Há duas respostas possíveis para esta crise.
A
primeira pressupõe que se trata simplesmente de uma crise de organização,
eficiência, informação, tecnologia e escala. Vê as pessoas como máquinas
biológicas insuficientemente estudadas, como nuvens de dados escassamente
detalhadas, como fisiologias inadequadamente monitorizadas e reguladas. A cada
vez mais impiedosa onda leva-nos a acreditar que, se a indústria dos cuidados
de saúde pudesse aceder e utilizar os dados biomédicos e socioeconómicos de
todos, então as nossas necessidades poderiam ser previstas e um futuro saudável
seria assegurado para todos. A indústria já está a estender a mão através da
venda de dispositivos tecnológicos nos pulsos e nos bolsos, nas casas e no
trabalho, encorajando os seus consumidores a agir, persuadir, coagir ou atrair
outros para prevenir a doença e o sofrimento; esquecendo-se sempre de que, no
final, todos devem morrer. A ciência biomédica e a máquina de descobertas de
tecnologia produzem testes e tratamentos a serem prescritos por chatbots
a consumidores isolados, sem os atritos e custos de ter de lidar com outras
pessoas. Estão preparados para operar em sistemas de saúde a escalas de
velocidade e alcance que só podem ser atingidos quando abandonamos a ideia de
que os cuidados são apenas possíveis entre pessoas. Esta resposta alimenta o
envolvimento cada vez maior das grandes empresas comerciais e gestoras de dados
nos cuidados de saúde, e impulsiona o consumo crescente de produtos
farmacêuticos e tecnologia médica, tudo isto ignorando deliberadamente as
consequências para o planeta.
A
segunda resposta assume que se trata de uma crise de cuidados em e de si mesma.
Os cuidados acontecem no espaço entre as pessoas, num encontro sem pressas. Só
os seres humanos em interação se podem importar. É nesta interação que um
repara num problema do outro e procura responder à situação difícil do outro
para a melhorar. Nos cuidados de saúde, esta tomada de consciência vai além do
biológico para apreciar o biográfico, e, plenamente consciente de que os corpos
não são máquinas e que as emoções – tanto positivas como negativas – exercem
uma poderosa influência em todos os aspetos da saúde. Vai além do que torna a
vida possível, tem em conta o que torna a vida significativa. Cuidar não é
apenas aderir a diretrizes baseadas em provas para melhorar as métricas a nível
populacional. O trabalho de cuidar descobre ou inventa formas de avançar. O
esforço de cuidar fomenta a esperança de que a situação possa ser melhor no
futuro. O resultado é um caminho para o futuro coincidente com a intenção de
confortar sempre, algo que vai desde a cirurgia complexa até ao acompanhar os
que estão a morrer, vai da cura ao alívio. Esta resposta é humana, pelo que
está repleta de atritos, mergulhada numa incerteza radical, mas resiliente à
desilusão recorrente graças às relações pessoais estreitas em que os cuidados
acontecem.
Neste
Verão, ambos lemos o último livro de Rebecca Solnit, Orwell's Roses1, que ela se abalançou
a escrever quando descobriu que George Orwell não só relatara os retratos mais
sombrios e poderosos dos regimes totalitários do século XX2, como também plantara
roseiras, custando-lhe sessenta cêntimos cada uma em Woolworths. Esta aparente
contradição entre uma visão de mundo sombria e o ato esperançoso da jardinagem,
lembrou a Solnit o lema político “Pão e Rosas” que parece ter surgido nos EUA
por volta de 1910 e foi utilizado por mulheres que faziam campanha pelos votos
das mulheres e pelos direitos dos trabalhadores. Descrevendo o poder da frase,
Solnit escreveu:
“O pão alimentou o corpo, as rosas
alimentaram algo mais subtil: não apenas corações, mas imaginações, psiques,
sentidos, identidades. Era um bonito lema, mas também um argumento contundente
de que algo mais do que sobrevivência e bem-estar corporal eram necessários e
estavam a ser exigidos como um direito. Era igualmente um argumento contra a
ideia de que tudo o que os seres humanos precisam pode ser reduzido a bens e
condições quantificáveis e tangíveis. As rosas nestes gritos representavam a
forma como os seres humanos são complexos, os desejos são irredutíveis, que o
que nos sustenta é muitas vezes subtil e fugidio.”
“Pão e
rosas” é o que os humanos envolvidos nos cuidados – o doente e o profissional
de saúde – querem dos cuidados de saúde. Pão é sustento e, portanto, vida;
rosas são coragem e esperança, curiosidade e alegria, e tudo o que faz uma vida
valer a pena viver. O pão é biologia; as rosas são biografia. O pão é
negociável e tecnocrático; as rosas são relacionais. O pão é ciência; as rosas
são cuidados, bondade e amor.
“Pão e
rosas” também pode descrever como os cuidados de saúde podem proporcionar o
cuidar. Pedido desculpa àqueles que cozem os seus próprios pães, o paralelo
aqui é com a produção industrial de pão, de modo que o pão representa os
processos burocráticos que tornam os cuidados de saúde eficientes e seguros,
evitando desperdícios e erros através da normalização, regulação e formação.
