27 fevereiro 2023

"Pão e Rosas" - Resposta à crise do cuidar


Resposta à crise do cuidar
London, UK // Mayo Clinic, Rochester, Minnesota, USA

Tradução espontânea do artigo de opinião 
publicado em 23.02.2023

    Os cuidados de saúde estão em crise na maior parte do globo e talvez, especialmente, nos nossos dois países – Estados Unidos e Reino Unido, ambos, parecem mais desunidos do que nunca perante a ganância e a falta de cuidado que conduzem à polarização socioeconómica e política e à degradação sistemática do nosso planeta.

   Há duas respostas possíveis para esta crise.

   A primeira pressupõe que se trata simplesmente de uma crise de organização, eficiência, informação, tecnologia e escala. Vê as pessoas como máquinas biológicas insuficientemente estudadas, como nuvens de dados escassa­mente detalhadas, como fisiologias inadequadamente monitorizadas e reguladas. A cada vez mais impiedosa onda leva-nos a acreditar que, se a indústria dos cuidados de saúde pudesse aceder e utilizar os dados biomédicos e socioeconómicos de todos, então as nossas necessidades poderiam ser previstas e um futuro saudável seria asse­gurado para todos. A indústria já está a estender a mão através da venda de dispositivos tecnológicos nos pulsos e nos bolsos, nas casas e no trabalho, encorajando os seus consumidores a agir, persuadir, coagir ou atrair outros para prevenir a doença e o sofrimento; esquecendo-se sempre de que, no final, todos devem morrer. A ciência biomédica e a máquina de descobertas de tecnologia produzem testes e tratamentos a serem prescritos por chatbots a consumidores isolados, sem os atritos e custos de ter de lidar com outras pessoas. Estão preparados para operar em sistemas de saúde a escalas de velocidade e alcance que só podem ser atingidos quando abandonamos a ideia de que os cuidados são apenas possíveis entre pessoas. Esta resposta alimenta o envolvimento cada vez maior das grandes empresas comerciais e gestoras de dados nos cuidados de saúde, e impulsiona o consumo crescente de produtos farmacêuticos e tecnologia médica, tudo isto ignorando deliberadamente as consequências para o planeta.

   A segunda resposta assume que se trata de uma crise de cuidados em e de si mesma. Os cuidados acontecem no espaço entre as pessoas, num encontro sem pressas. Só os seres humanos em interação se podem importar. É nesta interação que um repara num problema do outro e procura responder à situação difícil do outro para a melhorar. Nos cuidados de saúde, esta tomada de consciência vai além do biológico para apreciar o biográfico, e, plenamente consciente de que os corpos não são máquinas e que as emoções – tanto positivas como negativas – exercem uma poderosa influência em todos os aspetos da saúde. Vai além do que torna a vida possível, tem em conta o que torna a vida significativa. Cuidar não é apenas aderir a diretrizes baseadas em provas para melhorar as métricas a nível populacional. O trabalho de cuidar descobre ou inventa formas de avançar. O esforço de cuidar fomenta a esperança de que a situação possa ser melhor no futuro. O resultado é um caminho para o futuro coincidente com a intenção de confortar sempre, algo que vai desde a cirurgia complexa até ao acompanhar os que estão a morrer, vai da cura ao alívio. Esta resposta é humana, pelo que está repleta de atritos, mergulhada numa incerteza radical, mas resiliente à desilusão recorrente graças às relações pessoais estreitas em que os cuidados acontecem.

   Neste Verão, ambos lemos o último livro de Rebecca Solnit, Orwell's Roses1, que ela se abalançou a escrever quando descobriu que George Orwell não só relatara os retratos mais sombrios e poderosos dos regimes totali­tários do século XX2, como também plantara roseiras, custando-lhe sessenta cêntimos cada uma em Woolworths. Esta aparente contradição entre uma visão de mundo sombria e o ato esperançoso da jardinagem, lem­brou a Solnit o lema político “Pão e Rosas” que parece ter surgido nos EUA por volta de 1910 e foi utilizado por mulheres que faziam campanha pelos votos das mulheres e pelos direitos dos trabalhadores. Descrevendo o poder da frase, Solnit escreveu:

“O pão alimentou o corpo, as rosas alimentaram algo mais subtil: não apenas corações, mas imaginações, psiques, sentidos, identidades. Era um bonito lema, mas também um argumento contundente de que algo mais do que sobrevivência e bem-estar corporal eram necessários e estavam a ser exigidos como um direito. Era igualmente um argumento contra a ideia de que tudo o que os seres humanos precisam pode ser reduzido a bens e condi­ções quantificáveis e tangíveis. As rosas nestes gritos representavam a forma como os seres humanos são complexos, os desejos são irredutíveis, que o que nos sustenta é muitas vezes subtil e fugidio.”

