. Electroencephalography: Basic principles, clinical applications, and related fields. 3rd ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1993.
3. Nunes de Oliveira SN, Rosado P. Electroencefalograma interictal – sensibilidade e especificidade no diagnóstico de epilepsia. Acta Med Port 2004; 17: 465-470.
4. Clinical guidelines and evidence review for the epilepsies: diagnosis and management of the epilepsies in adults and children in primary and secondary care. Disponível em URL:http://www.nice.org.uk/pdf/CG020fullguide-line.pdf
5. Almeida R, Alves D, Guimarães J. Efeito da hiperpneia em adolescentes saudáveis. Boletim da Liga Portuguesa contra a Epilepsia,1986 (Supl. 2).
6. Shorvon S, Walker M. Understanding Epilepsy. London: British Medical Association;2004.
7. Harding GFA, Takahashi T. Regulations: What next? Epilepsia 2004; 45 Suppl 1: 46-7.
8. Medical Research Council Antiepileptic Drug Withdrawal Study Group. Prognostic index for recurrence of seizures after remission of epilepsy. BMJ 1993 May 22; 306(6889):1374-8.
9. Steinhoff BJ, Zerr I, Glatting M, Schulz-Schaeffer W, Poser S, Kretzschmar HA. Diagnostic value of periodic complexes in Creutzfeldt-Jakob disease. Ann Neurol 2004 Nov;56(5): 702-8.
10. Scheuer ML. Continuous EEG monitoring in the intensive care unit. Epilepsia 2002;43 Suppl 3: 114-27.
11. Coutin-Churchman P, Anez Y, Uzcategui M, Alvarez L, Vergara F, Mendez L, et al. Quantitative spectral analysis of EEG in psychiatry revisited. Clin Neurophysiol. 2003 Dec;114(12):2294-306.
12. Hughes JR, John ER. Conventional and quantitative electroencephalography in psychiatry. J Neuropsychiatry Clin Neurosci 1999 Spring; 11(2): 190-208.
13. Aguggia M. Neurophysiological tests in primary headaches. Neurol Sci 2004 Oct; 25Suppl 3: S203-5.
14. Lewis DW, Ashwal S, Dahl G, Dorbad D, Hirtz D, Prensky A, et al. Practice parameter: evaluation of children and adolescents with recurrent headaches. Neurology 2002 Aug 27;59(4): 490-8.
15. Aydin K, Okuyaz C, Serdaroglu A, Gucuyener K. Utility of EEG in the evaluation of common neurologic conditions in children. J Child Neurol 2003 Jun; 18(6): 394-6.
16. Gueguen B, Raynaud P, Guedj MJ. Indications de l’EEG dans les confusions mentales du comportement. Neurophysiol Clin 1998 May; 28(2): 134-43.
17. Korinthenberg R, Schreck J, Weser J, Lehmkuhl G. Post-traumatic syndrome after minor head injury cannot be predicted by neurological investigations. Brain Dev 2004 Mar;26(2): 113-7.