SIAARTI (Sociedade
Italiana de Anestesiologia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos)
Recomendações
de Ética Clínica para Admissão e Interrupção de Cuidados Intensivos em
Condições Excecionais de Desequilíbrio entre as Necessidades e os Recursos
Disponíveis
Tradução espontânea sem fins lucrativos de Raccomandazionidi etica clinica per l’ammissione a trattamenti intensivi e per la loro sospensione, in condizioni eccezionali di squilibrio tra necessità e risorse disponibili –
versão 1, publicada em 06.03.2020. Ver original AQUI
Grupo
de trabalho: Marco Vergano, Guido Bertolini, Alberto Giannini, Giuseppe
Gristina, Sergio Livigni, Giovanni Mistraletti, Flavia Petrini
As previsões sobre a epidemia
de Coronavírus (Covid-19) atualmente em curso em algumas regiões italianas
estimam um aumento de casos de insuficiência respiratória aguda (que requerem
admissão em cuidados intensivos) de tal magnitude em muitos centros nas
próximas semanas que haverá um enorme desequilíbrio entre as necessidades
clínicas reais da população e a disponibilidade real de recursos de cuidados
intensivos.
É um cenário em que podem ser
exigidos critérios de acesso a cuidados intensivos (e de alta) que não são só estritamente
de adequação clínica e proporcionalidade dos cuidados, mas são também
inspirados por um critério tão partilhado quanto possível de justiça
distributiva e alocação apropriada de recursos de saúde limitados.
Tal cenário é essencialmente
comparável ao da “medicina de catástrofes”, para o qual a reflexão ética
desenvolveu ao longo do tempo muitas indicações concretas para médicos e
enfermeiros empenhados em escolhas difíceis.
Como uma extensão do princípio
da proporcionalidade dos cuidados, a alocação num contexto de grave carência (escassez)
de recursos de cuidados de saúde deve ter como objetivo garantir um tratamento
intensivo aos doentes com maiores hipóteses de sucesso terapêutico: trata-se,
portanto, de dar prioridade à “maior esperança de vida”.
A necessidade de cuidados
intensivos deve portanto ser integrada com outros elementos de “idoneidade
clínica” para os cuidados intensivos, incluindo: o tipo e gravidade da doença,
a presença de comorbilidades, a deterioração de outros órgãos e sistemas e a
sua reversibilidade.
Isto implica não ter
necessariamente de seguir um critério de “primeiro a chegar, primeiro a ser
servido” para o acesso a cuidados intensivos.
É compreensível que os
prestadores de cuidados, devido à sua cultura e formação, não estejam
habituados a raciocinar com critérios de triagem de máxima emergência, uma vez
que a situação atual tem caraterísticas excecionais.
A disponibilidade de recursos
não entra normalmente no processo de tomada de decisões e de escolha de casos individuais
até os recursos se tornarem tão escassos que não seja possível tratar todos os
doentes que poderiam hipoteticamente beneficiar de um tratamento clínico
específico.
Está implícito que a aplicação
de critérios de racionamento só pode ser justificada depois de terem sido
feitos todos os esforços possíveis por todos os envolvidos (em particular as
“Unidades de Crise” e os órgãos de gestão das enfermarias hospitalares) para
aumentar a disponibilidade de recursos que podem ser disponibilizados (neste
caso, camas de cuidados intensivos) e depois de terem sido avaliadas todas as
possibilidades de transferência de doentes para centros com maior
disponibilidade de recursos.
É importante que uma mudança
nos critérios de acesso possa ser partilhada, tanto quanto possível, entre os
prestadores envolvidos.
Os doentes e os seus familiares
afetados pela aplicação dos critérios devem ser informados da natureza
extraordinária das medidas em vigor, como uma questão de dever de transparência
e de manutenção da confiança no serviço de saúde pública.
O objetivo das
recomendações é também o de:
(A) aliviar os clínicos de alguma a
responsabilidade pelas escolhas, que podem ser emocionalmente penosas, concretizadas
em casos individuais;
(B) explicitar os critérios de alocação
de recursos de cuidados de saúde em condições da sua extraordinária escassez.
Das
informações disponíveis até à data, uma proporção substancial das pessoas
diagnosticadas com infeção por Covid-19 requer apoio ventilatório devido a
pneumonite intersticial caracterizada por hipoxemia grave. A doença
intersticial é potencialmente reversível, mas a fase aguda pode durar vários
dias.
Em contraste
com os quadros mais conhecidos da Síndrome de Dificuldade Respiratória Aguda
(ARDS, em inglês), com a mesma hipoxemia, as pneumonites da Covid-19 parecem
ter uma complacência (compliance) pulmonar ligeiramente melhor e
responder melhor às terapias de recrutamento alveolar, com pressão positiva
expiratória final (PEEP, em inglês) média-alta, ciclos de pronação e óxido
nítrico inalado. Tal como com os quadros mais conhecidos da ARDS habitual,
estes doentes necessitam de ventilação protetora com baixa pressão motora (driving
pressure).
Tudo isto
implica que a intensidade dos cuidados pode ser elevada, assim como a
utilização de recursos humanos.
Segundo dados
das duas primeiras semanas em Itália, aproximadamente um décimo dos doentes
infetados necessita de tratamento intensivo com ventilação assistida, invasiva
ou não invasiva.
RECOMENDAÇÕES
1. Os critérios extraordinários de
admissão e alta são flexíveis e podem ser adaptados localmente à
disponibilidade de recursos, à possibilidade concreta de transferência de
doentes e ao número de admissões atuais ou planeadas. Os critérios dizem
respeito a todos os doentes de cuidados intensivos, não apenas aos doentes
infetados com Covid-19.