   “Pão e rosas” é o que os humanos envolvidos nos cuidados – o doente e o profissional de saúde – querem dos cuidados de saúde. Pão é sustento e, portanto, vida; rosas são coragem e esperança, curiosidade e alegria, e tudo o que faz uma vida valer a pena viver. O pão é biologia; as rosas são biografia. O pão é negociável e tecnocrático; as rosas são relacionais. O pão é ciência; as rosas são cuidados, bondade e amor.

   “Pão e rosas” também pode descrever como os cuidados de saúde podem proporcionar o cuidar. Pedido desculpa àqueles que cozem os seus próprios pães, o paralelo aqui é com a produção industrial de pão, de modo que o pão representa os processos burocráticos que tornam os cuidados de saúde eficientes e seguros, evi­tando desperdícios e erros através da normalização, regulação e formação. Cozer pão é como as tecnologias e inovações que tornam possíveis e viáveis conversas sem pressa e a continuidade dos cuidados de saúde, que redu­zem os erros de diagnóstico, detetam e corrigem os danos de forma precoce e fiável. Cuidar do pão assegura que os cuidados de saúde mantêm o potencial para alcançar o objetivo do cuidar, do corpo e da mente, de lidar com os medos e sentimentos dos doentes e de criar condições para o surgimento de cuidados atenciosos e carinhosos.

   As rosas representam o que faz a vida valer a pena, tudo o que é bom nas relações humanas, e as histórias que usamos para dar sentido às nossas situações desesperadas e ao que é possível com o tratamento. As rosas são o que nos dá conforto perante o fracasso, a dor, a decadência e a morte, ou seja, perante a vida. Atender às rosas leva ao sujeito dos cuidados o verdadeiro alívio para que as marcas da injustiça, do racismo, da desigualdade e da violência possam ser vistas como as marcas das doenças. As rosas, tal como os cuidados atenciosos e cari­nhosos3, falam de esperança – o nosso trabalho de plantar e criar condições de luz, solo e água que tornam possível que uma flor apareça no futuro. Tal como as rosas, os cuidados não podem ser chamados ou incitados, mas devem emergir das condições certas.

   Os cuidados de saúde industrializados pós-pandémicos são, na sua maioria, uma dura tarefa impulsionada de fora por uma obsessão com os números. Isto está a causar danos morais generalizados ao coagir os pro­fissionais a darem prioridade a cada vez mais intervenções que sabem ser fúteis, banindo ao mesmo tempo qualquer vestígio de uma rosa para os doentes, ou para quem tenta cuidar deles. O patamar moral dos cuidados de saúde industrializados está cada vez mais em desacordo com os imperativos éticos e morais do trabalho real de cuidar dos doentes. O resultado só pode ser dissonância cognitiva e dano moral, desencanto e revolta, desintegração e fuga. Como diz Rebecca Solnit1, a ética do cuidar é menosprezada,

“...trivial, irrelevante, indulgente, inútil, confusa ou qualquer daqueles outros pejorativos com os quais o quan­tificável arrasa o não-quantificável”.

   Já nos tínhamos esquecido dos limites da indústria e da tecnologia. Deixámos que algumas formas de progresso e crescimento material prevalecessem sobre a dignidade, a justiça, a solidariedade e a sustentabilidade. Uma aten­ção excessiva ao pão deixou-nos com a impressão de que o cuidado é um recurso finito, a sua escassez exigindo a sua administração, regulamentação e racionamento. Estamos a viver com as consequências dos paraísos pavimen­tados de Joni Mitchell4, percebendo como os cuidados de saúde se sentem quando o cuidar desaparece, quando os prestadores de cuidados não só se desgastam como aparecem para cuidar dos doentes estando eles próprios esgotados, quando os doentes procuram cuidados, mas o plano de negócios e o algoritmo prescrevem uma cruel indiferença.

   Como responder a esta crise do cuidar?

   Neste caso, o próprio Orwell detém a pista. A descoberta de que Orwell tinha plantado aquelas rosas levou Solnit a repensar o seu romance 1984. Dentro de toda a cinzentismo, crueldade e opressão, existe esta grande verdade:

“O que importava eram as relações individuais e que um gesto inofensivo, um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a um agonizante, pudesse ter valor em si mesmo”.2

   Toda a alegria, todas as rosas da saúde, mesmo nestes tempos difíceis, existe nas relações, entre doentes e pro­fissionais, entre colegas; no conhecimento seguro de que todos estes gestos têm valor em si mesmos.

   Acontece que a coisa subversiva, quase revolucionária, a fazer dentro dos cuidados de saúde contemporâneos é construir, silenciosa e discretamente, estas relações cruciais. Sabemos hoje que a continuidade dos cuidados, numa relação única entre doente e médico, atrasa a doença e prolonga vidas5 e, assim, proporciona o pão, mas fá-lo dando-nos simultaneamente as rosas da alegria, confiança, curiosidade, cuidado, gentileza e solidariedade. Uma vida que vale a pena viver tende a durar mais tempo.

