Cair numa rampa escorregadia
Peter Singer
Tradução espontânea das pp. 150-156 do Cap. 7 do livro
Rethinking Life and
Death, S.t Martin’s Griffin, 1994
A objeção mais forte à legalização da eutanásia voluntária ou do suicídio
medicamente ajudado é que, uma vez que comecemos a permitir que algumas pessoas
matem outras, iremos escorregar numa rampa que levará a um certo tipo de
assassinatos que ninguém quer. Podemos começar com controlos rígidos pensados
para garantir que a eutanásia só se realize depois de um doente em situação
insuportável a ter solicitado repetidamente, mas, argumenta-se, iremos
gradualmente deslizar para a eutanásia em pessoas que não são capazes de a
solicitar ou para pessoas que não estão a sofrer insuportavelmente, mas cuja
continuidade de vida é um fardo para as suas famílias. Então, talvez, passemos
à eutanásia mesmo naqueles que não a pediram, cujo tratamento consome recursos
de saúde escassos que poderiam ser usados com mais eficácia noutro lugar. No
final, dizem alguns opositores da legalização, chegaremos a um Estado que, como
na Alemanha nazi, mata todos aqueles que considera indignos de viver.
O argumento da rampa escorregadia ajudou a persuadir o Supremo Tribunal do
Canadá a decidir contra Sue Rodriguez. O juiz John Sopinka, que divulgou o
veredicto da maioria, referiu que nos Países Baixos a ajuda que Sue Rodriguez
estava a pedir não estaria sujeita a processo judicial. E acrescentou:
Os críticos da abordagem
holandesa apresentam provas que sugerem que a eutanásia ativa involuntária (que
não é permitida pelas diretrizes) está a ser praticada num grau cada vez maior.
Esta tendência preocupante apoia a opinião de que um relaxamento da proibição
absoluta nos leva a uma ‘rampa escorregadia’19.
São os Países Baixos um laboratório social que nos permite ver como a
legalização da eutanásia voluntária nos levará a uma rampa escorregadia? O juiz
Sopinka e a maioria do Supremo Tribunal do Canadá parecem pensar assim. Mas
isso está certo? Qual é a prova de que a ‘eutanásia ativa involuntária’ está
sendo praticada ‘em um grau cada vez maior’ nos Países Baixos? A primeira
década de experiência com a eutanásia voluntária aberta numa nação moderna
mostra alguma prova pela qual podemos avaliar a validade do argumento da rampa
escorregadia?
Para responder a essa pergunta de uma forma que evite confusões,
precisamos começar por ser específicos sobre os termos que usamos. Primeiro, o
que o juiz Sopinka quis dizer com ‘eutanásia ativa involuntária’? Entre os
bioeticistas, essa expressão raramente é usada visto que dizer que algo é involuntário sugere que é contrário à vontade da pessoa afetada, enquanto falar em eutanásia sugere que é uma boa morte para essa pessoa. É difícil ver como matar uma pessoa
que quer continuar viva pode ser uma boa morte. Os bioeticistas geralmente
referem-se à eutanásia como voluntária ou não-voluntária, usando a última expressão para referir a casos em que o doente é incapaz
de expressar um desejo sobre a continuidade da vida – talvez por ser um bebé ou
alguém com doença de Alzheimer avançada que não expressou nenhuma vontade
antecipada sobre a eutanásia antes de deixar de ser capaz. Pode ser que o juiz
Sopinka quisesse dizer ‘eutanásia ativa não-voluntária’ em vez de ‘eutanásia
ativa involuntária’. Mas isso também seria ‘não permitido pelas diretrizes’. Em
qualquer caso, vejamos quais são as provas de um aumento da quantidade de
eutanásia não-voluntária ou involuntária nos Países Baixos.
Tanto os que acreditam que a experiência holandesa favorece o argumento da
rampa escorregadia, como os que se opõe a essa opinião, extraem as suas provas
do estudo realizado em 1990 para a comissão de inquérito nomeada pelo governo.
Para avaliar o problema de forma adequada, precisamos examinar um pouco mais
detalhadamente o que esse estudo encontrou ou não20.
O primeiro ponto importante a notar é que o estudo não estava preocupado
apenas com a eutanásia voluntária e o suicídio ajudado. Os investigadores
queriam pôr a eutanásia voluntária ativa no contexto de todas as decisões que
os médicos sabiam poder antecipar a morte do doente. Isso inclui decisões de
não-tratamento (não iniciar ou suspender tratamentos ou, por exemplo, não
ressuscitar um doente cujo coração parou) e decisões de administrar
medicamentos para alívio da dor e sintomas mas que os médicos sabem que podem
fazer com que o doente morra mais rapidamente. Em nenhum outro país, além dos
Países Baixos, essas decisões médicas foram investigadas com amplitude ou rigor
comparável.
