
Neurological Sciences (2025)
46:2371–2379
Neurologia e suicídio medicamente
ajudado:
posição da Sociedade Italiana
de Neurologia
Eugenio
Pucci, Nicola Ticozzi, Giancarlo Comi, Gianluigi Mancardi, Leandro Provinciali,
Alessandro Padovani, Alessandra Solari
Tradução espontânea de algumas
partes do artigo
Neurology
and physician-assisted suicide:
position of
the Italian society of neurology
Para ler o artigo
original completo clicar AQUI
Resumo
Esta posição explora a complexa questão do suicídio
medicamente ajudado (SMA) no contexto da Neurologia. Analisa os desafios legais,
éticos e clínicos que envolvem o SMA, incluindo o papel dos neurologistas na avaliação
da elegibilidade com base no prognóstico, na capacidade de tomada de decisão e no
estado funcional. O documento descreve o quadro jurídico italiano em matéria de
SMA, na sequência de uma decisão histórica do Tribunal Constitucional de 2019, que
permite o SMA em condições estritas para doentes que sofrem de doenças incuráveis.
Compara também a regulamentação em matéria de SMA noutros países europeus e não
europeus. A Sociedade Italiana de Neurologia (SIN) enfatiza a importância de respeitar
a autonomia do doente, ao mesmo tempo que defende cuidados paliativos abrangentes.
A posição da SIN é que o SMA deve ser legalizado em circunstâncias específicas,
mas insiste em garantir o acesso equitativo aos serviços de cuidados paliativos
antes de se considerar o SMA. Além disso, a SIN apoia a formação de neurologistas
em cuidados paliativos e cuidados em fim de vida, sublinhando a necessidade de um
acompanhamento cuidadoso e de regulamentação das práticas do SMA para evitar potenciais
abusos éticos e legais.
[…]
O
papel do neurologista
O papel do médico (neurologista, no que diz respeito
às doenças neurológicas) nos casos de SMA é multifacetado, envolvendo questões clínicas,
éticas e legais.
No que diz respeito ao seu papel clínico, o médico
(que trabalha numa unidade do sistema nacional de saúde público) pode estar envolvido
na avaliação do estado do doente e da sua elegibilidade, de acordo com o Acórdão
242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano. Isso inclui confirmar o diagnóstico
de “uma doença incurável que causa sofrimento físico ou psicológico” que o doente
“considera intolerável”. O médico também tem de ter conhecimento do prognóstico
do doente e de verificar que o seu sofrimento não pode ser aliviado por outros meios.
Além disso, é essencial avaliar se o doente “tem plena capacidade para tomar decisões
livres e informadas” e se “é mantido vivo por tratamentos de suporte vital”. Por
fim, é o médico que pode avaliar se o doente seria capaz de autoadministrar o fármaco
letal, o que implica, de algum modo, a manutenção da capacidade motora e da capacidade
de deglutição. Dado que distúrbios mentais e/ou sofrimento psicológico e/ou défice
cognitivo podem dificultar o processo de tomada de decisão, é aconselhável que o
neurologista colabore com outros especialistas, tais como psiquiatras, psicólogos
ou neuropsicólogos, para uma avaliação mais abrangente.
Deve garantir-se que o doente compreende plenamente
as implicações da sua decisão. Isso pressupõe uma análise aprofundada da condição
do doente, do seu prognóstico e das alternativas disponíveis, a fim de garantir
que a sua intenção de pôr fim à própria vida seja “formulada de forma autónoma e
livre”.
O médico não é obrigado a prescrever medicação letal,
a menos que esteja diretamente envolvido no procedimento de SMA a pedido do doente.
Essa responsabilidade recai sobre o médico designado pelo doente, a quem foi confiada
essa função. O médico que ajuda na realização do SMA pode contar com o apoio de
outros profissionais para preparar o ambiente adequado, o medicamento letal e o
dispositivo de administração. Se o doente consentir, o médico deve procurar colaborar
estreitamente com profissionais especializados em cuidados paliativos, tendo também
em consideração a gestão da fase de luto.
