Negligência médica: não há vencedores
Tradução do editorial Medical negligence: there are no winners,
Os
custos com a negligência médica no Serviço Nacional de Saúde (SNS) do Reino
Unido estão a atingir novos níveis insustentáveis. No início deste mês, uma
menina de 9 anos conseguiu uma indemnização que pode ultrapassar os 17,1
milhões de euros por ter nascido com icterícia grave de que resultou uma lesão
cerebral. O SNS gastou 2 mil milhões de euros em reclamações por negligência no
ano financeiro de 2017-18 e o custo anual duplicou desde 2010. O total de
passivos calculado para 2017-18 – a despesa do SNS se todas as reclamações
fossem bem-sucedidas – é de 74,4 mil milhões de euros, bem acima da estimativa
para 2015-16 de 64,1 mil milhões de euros.
No
futuro, o número de ações judiciais parece destinado a aumentar ainda mais. A
mais recente pequena falha informática, responsável por 450 mil mulheres não
receberem uma convocatória para mamografias de rastreio, persistiu alegadamente
no sistema desde 2004, cinco anos antes da data indicada pelo Ministro da Saúde
Jeremy Hunt – como disseram Shama Sheikh e Peter Sasieni num texto publicado online
na revista The Lancet.
A
negligência médica tem sido objeto de análises detalhadas e repetidas. Em 1999,
o relatório de referência do Instituto de Medicina dos EUA, To Err is Human:
Building a Safer Health System, previu que os erros médicos evitáveis
conduziram a cerca de 98000 mortes todos os anos nos hospitais dos EUA.
Confirmou-se que os erros hospitalares eram a oitava principal causa de morte
em todo o país e que as questões relacionadas com a responsabilidade legal
desencorajavam as equipas de saúde de relatar erros. Em 2004, o então diretor
clínico (Chief Medical Officer) Liam Donaldson disse numa conferência
sobre segurança do doente que “Errar é humano, encobrir é imperdoável e não
aprender é indesculpável”. No Reino Unido, a questão foi exaustivamente
avaliada num inquérito público que levou à publicação, em 2013, do Relatório
Francis, na sequência dos acontecimentos no Mid Staffordshire NHS Foundation
Trust, onde, pelo menos, 1200 pessoas morreram entre 2005 e 2009 devido a
cuidados inferiores ao padrão.
Mais
recentemente, o documento de estratégia, Delivering fair resolution and
learning from harm, publicado em abril de 2017 pela autoridade de
contencioso do SNS – NHS Resolution – sublinhou a necessidade da
honestidade o mais cedo possível em situações potencialmente litigiosas. Há
novas formas de ver desde a revisão de casos de paralisia cerebral ou lesão
cerebral em que, entre 2012 e 2016, foi estabelecida uma responsabilidade
legal. As queixas relacionadas com obstetrícia e possíveis danos neonatais representam
50% do valor total de todas as especialidades. O relatório da NHS Resolution
“Cinco anos de queixas a propósito de Paralisia Cerebral”, publicado em
setembro de 2017, revelou que as famílias estavam envolvidas apenas em 20 das
50 investigações em que ocorreu um incidente grave. Também concluiu que as
investigações dos casos se concentravam mais nas pessoas do que nos sistemas.
Curiosamente, a necessidade de evitar “o risco de danos antes que aconteçam” é
uma recomendação da carta publicada em The Lancet por Terence Stephenson,
cuja liderança do General Medical Council foi essencial para que a jovem
médica Hadiza Bawa-Garba visse cassada a sua cédula médica depois de ter sido
condenada por homicídio por negligência grosseira. Ela pode ainda recorrer no
Tribunal da Relação em março.
Várias
soluções estão a ser utilizadas para minimizar o problema. Por exemplo, após um
ensaio piloto, foi lançado em dezembro de 2016 um serviço de mediação que,
depois de investigar 47 denúncias fatais ou relativas a idosos, conseguiu
resolver 81% dos casos sem recorrer ao tribunal. Em 2019, será introduzido um
esquema de indemnização apoiado pelo Estado para aliviar o peso do aumento dos
prémios de seguro de saúde.
As
medidas adicionais atualmente em fase de avaliação são a introdução de regimes
de custo fixo para queixas até ao valor de 25000 libras, a utilização de um
perito por processo que atue em conjunto com o queixoso e o arguido e o
nivelamento dos custos com o perito num máximo de 1200 libras. O Conselho de
Justiça Civil (Civil Justice Council) criou um grupo de trabalho para
avaliar as propostas, e deve fazer as suas recomendações em setembro deste ano.
Os opositores temem que o acesso à justiça esteja em risco, visto que os
queixosos podem não conseguir encontrar um advogado preparado para trabalhar em
regime de remunerações fixas. Também foram levantadas preocupações com a
segurança do doente: os entrevistados defendem que, se o acesso à justiça é
impedido e os casos com mérito não são tratados, então o SNS não é capaz de
aprender com o que acontece.
Nenhuma medida isolada irá solucionar o problema
insustentável do aumento dos custos devidos a negligência médica. No entanto,
várias ações importantes – no contexto de um contínuo aumento das despesas –
podem ajudar: i) a promoção da honestidade [NT: ver ou rever A
importância de ser honesto], ii) a defesa de uma cultura de solução de
problemas [NT: ver ou rever Mediação Bioética, por exemplo] em vez da
culpabilização do indivíduo e iii) a melhoria na qualidade de um serviço
que tem sido, durante 70 anos, crucial na prestação de cuidados de saúde
equitativos a milhões de pessoas. Em negligência médica, não há vencedores. ¢ The
Lancet