O estudo mostrou que a eutanásia ativa e o suicídio ajudado são muito
menos comuns do que outras decisões médicas que sabidamente encurtam a vida ou
têm o risco de encurtá-la. Um total de 48 700 mortes foram associadas a
essas decisões médicas de ‘fim da vida’: 22 500 foram associadas a
decisões de não iniciar ou suspender tratamentos e outras 22 500 com
decisões para aliviar dor e sintomas dando medicamentos que o médico sabia que
podem fazer com que os doentes morram mais rapidamente. Do restante, como já
vimos, 2300 mortes foram resultado de eutanásia voluntária ativa e 400 foram
suicídios medicamente ajudados. Em quase todas essas 2700 mortes, o doente
estava em estado terminal, geralmente com algum tipo de cancro, e em três
quartos das vezes foi estimado que o recurso a eutanásia ou a ajuda ao suicídio
encurtou a vida em menos de quatro semanas. Houve cerca de três vezes mais
pedidos de eutanásia ou ajuda ao suicídio do que mortes por essas causas, o que
sugere que os médicos não estavam ansiosos para atender a essas solicitações e
muitas vezes encontravam outras maneiras de prestar um nível aceitável de
conforto.
As restantes 1000 mortes causaram a maior preocupação. Foram casos em que
um médico forneceu, prescreveu ou administrou um medicamento com o propósito
explícito de antecipar o fim da vida, mas sem uma solicitação explícita do
doente. Embora esses 1000 casos representem apenas uma pequena fração – apenas
2% – de todas as mortes relacionadas com decisões médicas, os críticos da
situação holandesa precipitaram-se sobre eles. Aqui estão, dizem eles, todas as
provas de que precisamos: 1000 pessoas por ano são condenadas à morte sem o seu
consentimento. Não é definitivamente uma ‘tendência preocupante’, como disse o
senhor juiz Sopinka? Antes de chegarmos a essa conclusão, no entanto, há mais
uns pontos a considerar. Os autores do estudo descrevem esses 1000 casos como ‘doentes
que estavam perto da morte e claramente sofrendo gravemente’. O fármaco mais usado
foi a morfina, sozinha ou em combinação com um sedativo. Em 600 casos, houve
algum envolvimento do doente numa conversa sobre o fim da vida, embora ainda
não tivesse atingido a fase de um pedido explícito. Em quase todos os casos em
que não houve conversas, isso aconteceu porque o doente não estava capaz de as
ter, geralmente por estar permanentemente inconsciente ou num estado de ‘consciência
reduzida’. As exceções foram dois casos datados do início dos anos 1980, quando
os médicos não se sentiam confortáveis a debater esses assuntos abertamente.
Assim, embora pareça haver uma quantidade limitada de eutanásias
não-voluntárias praticadas nos Países Baixos em circunstâncias extremas, nenhum
caso de ‘eutanásia involuntária’ veio à luz durante o período do estudo.
Ninguém foi condenado à morte contra sua vontade. Em 71% dos casos, a decisão
médica encurtou a vida em menos de uma semana e apenas um, dos 97 casos em que
houve conversas nas entrevistas com os médicos, em mais de seis meses21.
Esses factos podem suavizar a nossa atitude quanto a haver 1000 casos em
que os médicos terminaram ativamente a vida dos doentes sem os seus
consentimentos explícitos. Mas mesmo se, em todos os casos em que um médico
terminou a vida de um doente sem consentimento, pudéssemos aceitar que o médico
estava justificado, não seria ainda verdade que isso violava as diretrizes
aceites pelos tribunais? Isso não valida o argumento da rampa escorregadia ao mostrar
que a eutanásia ativa não-voluntária está a ser praticada em grau crescente?
Aqui a resposta é muito clara: os números holandeses não podem mostrar uma
‘prática crescente’ de nada, porque para o mostrar que precisaríamos de números
de dois ou mais anos diferentes, de preferência separados por um intervalo substancial.
Não existem tais números. Os autores do estudo holandês estão, portanto,
seguramente certos quando dizem, depois de discutir as tentativas de usar o seu
estudo como base para o argumento da rampa escorregadia: ‘Concluímos que não há
dados empíricos que possam apoiar o argumento da rampa escorregadia contra os
holandeses’ 22.