O papel ético do médico no SMA é complexo, envolvendo
um equilíbrio delicado entre respeitar a autodeterminação do doente e gerir os seus
deveres profissionais e as suas convicções morais pessoais. Tem de encontrar este
equilíbrio, respeitando os princípios éticos clínicos da autonomia, beneficência
e não maleficência. Preservar a confidencialidade do doente é fundamental. No entanto,
quando as obrigações legais ou éticas entram em conflito, os médicos devem procurar
orientação de especialistas em direito e bioética. As comissões de ética locais
(em italiano: comitati etici locali per la pratica clinica), que existem
em algumas regiões italianas, podem desempenhar um papel significativo na abordagem
destas e de outras questões e conflitos.
Envolver-se em SMA pode representar desafios profissionais,
incluindo potenciais conflitos com crenças morais pessoais ou convicções éticas
profissionais. Alguns médicos podem sentir angústia moral ou enfrentar críticas
de colegas ou do público.
Os médicos têm de cumprir requisitos legais específicos,
tais como documentar o pedido do doente, garantir que todos os critérios de elegibilidade
são cumpridos e comunicar o caso às autoridades competentes. Este processo tem de
ser meticulosamente documentado para evitar contestação judicial.
A prática do SMA afeta a forma como a comunidade médica
em geral vê o papel dos médicos.
Atualmente, os médicos italianos são orientados pelo
código de ética estabelecido pela FNOMCEO (Federazione
Nazionale degli Ordini dei Medici Chirurghi e degli Odontoiatri), que afirma que “o médico,
mesmo a pedido do doente, não deve praticar nem facilitar atos destinados a causar
a morte do doente” (artigo 17.º do Código de Ética Médica). No entanto, na sequência
do Acórdão 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano (TCI), existe um debate
em curso sobre as implicações para o artigo 17.º do Código de Ética Médica. Para
conciliar o Código com as novas realidades jurídicas, foi introduzida uma alteração
que estabelece que “a livre escolha do médico de prestar assistência, com base no
princípio da autodeterminação individual, na intenção de cometer suicídio [...]
deve ser sempre avaliada caso a caso e implica [...] a não punibilidade do ponto
de vista disciplinar”.
Os conselhos disciplinares das ordens médicas serão
chamados a avaliar cada caso especificamente, para garantir que todas as condições
previstas na decisão do TCI são cumpridas.
A FNOMCEO decidiu, portanto, deixar os colegas livres
para agir de acordo com a lei e a sua própria consciência. Mesmo que os princípios
do artigo 17.º permaneçam inalterados, a alteração indica uma mudança na proibição
absoluta de atos que causem a morte a pedido do doente. Isto está em conformidade
com as disposições do TCI que, fora da área delimitada, reiteraram que “criminalizar
a ajuda ao suicídio não é, em si mesmo, inconstitucional [...] mas sim que tal criminalização
se justifica pela necessidade de proteger o direito à vida, especialmente das pessoas
mais fracas e vulneráveis [garantindo que] o sistema jurídico procura proteger essas
pessoas, impedindo que terceiros interfiram numa decisão tão extrema e irreparável
como o suicídio”.
A adaptação deste quadro ético às mudanças jurídicas
em curso é um tema fundamental de discussão na comunidade médica italiana. Na situação
atual, o Acórdão n.º 242/2019 do Tribunal Constitucional Italiano afirma que não
existe “obrigação para os médicos” de prestar ajuda no SMA, deixando à consciência
individual dos médicos a decisão de acatar ou não o pedido do doente. Uma vez que
o SMA não impõe quaisquer obrigações aos profissionais de saúde, não deve ser necessário
invocar objeção de consciência. No entanto, o TCI reconheceu que as instituições
de saúde pública são obrigadas a responder aos pedidos de SMA. Não há problema quando
um neurologista concorda voluntariamente em participar num SMA no âmbito da relação
médico-doente. A dificuldade surge quando um neurologista é obrigado a participar
em procedimentos de SMA exigidos pela sua instituição pública, como por exemplo,
integrar uma comissão para verificar a elegibilidade para o SMA. Nesses casos, o
neurologista pode invocar a “cláusula de consciência”, que lhe permite opor-se,
com base em princípios constitucionais e códigos éticos, a situações não reguladas
pela lei. No entanto, se nenhum médico do serviço público de saúde estiver disposto
a participar, será criada uma situação insustentável, que impedirá o direito do
doente ao SMA. O Conselho Nacional de Bioética (CNB) italiano salientou que a objeção
de consciência tem de ser exercida de forma sustentável, garantindo a disponibilidade
de serviços que defendam os direitos dos doentes, apesar das objeções. Este princípio
pode ser aplicado de forma semelhante à “cláusula de consciência”.
[…]
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