O Tribunal
Constitucional saberá, seguramente, ter em conta estas e outras considerações
na análise sobre a bondade da formulação encontrada pelo legislador no diploma
sobre a eutanásia. É o que se espera.
No seu requerimento ao Tribunal Constitucional para verificação da conformidade com a Constituição de algumas disposições do decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, o Presidente da República alega que o conceito de sofrimento intolerável “não se encontra minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte inequívoco das leges artis médicas”. Essa falta de definição é também apontada ao subcritério “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, para mais separado pela conjunção alternativa “ou” do subcritério “doença incurável e fatal”.
Aparentemente,
o PR preferiria ver explicada em Lei uma escala de sofrimentos e o corte a
partir do qual este pudesse ser aceite como intolerável. Do mesmo modo, resulta
da pergunta que seria bom dispor de uma lista exaustiva de lesões, bem como de
uma forte relação dessas lesões com o prognóstico medido em unidades de tempo.
Os defeitos de densificação dos critérios seriam, adivinha-se, razão suficiente
para reprovar a lei no exame da constitucionalidade.
Acontece,
porém, que a invocação de conceitos, como os usados para justificar a não punição
penal da antecipação da morte a pedido do próprio, não parece poder ser senão indeterminada,
embora em cada caso se exija que estes sejam e tenham de ser concretizados e
fundamentados.
Os profissionais de saúde estão habituados a lidar
com um outro conceito de difícil determinação abstrata, que é o princípio da
proporcionalidade. Todos os dias tomam decisões que forçosamente têm de ser
proporcionadas à situação que enfrentam. Muitos não saberão dizer, em resposta
rápida, o que significa o princípio da
proporcionalidade –aplica-se aqui o que também se diz da dignidade: não sei
dizer o que é mas, quando a vejo ser ofendida, reconheço-a!
O
princípio da proporcionalidade está contemplado no artigo 266.º da Constituição
– a ele, como ao da igualdade, justiça, imparcialidade e boa-fé, estão
subordinados os órgãos e agentes da Administração Pública.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 632/2008, de 23-12-2008, afirma que “a ideia de proporção ou proibição do excesso – que, em Estado de direito, vincula as ações de todos os poderes públicos – refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: as ações estaduais não devem, para realizar os seus fins, empregar meios que se cifrem, pelo seu peso, em encargos excessivos (e, portanto, não equilibrados) para as pessoas a quem se destinem”.
Mas não
só há referências gerais a este princípio. Ele está também presente nos
enunciados da bioética, associado aos princípios da beneficência e da não-maleficência.
Veja-se, por exemplo, o Guia sobre o processo de decisão relativo a tratamentos médicos em situações de fim de vida (Conselho de Europa, 2014). “A relação de confiança entre médicos, cuidadores e doentes é instrumental na avaliação da proporcionalidade do tratamento. O caráter desproporcionado do tratamento define-se concretamente conforme a progressão da doença e a reação do doente ao tratamento.”
Não é possível definir
em detalhe, previamente, todas as condições perante as quais os profissionais
atuam – permitir e exigir proporcionalidade é exatamente deixar uma margem suficiente
para a razoabilidade, sem excluir a responsabilidade
Veja-se, noutro exemplo, a nossa Lei n.º 46/2007, de 24 de agosto, que, no artigo 6.º, n.º 5,estipula que “um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos se estiver munido de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito ou demonstrar interesse direto, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade”.
Ou
seja, não é possível definir em
detalhe, previamente, todas as condições perante as quais os profissionais atuam – permitir e exigir
proporcionalidade é exatamente deixar uma margem suficiente para a razoabilidade, sem excluir a
responsabilidade. O diploma agora em apreciação de constitucionalidade é claro
quanto a isso – os médicos intervenientes só veem validadas as suas opiniões
pela Comissão de Verificação e Avaliação se forem
devidamente fundamentadas.
Acresce
que não há forma de avaliar se um sofrimento é intolerável que não seja
subjetiva – só o sujeito sofredor sabe até onde o tolera.
O Tribunal Constitucional saberá, seguramente, ter em conta estas e outras considerações na análise sobre a bondade da formulação encontrada pelo legislador. É o que se espera.