O grande Augusto Abelaira, quando padecia de doença fatal, teve a sorte e a arte de concluir e rever o seu livro – Nem só mas também (Editorial Presença, 2004) – que foi publicado postumamente, culminando uma obra cheia de saborosas ironias e diálogos interiores.
Ignoro os motivos por que o escritor escolheu estas conjunções copulativas para título do seu livro mas elas saltam-me à consciência muitas vezes quando ouço debates sobre a despenalização da ajuda médica à antecipação da morte iminente e inevitável, associando-a com conjunções disjuntivas ou alternativas à necessidade prévia de uma ampla rede de cuidados paliativos.
Já
escrevi neste jornal um pequeno texto Em defesa dos cuidados paliativos,
mas julgo oportuno voltar ao tema com uma nova reflexão seguida de umas
propostas concretas.
Ouve-se
frequentemente afirmar que, em certas situações
de sofrimento no estado terminal de uma doença, o doente deve passar a ser
seguido numa unidade de cuidados paliativos e que se torna urgente alargar e
tornar efetiva essa rede. Diz-se mesmo que só depois se poderá admitir o falhanço
desses cuidados. Creio, contudo, que o erro deste raciocínio está em se
estabelecer uma sequência temporal aos cuidados. Não, as medidas de alívio da
dor e do sofrimento têm de começar ao mesmo tempo que estes surgem e não só
quando falham os cuidados curativos. Não, não é só em serviços especializados
em cuidados terminais que tais medidas se aplicam – mas também nas casas dos doentes
e nos serviços hospitalares de todas as patologias.
Assim,
importa que fique expressamente
contemplado em diploma legal ou regulamento profissional que é dever dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos,
prestarem e providenciarem a prestação precoce de cuidados lenitivos sempre que
houver diagnóstico de doença incurável. Esta prática vai no sentido de se agir
antes de os sintomas intoleráveis se instalarem.
De
notar que optei pelo adjetivo “lenitivo” pois acredito que haverá vantagem em se
evitar o adjetivo “paliativo” por ter uma carga semântica ambígua e discriminatória.
Está, aparentemente, entranhada a noção equívoca de que só se usam paliativos quando
não há mais nada a oferecer.
Na
proposta de legislação que se anuncia vir a ser recuperada brevemente para votação
parlamentar está prevista uma Comissão de Verificação e Avaliação do Procedimento Clínico de Antecipação
de Morte a pedido do doente. Tendo em vista a importância de tal órgão, a bem
da sua eficácia, atrevo-me a propor
que, além dos membros indigitados pelos dois conselhos superiores das
magistraturas e pelas duas ordens profissionais, o quinto elemento seja o seu presidente,
escolhendo-se uma personalidade de reconhecido mérito aprovada por maioria na
Assembleia da República. Haveria toda a vantagem em que a todos os seus membros
fosse reconhecida, na lei, independência face às entidades indigitantes e
inamovibilidade (salvo motivo de força maior). Parece igualmente pacífico que a comissão só deveria iniciar funções
depois de audição pública de cada um dos seus elementos na Comissão de Saúde da
Assembleia da República, finda a
qual poderia ou não ser votada a não-conformidade do indigitado para as funções.