   Na verdade, o cuidar, tal como o amor, é abundante e autossustentável, um potencial de todos. Treinado e cele­brado, o cuidar é uma capacidade humana exigente que se expande com a satisfação de ter optado por correr contra a dor, que se reabastece com o sorriso e a gratidão com que avaliamos a nossa eficácia, que se regenera quando os cuidados, e o amor, regressam aos prestadores de cuidados quando estes, invariavelmente, têm de ser benefi­ciários de cuidados. O cuidar, tal como as rosas, dá sentido à vida. Temos de o cultivar.

   No combate à nossa saída desta crise dos cuidados de saúde, ao trabalharmos por cuidados atenciosos e carinho­sos para todos, temos de seguir as sufragistas e exigir “pão e rosas”. 



1 Solnit R. Orwell’s Roses. Viking, 2021.
2 Orwell G. Nineteen Eighty-Four: Martin Secker & Warburg, 1949.
3 Montori V. Why We Revolt: a patient revolution for careful and kind care: The Patient Revolution, Inc. 2017.
4 Mitchell J. Big Yellow Taxi. Ladies of the Canyon: Reprise Records, 1970.
5 Pereira Gray DJ, Sidaway-Lee K, White E, Thorne A, Evans PH. Con­tinuity of care with doctors-a matter of life and death? A systematic re­view of continuity of care and mortality. BMJ Open 2018;8:e021161. doi: 10.1136/bmjopen-2017-021161. pmid: 29959146

07 fevereiro 2023

O rei vai nu?

Público, 07.02.2023

Então, ele virou-se para mim e disse-me assim:

– É sabido que uma opinião maioritária não é garantia de ser a mais correta.

– Concordo, mas um órgão deliberativo tem forçosamente de tomar decisões por maioria dos seus membros – estou a lembrar-me do Parlamento…

–  E do coletivo de um Tribunal.  E um órgão consultivo também aprova Pareceres por maioria.

– Claro. Em qualquer caso, pode acontecer que as opiniões minoritárias sejam afinal as melhores. É aí que queres chegar?

– Não. Estava a lembrar-me que uma opinião maioritária num órgão pode ser minoritária noutro, como se estivesse certa num lado e errada noutro…

– Talvez seja por isso que há as declarações de voto de vencido. Estou a lembrar-me de que o projeto de lei para a despenalização da ajuda médica à morte provocada a pedido do doente gerou uma maioria parlamentar que o aprovou e teve um Parecer desfavorável do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

– Já o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre um ponto específico da Lei, declarou por maioria que essa formulação precisava de ser corrigida. Ora, li ontem que uma voz do CNECV, integrada na sua posição maioritária, lamentando que os deputados não tenham acolhido as recomendações do órgão consultivo, desejou que aproveitassem a devolução do projeto para o melhorarem.

– Os argumentos do Tribunal centram-se numa questão pontual de natureza semântica e julgo que é nesse ponto que o Parlamento vai focar-se. O Parecer votado no CNECV não refere a questão do sofrimento, embora o relatório que o precede até o considere como indefinível. Aparentemente, a questão é poder haver interpretações divergentes da alínea f) do artigo 2 da Lei (define “Sofrimento de grande intensidade” como “o sofrimento físico, psicológico e espiritual”).

– Afigura-se-me que o legislador pretendeu considerar o “sofrimento de grande intensidade” como aquele que congrega as três qualificações referidas, caso contrário, teria de admitir que se atendesse um pedido de morte medicamente ajudada em situações de depressão ‘pura’, o que não condiz com o conjunto do texto da Lei.

– Deixa-me, a este propósito, recordar o que disse na minha declaração de voto minoritário referente ao Parecer do CNECV. «Todos sabemos que em Saúde e, especialmente, no exercício da Medicina não é possível desenhar soluções para todos os dilemas e problemas garantidamente certas e limpas de incertezas, nomeadamente os que têm dimensão ética. O recurso a algoritmos, com ou sem apoio em técnicas de inteligência artificial, (ainda) não permite elaborar leis e normas perfeitas e sempre haverá possibilidade de as melhorar.»

– Compreendo. O que temo é que, mesmo que o Parlamento faça uma alteração ‘cirúrgica’, apenas centrada na dúvida do Tribunal, possa a assinatura promulgadora da Lei voltar a ser adiada por pedido de nova pronúncia pelo Tribunal sobre novas dúvidas. Iremos assistir a um pingue-pongue interminável, uma estratégia concertada de uma minoria para desconvencer uma maioria?

– Não quero acreditar nisso!