Cozer pão é como as tecnologias e inovações que tornam possíveis e viáveis
conversas sem pressa e a continuidade dos cuidados de saúde, que reduzem os
erros de diagnóstico, detetam e corrigem os danos de forma precoce e fiável.
Cuidar do pão assegura que os cuidados de saúde mantêm o potencial para alcançar
o objetivo do cuidar, do corpo e da mente, de lidar com os medos e sentimentos
dos doentes e de criar condições para o surgimento de cuidados atenciosos e carinhosos.
As rosas representam o que faz a vida valer a
pena, tudo o que é bom nas relações humanas, e as histórias que usamos para dar
sentido às nossas situações desesperadas e ao que é possível com o tratamento.
As rosas são o que nos dá conforto perante o fracasso, a dor, a decadência e a
morte, ou seja, perante a vida. Atender às rosas leva ao sujeito dos cuidados o
verdadeiro alívio para que as marcas da injustiça, do racismo, da desigualdade
e da violência possam ser vistas como as marcas das doenças. As rosas, tal como
os cuidados atenciosos e carinhosos3, falam de esperança –
o nosso trabalho de plantar e criar condições de luz, solo e água que tornam
possível que uma flor apareça no futuro. Tal como as rosas, os cuidados não
podem ser chamados ou incitados, mas devem emergir das condições certas.
Os
cuidados de saúde industrializados pós-pandémicos são, na sua maioria, uma dura
tarefa impulsionada de fora por uma obsessão com os números. Isto está a causar
danos morais generalizados ao coagir os profissionais a darem prioridade a
cada vez mais intervenções que sabem ser fúteis, banindo ao mesmo tempo
qualquer vestígio de uma rosa para os doentes, ou para quem tenta cuidar deles.
O patamar moral dos cuidados de saúde industrializados está cada vez mais em
desacordo com os imperativos éticos e morais do trabalho real de cuidar dos
doentes. O resultado só pode ser dissonância cognitiva e dano moral, desencanto
e revolta, desintegração e fuga. Como diz Rebecca Solnit1, a ética do cuidar é
menosprezada,
“...trivial, irrelevante, indulgente, inútil,
confusa ou qualquer daqueles outros pejorativos com os quais o quantificável arrasa
o não-quantificável”.
Já nos tínhamos esquecido dos limites da
indústria e da tecnologia. Deixámos que algumas formas de progresso e
crescimento material prevalecessem sobre a dignidade, a justiça, a
solidariedade e a sustentabilidade. Uma atenção excessiva ao pão deixou-nos
com a impressão de que o cuidado é um recurso finito, a sua escassez exigindo a
sua administração, regulamentação e racionamento. Estamos a viver com as
consequências dos paraísos pavimentados de Joni Mitchell4,
percebendo como os cuidados de saúde se sentem quando o cuidar desaparece,
quando os prestadores de cuidados não só se desgastam como aparecem para cuidar
dos doentes estando eles próprios esgotados, quando os doentes procuram
cuidados, mas o plano de negócios e o algoritmo prescrevem uma cruel
indiferença.
Como responder a esta crise do cuidar?
Neste
caso, o próprio Orwell detém a pista. A descoberta de que Orwell tinha plantado
aquelas rosas levou Solnit a repensar o seu romance 1984. Dentro de toda
a cinzentismo, crueldade e opressão, existe esta grande verdade:
“O que importava eram as relações individuais
e que um gesto inofensivo, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um
agonizante, pudesse ter valor em si mesmo”.2
Toda a
alegria, todas as rosas da saúde, mesmo nestes tempos difíceis, existe nas
relações, entre doentes e profissionais, entre colegas; no conhecimento seguro
de que todos estes gestos têm valor em si mesmos.
Acontece que a coisa subversiva, quase
revolucionária, a fazer dentro dos cuidados de saúde contemporâneos é
construir, silenciosa e discretamente, estas relações cruciais. Sabemos hoje
que a continuidade dos cuidados, numa relação única entre doente e médico,
atrasa a doença e prolonga vidas5 e, assim,
proporciona o pão, mas fá-lo dando-nos simultaneamente as rosas da alegria,
confiança, curiosidade, cuidado, gentileza e solidariedade. Uma vida que vale a
pena viver tende a durar mais tempo.
Na
verdade, o cuidar, tal como o amor, é abundante e autossustentável, um
potencial de todos. Treinado e celebrado, o cuidar é uma capacidade humana
exigente que se expande com a satisfação de ter optado por correr contra a dor,
que se reabastece com o sorriso e a gratidão com que avaliamos a nossa
eficácia, que se regenera quando os cuidados, e o amor, regressam aos
prestadores de cuidados quando estes, invariavelmente, têm de ser beneficiários
de cuidados. O cuidar, tal como as rosas, dá sentido à vida. Temos de o
cultivar.
No combate à nossa saída desta crise dos cuidados de saúde, ao trabalharmos por cuidados atenciosos e carinhosos para todos, temos de seguir as sufragistas e exigir “pão e rosas”.
1 Solnit R. Orwell’s Roses. Viking, 2021.