27 junho 2025

Suicídio Medicamente Ajudado - posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Neurological Sciences (2025) 46:2371–2379

Neurologia e suicídio medicamente ajudado:
posição da Sociedade Italiana de Neurologia

Eugenio Pucci, Nicola Ticozzi, Giancarlo Comi, Gianluigi Mancardi, Leandro Provinciali, Alessandro Padovani, Alessandra Solari
 
Tradução espontânea de algumas partes do artigo
Neurology and physician-assisted suicide:
position of the Italian society of neurology
Para ler o artigo original completo clicar AQUI

Resumo

Esta posição explora a complexa questão do suicídio medicamente ajudado (SMA) no contexto da Neurologia. Analisa os desafios legais, éticos e clínicos que envolvem o SMA, incluindo o papel dos neurologistas na avaliação da elegibilidade com base no prognóstico, na capacidade de tomada de decisão e no estado funcional. O documento descreve o quadro jurídico italiano em matéria de SMA, na sequência de uma decisão histórica do Tribunal Constitucional de 2019, que permite o SMA em condições estritas para doentes que sofrem de doenças incuráveis. Compara também a regulamentação em matéria de SMA noutros países europeus e não europeus. A Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) enfatiza a importância de respeitar a autonomia do doente, ao mesmo tempo que defende cuidados paliativos abrangentes. A posição da SIN é que o SMA deve ser legalizado em circunstâncias específicas, mas insiste em garantir o acesso equitativo aos serviços de cuidados paliativos antes de se considerar o SMA. Além disso, a SIN apoia a formação de neurologistas em cuidados paliativos e cuidados em fim de vida, sublinhando a necessidade de um acompanhamento cuidadoso e de regulamentação das práticas do SMA para evitar potenciais abusos éticos e legais.

[…]

O papel do neurologista

O papel do médico (neurologista, no que diz respeito às doenças neurológicas) nos casos de SMA é multifacetado, envolvendo questões clínicas, éticas e legais.

No que diz respeito ao seu papel clínico, o médico (que trabalha numa unidade do sistema nacional de saúde público) pode estar envolvido na avaliação do estado do doente e da sua elegibilidade, de acordo com o Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano. Isso inclui confirmar o diagnóstico de “uma doença incurável que causa sofrimento físico ou psicológico” que o doente “considera intolerável”. O médico também tem de ter conhecimento do prognóstico do doente e de verificar que o seu sofrimento não pode ser aliviado por outros meios. Além disso, é essencial avaliar se o doente “tem plena capacidade para tomar decisões livres e informadas” e se “é mantido vivo por tratamentos de suporte vital”. Por fim, é o médico que pode avaliar se o doente seria capaz de autoadministrar o fármaco letal, o que implica, de algum modo, a manutenção da capacidade motora e da capacidade de deglutição. Dado que distúrbios mentais e/ou sofrimento psicológico e/ou défice cognitivo podem dificultar o processo de tomada de decisão, é aconselhável que o neurologista colabore com outros especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos ou neuropsicólogos, para uma avaliação mais abrangente.

Deve garantir-se que o doente compreende plenamente as implicações da sua decisão. Isso pressupõe uma análise aprofundada da condição do doente, do seu prognóstico e das alternativas disponíveis, a fim de garantir que a sua intenção de pôr fim à própria vida seja “formulada de forma autónoma e livre”.

O médico não é obrigado a prescrever medicação letal, a menos que esteja diretamente envolvido no procedimento de SMA a pedido do doente. Essa responsabilidade recai sobre o médico designado pelo doente, a quem foi confiada essa função. O médico que ajuda na realização do SMA pode contar com o apoio de outros profissionais para preparar o ambiente adequado, o medicamento letal e o dispositivo de administração. Se o doente consentir, o médico deve procurar colaborar estreitamente com profissionais especializados em cuidados paliativos, tendo também em consideração a gestão da fase de luto.

O papel ético do médico no SMA é complexo, envolvendo um equilíbrio delicado entre respeitar a autodeterminação do doente e gerir os seus deveres profissionais e as suas convicções morais pessoais. Tem de encontrar este equilíbrio, respeitando os princípios éticos clínicos da autonomia, beneficência e não maleficência. Preservar a confidencialidade do doente é fundamental. No entanto, quando as obrigações legais ou éticas entram em conflito, os médicos devem procurar orientação de especialistas em direito e bioética. As comissões de ética locais (em italiano: comitati etici locali per la pratica clinica), que existem em algumas regiões italianas, podem desempenhar um papel significativo na abordagem destas e de outras questões e conflitos.

Envolver-se em SMA pode representar desafios profissionais, incluindo potenciais conflitos com crenças morais pessoais ou convicções éticas profissionais. Alguns médicos podem sentir angústia moral ou enfrentar críticas de colegas ou do público.

Os médicos têm de cumprir requisitos legais específicos, tais como documentar o pedido do doente, garantir que todos os critérios de elegibilidade são cumpridos e comunicar o caso às autoridades competentes. Este processo tem de ser meticulosamente documentado para evitar contestação judicial.

A prática do SMA afeta a forma como a comunidade médica em geral vê o papel dos médicos.

