Quando estávamos nos preparativos finais do caderno sobre epilepsia
que a Revista Portuguesa de Clínica Geral nos pedira, soube-se
do falecimento do Dr. Corino Andrade e surgiu o convite para redigir, em cima
da hora, um breve depoimento/testemunho sobre esse grande médico e a sua
vida.
Este registo para «memória futura» sobre o Dr. Corino
fundamenta-se nos idos de 1977 quando participei com ele e
com Paula Coutinho numa viagem aos Açores para, por incumbência do Diretor
Geral de Saúde Dr. Arnaldo Sampaio, se proceder ao
levantamento das famílias afetadas pela novel doença de Machado-Joseph,
descrita na América.
O Dr. Corino estava já aposentado da sua longa carreira
hospitalar por ter atingido os 70 anos no ano anterior mas estava
muito ativo e altamente envolvido na instalação e consolidação de uma
escola médica de novo tipo no Porto – o Instituto de Ciências Biomédicas Abel
Salazar crescia com a sua marca pessoal.
No Serviço de Neurologia do Hospital de Santo António, onde o
conhecera como diretor, o Dr. Corino era um chefe
respeitado (os mais velhos referiam-se a ele como «o patrão» – fosse
dito à francesa ou à Porto). A sua fama de líder não resultava apenas de ser aparentemente austero ou mesmo
severo mas, sobretudo, da estranha sensação que dele irradiava:
parecia sempre saber tudo e ter sempre razão!
Dele se diz que descobriu uma doença nova mas essa
é uma visão distorcida da realidade. A doença dos pezinhos, como
todos os médicos sabem ou sabiam, «sempre» existiu (pelo menos desde a mutação
genética inicial). O que Corino Andrade fez foi,
simplesmente, reconhecê-la e estudá-la. Com metodologia científica da mais
simples a que juntou os conhecimentos de neuropatologia microscópica que
aprendera na sua estadia na França e na Alemanha nos anos 30, começou
a estudar os nervos periféricos e definiu a paramiloidose amiloidótica
familiar. Conseguiu assim estabelecer não só as bases que
permitiram explicar a fisiopatologia e a genealogia desta doença como levou à
criação de linhas de investigação que ainda hoje dão frutos.
Dele se diz que foi um dos fundadores da Neurologia em Portugal mas essa é uma visão
redutora da realidade. Efetivamente, quando em 1938 decidiu
radicar-se no Porto, a Neurologia não tinha ainda a sua autonomia como
especialidade médica. É no decorrer do século XX que surgem os primeiros
serviços dedicados às doenças orgânicas do sistema nervoso no
seio dos hospitais gerais e deixam de estar anexos aos manicómios do
século anterior. Mas o Dr. Corino não se satisfez em juntar colaboradores
neurologistas. Graças ao seu empreendedorismo organizativo, atraiu
para o Hospital as pessoas de que precisava para as outras vertentes de
assistência aos doentes neurológicos. Criou as primeiras
unidades de cuidados intensivos para traumatizados cranioencefálicos e de
reanimação respiratória para as lesões vertebromedulares, facilitou o
crescimento dos meios complementares de diagnóstico de que
necessitava – na imagem (neurorradiologia) como na função (neurofisiologia),
envolveu-se diretamente nos centros de estudos bioquímicos e neuropatológicos,
abriu as portas à
neurocirurgia. Em todas estas áreas estimulou estadias no estrangeiro que pôs a
render nos respetivos regressos com elevada produtividade.
Com todo este passado o jovem interno que o acompanhou
nessa viagem às ilhas de S.
Miguel, Terceira, Graciosa e Flores, cumprindo as tarefas de motorista,
porta-bagagens, tesoureiro e anotador das observações clínicas e
das árvores genealógicas, sentia-se algo intimidado com a
presença do Patrão. Durante aquelas três semanas, pude então aperceber-me da
sua vastíssima cultura, sentir a sua simpatia protetora e
reconhecer aquela personalidade que, a todos os títulos, cativava quem melhor o
conhecia. Talvez influenciado pelos
ventos frescos da jovem
democracia portuguesa da época, sentia-me fascinado por conhecer, com alguma
intimidade, um vulto da resistência aos anos cinzentos da
ditadura. A verdade é que essa impressão se mantém passadas quase três décadas.
Estava perante alguém que resistira às adversidades com uma
pertinácia ímpar, sem concessões facilitistas. Corino Andrade era a
personificação mais clara e evidente do médico progressista. Poucos,
como ele, terão contribuído tanto para o progresso do seu país, seja do
ponto de vista científico como do social. No final da sua vida quase
centenária, recordar o modo como desempenhou o seu papel de médico e de
cidadão é um dever inultrapassável. A sua figura perdurará na nossa
memória como o exemplo de como se pode transformar este
concreto e admirável mundo novo.