2. A alocação é uma escolha complexa e
muito delicada, até porque um aumento extraordinário das camas de cuidados
intensivos não garantiria cuidados adequados aos doentes individuais e
desviaria recursos, atenção e energia dos restantes doentes admitidos nas
Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). Também deve ser considerado o aumento previsível
da mortalidade por condições clínicas não relacionadas com a atual epidemia,
devido à redução da atividade cirúrgica e ambulatória eletiva e à escassez de
recursos dos cuidados intensivos.
3. Poderá ser necessário pôr um limite
de idade à entrada na UCI. Não se trata de fazer escolhas puramente baseadas em
valores, mas de reservar recursos que podem estar em falta para aqueles que têm
maior probabilidade de sobreviver e, em segundo lugar, para aqueles que podem
ter mais anos de vida salva, com vista a maximizar os benefícios para o maior
número de pessoas.
Num cenário de
saturação total dos recursos dos cuidados intensivos, decidir manter um
critério de “primeiro a chegar, primeiro a ser servido” equivaleria ainda a
optar por não tratar quaisquer doentes subsequentes que seriam excluídos da
UCI.
4. A presença de comorbidades e o
estado funcional devem ser cuidadosamente avaliados, para além da idade. É concebível
que um internamento relativamente curto em pessoas saudáveis se torne
potencialmente mais longo e, portanto, mais consumidor de recursos para o
serviço de saúde no caso de doentes idosos, frágeis ou com comorbidades graves.
Os critérios
clínicos específicos e gerais do documento SIAARTI de 2013 sobre
a falência de órgãos em fase final podem ser particularmente úteis para este
fim.
Deve também ser feita
referência ao documento SIAARTI sobre os critérios de admissão na UCI (Minerva
Anesthesiol 2003;69(3):101-118)
5. Deve ser cuidadosamente considerada a possível
presença de vontades previamente expressas pelos doentes através de qualquer
diretiva antecipada sobre o tratamento e, em particular, ao que for definido (e
juntamente com os prestadores de cuidados) por pessoas que já estão a passar
para doença crónica através do planeamento de cuidados partilhados.
6. Para os doentes para os quais o acesso a cuidados
intensivos é considerado “inadequado”, a decisão de pôr um limite aos cuidados
(“teto dos cuidados”) deve, em qualquer caso, ser justificada, comunicada e
documentada. O teto dos cuidados fixado antes da ventilação mecânica não deve
impedir intensidades mais baixas de cuidados.
7. Qualquer juízo de inadequação do acesso a cuidados
intensivos baseado unicamente em critérios de justiça distributiva
(desequilíbrio extremo entre procura e disponibilidade) é justificado pela
natureza extraordinária da situação.
8. No processo de decisão, se surgirem situações de
particular dificuldade e incerteza, pode ser útil ter uma “segunda opinião”
(possivelmente até apenas por telefone) de interlocutores particularmente
experientes (por exemplo, através do Centro de Coordenação Regional).
9. Os critérios de acesso à UCI devem
ser discutidos e definidos para cada doente com a maior antecedência possível,
idealmente criando a tempo uma lista de doentes que serão considerados
merecedores de cuidados na UCI quando ocorrer a deterioração clínica, desde que
a disponibilidade nesse momento o permita.
Uma possível
instrução “não intubar” deve constar do processo clínico, pronta a ser
utilizada como guia se a deterioração clínica ocorrer de forma precipitada e na
presença de prestadores de cuidados que não tenham participado no planeamento e
não conheçam o doente.
10. A sedação paliativa em doentes
hipóxicos com progressão da doença deve ser considerada necessária como expressão
de boas práticas clínicas e deve seguir as recomendações existentes. Se não se
espera que um período de agonia seja curto, deve ser providenciada a
transferência para um ambiente não intensivo.
11. Todas as admissões em cuidados
intensivos devem, em qualquer caso, ser consideradas e comunicadas como “ensaios
em UCI” e, portanto, sujeitas a uma reavaliação diária da adequação, dos
objetivos de tratamento e da proporcionalidade dos cuidados. No caso de um
doente, admitido talvez com critérios-limite, não responder a um tratamento
inicial prolongado ou se tornar gravemente complicado, a decisão de
“desistência terapêutica” e de reprogramar os cuidados intensivos para cuidados
paliativos - num cenário de afluxo de doentes excecionalmente elevado - não
deve ser adiada.
12. A decisão de limitar os cuidados
intensivos deve ser discutida e partilhada o mais colegialmente possível pela
equipa de cuidados e - na medida do possível - em diálogo com o doente (e
familiares), mas deve ser possível fazê-lo rapidamente. É de esperar que a
necessidade de fazer tais escolhas repetidamente torne o processo de tomada de
decisão em cada UCI mais robusto e mais adaptável à disponibilidade de
recursos.
13. O apoio da Oxigenação por Membrana Extracorporal
(ECMO, em inglês), como
consumidora de recursos em comparação com uma admissão normal na UCI, em
condições de entrada extraordinária, deve ser reservado para casos extremamente
selecionados, esperando-se um desmame relativamente rápido. O ideal seria que
fosse reservado para centros de referência de grande volume, para os quais o
doente ECMO absorve proporcionalmente menos recursos do que os que seriam
absorvidos num centro com menos experiência.
14. É importante “trabalhar em rede”,
agregando e trocando informações entre os centros e os profissionais. Quando as
condições de trabalho permitirem, no final da emergência, será importante
dedicar tempo e recursos para o balanço e monitorização do possível esgotamento
profissional e da angústia moral dos agentes.
15. Os efeitos nos familiares de doentes
admitidos nas UCI Covid-19 também devem ser considerados, especialmente nos
casos em que o doente morre no final de um período de total restrição de
visitas.