Se não houver números que comparem a prática da eutanásia nos Países
Baixos em épocas anteriores e posteriores, ainda podemos querer saber se os
médicos holandeses acabam com a vida dos seus doentes sem um pedido explícito com
mais frequência do que os médicos de outros países. De novo, contudo, não há
realmente bases para dar uma resposta definitiva a esta pergunta. Lembremo-nos
que as 1000 mortes em que os críticos se concentram são casos de doentes a
morrer em condições de considerável sofrimento. O estudo holandês encontrou um
número muito maior de casos, talvez até 8000, em que os médicos deram
medicamentos mais para aliviar a dor ou os sintomas do que explicitamente para
acabar com a vida, mas acelerar a morte fazia, apesar disso, parte do objetivo
de administrar esses medicamentos. Dizer qual é o objetivo principal ou
secundário de uma pessoa obviamente não é fácil nessas situações. (Como Kevorkian
provou, quando persuadiu o júri – ou não? – de que tinha dado monóxido de
carbono a Thomas Hyde, com sonda e uma máscara, para aliviar o seu sofrimento
em vez de causar a morte.) Os médicos, em toda a parte, dão aos doentes que
estão a morrer de doenças penosas grandes doses de morfina ou sedativos que
podem encurtar as suas vidas. Fazem isso sabendo que, se a droga encurtar a
vida do doente, será melhor para o doente do que continuar a sofrer. Se o Dr.
Nigel Cox não tivesse sido suficientemente honesto ao registar no processo
clínico o cloreto de potássio que deu a Lillian Boyes, ele nunca teria sido
denunciado à polícia. Quando ele foi condenado, Ann Bastow, uma enfermeira, escreveu
ao Times:
Tenho certeza de que todo o
enfermeiro hospitalar experiente ajudará um médico a acabar com a vida de um doente
em estado terminal, embora alguns não estejam dispostos a admitir isso. O Dr.
Cox tornou-se um bode expiatório para pessoas como eu. A vergonha de tudo isso
é que ele teve de ser julgado sozinho, representando milhares de médicos e
enfermeiros atenciosos que cometeram exatamente o mesmo crime23.
Três estudos australianos demonstraram que a eutanásia voluntária ativa é
relativamente comum naquele país, embora a lei a considere um assassinato. Num
estudo com médicos em Victoria, quase metade dos que trataram doentes adultos com
doenças incuráveis disseram que um doente lhes pediu que apressassem a sua
morte, e 29% desses médicos disseram que haviam tomado medidas ativas para
provocar a morte de um doente que o havia solicitado. Dos que o fizeram, 80%
fizeram-no mais de uma vez. Um outro estudo com médicos em New South Wales deu
resultados virtualmente idênticos. Um inquérito com enfermeiros australianos
mostrou que 23% tiveram pedidos de um médico para se envolver numa ação que,
direta e ativamente, acabaria com a vida de um doente, e 85% dos entrevistados fizeram-no.
Mais de 80% fizeram-no mais de uma vez. Além disso, um pequeno número de
enfermeiros – 5% – respeitou o pedido de um doente para pôr fim direto à sua
vida, sem ter sido solicitado por um médico para o fazer24. Um estudo californiano com médicos de família mostrou um quadro bastante
semelhante, com 23% dos médicos a fazê-lo a doentes que solicitaram que
antecipasse a morte25. Com esses resultados,
podemos apenas supor o quão comum é a eutanásia ativa não-voluntária na
Austrália, nos EUA ou em qualquer outro país além dos Países Baixos. É mais
comum nos Países Baixos do que em outros lugares? Não há razão para acreditar
que seja, mas ninguém realmente sabe.
Há mais um ponto que precisa ser visto antes de deixarmos a situação
holandesa e os seus críticos. Os críticos concentram- se invariavelmente nos
1000 casos em que os médicos deram fármacos com a intenção de acabar com a vida
sem o consentimento explícito dos doentes. Não mencionam o número muito maior
de casos em que os médicos não iniciaram ou suspenderam tratamentos que
poderiam ter prolongado a vida, novamente sem o consentimento explícito do doente.
Isso aconteceu em 70% dos casos de recusa ou suspensão do tratamento médico,
totalizando 15 750 mortes. Em 88% desses casos, o doente não pôde ser
consultado, restando 12%, ou seja 1890, em que o doente podia ser consultado
mas não foi. O estudo holandês também nos diz que em quase metade do número
total de casos de recusa ou suspensão de tratamentos médicos, isso foi feito
com o propósito explícito de acelerar a morte. (Nos restantes, o médico ‘levou
em consideração a probabilidade de o fim da vida ser antecipado’.)