Atualmente, os médicos italianos são orientados pelo código de ética estabelecido pela FNOMCEO (Federazione Nazionale degli Ordini dei Medici Chirurghi e degli Odontoiatri), que afirma que “o médico, mesmo a pedido do doente, não deve praticar nem facilitar atos destinados a causar a morte do doente” (artigo 17.º do Código de Ética Médica). No entanto, na sequência do Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano (TCI), existe um debate em curso sobre as implicações para o artigo 17.º do Código de Ética Médica. Para conciliar o Código com as novas realidades jurídicas, foi introduzida uma alteração que estabelece que “a livre escolha do médico de prestar assistência, com base no princípio da autodeterminação individual, na intenção de cometer suicídio [...] deve ser sempre avaliada caso a caso e implica [...] a não punibilidade do ponto de vista disciplinar”.

Os conselhos disciplinares das ordens médicas serão chamados a avaliar cada caso especificamente, para garantir que todas as condições previstas na decisão do TCI são cumpridas.

A FNOMCEO decidiu, portanto, deixar os colegas livres para agir de acordo com a lei e a sua própria consciência. Mesmo que os princípios do artigo 17.º permaneçam inalterados, a alteração indica uma mudança na proibição absoluta de atos que causem a morte a pedido do doente. Isto está em conformidade com as disposições do TCI que, fora da área delimitada, reiteraram que “criminalizar a ajuda ao suicídio não é, em si mesmo, inconstitucional [...] mas sim que tal criminalização se justifica pela necessidade de proteger o direito à vida, especialmente das pessoas mais fracas e vulneráveis [garantindo que] o sistema jurídico procura proteger essas pessoas, impedindo que terceiros interfiram numa decisão tão extrema e irreparável como o suicídio”.

A adaptação deste quadro ético às mudanças jurídicas em curso é um tema fundamental de discussão na comunidade médica italiana. Na situação atual, o Acórdão n.º 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano afirma que não existe “obrigação para os médicos” de prestar ajuda no SMA, deixando à consciência individual dos médicos a decisão de acatar ou não o pedido do doente. Uma vez que o SMA não impõe quaisquer obrigações aos profissionais de saúde, não deve ser necessário invocar objeção de consciência. No entanto, o TCI reconheceu que as instituições de saúde pública são obrigadas a responder aos pedidos de SMA. Não há problema quando um neurologista concorda voluntariamente em participar num SMA no âmbito da relação médico-doente. A dificuldade surge quando um neurologista é obrigado a participar em procedimentos de SMA exigidos pela sua instituição pública, como por exemplo, integrar uma comissão para verificar a elegibilidade para o SMA. Nesses casos, o neurologista pode invocar a “cláusula de consciência”, que lhe permite opor-se, com base em princípios constitucionais e códigos éticos, a situações não reguladas pela lei. No entanto, se nenhum médico do serviço público de saúde estiver disposto a participar, será criada uma situação insustentável, que impedirá o direito do doente ao SMA. O Conselho Nacional de Bioética (CNB) italiano salientou que a objeção de consciência tem de ser exercida de forma sustentável, garantindo a disponibilidade de serviços que defendam os direitos dos doentes, apesar das objeções. Este princípio pode ser aplicado de forma semelhante à “cláusula de consciência”.

[…]

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A posição da Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) sobre o SMA (suicídio medicamente ajudado)

A SIN reconhece que as doenças neurológicas:
- São o segundo mais importante motivo para pedidos de SMA, depois do cancro, em todo o mundo
- Podem causar sofrimento intolerável (físico, psicológico e/ou existencial)
- Podem levantar dificuldades em termos de prognóstico temporal
- Podem afetar a capacidade de decisão e/ou de comunicação dos doentes
A SIN afirma que:
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente as vontades dos doentes de terem uma morte voluntária ajudada, assim como identificar fatores de risco (por ex. depressão, isolamento, capacidades limitadas) e possíveis alternativas de tratamentos.
- Os cuidados paliativos devem estar disponíveis para os doentes com doenças neurológicas e suas famílias em todas as regiões italianas e nos diversos cenários (internamento, ambulatório, domicílios)
- Os neurologistas devem reconhecer e debater abertamente os pedidos de SMA quando os melhores tratamentos (incluindo cuidados paliativos) não são eficazes ou são recusados pelo doente, especialmente aqueles que demonstram sofrimentos espiritual ou existencial
- A decisão sobre realizar ou não realizar SMA deve ser deixada ao rigoroso entendimento dos neurologistas, atuando em nome dos seus doentes
- Há necessidade urgente de uma lei italiana que garanta procedimentos seguros, transparentes e justos
- É preciso realizar uma monitorização contínua dos SMA em toda a Itália e ao longo do tempo, para evitar a ocorrência de práticas desviantes
A SIN manifesta-se a favor de:
- Programas de formação dos seus membros sobre partilha de decisões, conversas atempadas sobre fim de vida e planeamento antecipado de cuidados
- Programas de formação interdisciplinar em Neurologia e Cuidados Paliativos, sobretudo para jovens membros
- Investigação em cuidados neuropaliativos, centrados na avaliação e tratamentos de doentes com necessidades complexas e sofrimentos refratários

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