Esses casos de interrupção de tratamentos também são uma parte normal da
prática médica noutros países. Muitas vezes, são casos de encurtamento
intencional da vida e podem acabar com a vida com a mesma certeza de dar
cloreto de potássio (quando o tubo de alimentação de Tony Bland foi retirado, a
sua morte era tão certa, e não menos intencional, como qualquer morte que
ocorra como resultado de uma decisão médica nos Países Baixos.) Há algumas
provas que sugerem que a morte após a suspensão de tratamentos é uma ocorrência
comum. Já vimos isso no caso de recém-nascidos com deficiência grave.
Provavelmente, é mais comum ainda em idosos. Um estudo americano sobre mortes em
lares descobriu que 190 doentes tiveram febre, mas 81 deles não receberam
tratamento específico para isso. Quarenta e oito desses doentes a quem o
tratamento foi suspenso, morreram26.
Se não queremos que os médicos antecipem a morte dos seus doentes sem um
pedido explícito, por que não nos preocupamos tanto quando isso acontece em
resultado da suspensão de tratamentos como quando resulta de uma injeção? Muito
possivelmente, permitir a eutanásia voluntária ativa na verdade reduz o número
de doentes que os médicos permitem que morram ao suspenderem tratamentos sem o
seu pedido explícito. A remoção da proibição legal e do tabu social da
eutanásia voluntária ativa tem contribuído para uma atmosfera muito mais aberta
sobre essas questões. Portanto, parece plausível que nos Países Baixos haja
menos decisões de encurtamento de vida tomadas por médicos sem o consentimento
dos seus doentes do que em outros lugares. Não sabemos se este é o caso, tudo o
que podemos dizer com confiança é que não há provas em contrário.
Referências
19
Sue Rodriguez vs. The Attorney
General of Canada and the Attorney General of British Columbia, Canada Supreme
Court Reports, Part 4, 1993, vol. 3,
p. 603.
20
In addition to the government-instigated study
carried out by P.J. van der Maas and colleagues, I shall also draw for
additional information on a study by G. van der Wal, ‘Euthanasie en hulp bij
zelfodling door huisartsen’ [Euthanasia and assisted suicide performed by
general practitioner], Rotterdam 1992; of which some findings are given in
English in Euthanasia in the Netherlands: The
State of the Debate,
Royal Dutch Medical Association, Utrecht, February 1993. In what follows I have
been much assisted by Helga Kuhse, ‘Voluntary Euthanasia and Public Policy:
Some Important Distinctions and What We Can Learn From the Netherlands
Experience’, a paper presented at a conference organised by the Centre for
Human Bioethics, Monash University, 15 November 1993. See also Margaret Battin,
‘Voluntary Euthanasia and the Risks of Abuse: Can We Learn Anything from the
Netherlands?’, Law, Medicine and Health Care, vol. 20, n.os 1 and 2, Spring-Summer
1992, pp. 133-43.
21
On this topic, in addition to Euthanasia and Other Medical Decisions Concerning the End of Life, pp. 66-7, see J.J. M van Delden, Loes Pijnenborg
and Paul J. van der Maas, ‘The Remmelink Study: Two Years Late’, Hastings Center Report,
vol. 23, no. 26, November- December 1993, p. 24. See also Loes Pijnenborg et al. ‘Life-Terminating Acts
without Explicit Request of the Patient’, Lancet, vol. 341, 1993, pp.
1196-9.
22
‘The Remmelink Study: Two Years Later’, p. 26.
23
Times 23 September 1992.
24
The studies are, in the order cited: Helga Kuhse
and Peter Singer, ‘Doctors’ practices and attitudes regarding voluntary
euthanasia’, Medical Journal of Australia, vol. 148, 1988, pp. 623-7; Peter Baume and Emma
O’Malley, ‘Euthanasia: attitudes and practices of medical practitioners’, Medical Journal of Australia, vol. 161, 18 July 1994, pp. 137-64; Helga Kuhse
and Peter Singer, ‘Voluntary euthanasia and the nurse: an Australian survey’, International Journal of Nursing Studies, vol. 30, no. 4, 1993, pp. 311-22.
25
Survey of California Physicians
Regarding Voluntary Euthanasia for the Terminally Ill, National Hemlock Society, Los Angeles, 1988.
26
N. K. Brown and D. J. Thompson, ‘Nontreatment of
fever in extended-care facilities’, New England Journal of Medicine, vol 300, 1979, pp. 1246-50; cited in Euthanasia and Other Medical Decisions Concerning the End of Life, p. 184.