30 junho 2018

Vale a pena!

Revista Sinapse, volume 18, n.º 1, maio 2018

Breve reflexão, em forma de carta aberta, sobre um percurso profissional e o modo como a Neurologia pode ser vista por dentro. Tentativa de testemunhar aos jovens neurologistas o quanto pode ser importante saber lidar com o prognóstico e ter sempre presente que o doente é algo mais do que um caso clínico.

Car@s jovens neurologistas,
Convidaram-me a escrever um texto para a Sinapse sobre tema de minha escolha. Fiquei contente pois desde há uns tempos cirandavam pelas minhas circunvoluções umas ideias difusas que precisava de cerzir.
Dei os primeiros passos na Neurologia do Hospital de Santo António, Porto, no remoto ano de 1972, ingressando em 1975 no Internato Complementar, depois de regressar do difícil período de dois anos na guerra de Angola. Como neurologista autónomo, a partir de 1979, passei por vários hospitais e exerci clínica privada durante 25 anos. Não segui uma carreira típica do meu tempo, não me deixei atrair por projetos académicos e, tendo feito vários concursos públicos, terminei como chefe de serviço, conseguindo escapar a cargos de direção hospitalar. Quando, nos três anos anteriores a me aposentar, me dediquei a fundo a tratar de questões dos direitos e deveres, dei por mim a perceber que afinal devia ter começado por aí.
O aspeto que mais me impressionou no início foi o de ter ficado convencido que a Neurologia estava no centro do mundo. A figura esquemática que construí e onde me situava era tão real que bastava para responder ufano aos comentários que menosprezavam a nossa especialidade por se limitar a fazer diagnósticos.


É verdade que outros poderiam construir esquemas similares mas a centralidade da Neurologia era tão óbvia que não merecia ser posta em causa. Trabalhando vários anos como neurologista único de um hospital geral, aprendi, à custa de muito calcorrear, que todos pareciam precisar, “já agora”, da minha opinião. O exercício diário de tentar ligar sintomas e sinais a lesões neurológicas, localizá-las topograficamente e caraterizá-las quanto à sua natureza era tudo quanto tinha de fazer e era muito.
Vejo, agora, à distância dos tempos, que outras coisas me passavam ao largo, originando uma ou duas noites mal dormidas mas pouco mais. Recordo, ainda no decorrer do Internato, o caso de uma menina de 12 anos que me revelou, queixosa, que era abusada por um familiar próximo. Concluímos que era possível fazer um diagnóstico. Os desmaios que tinham justificado o pedido de consulta não eram, não eram mesmo, de natureza epilética. Estava feito o diagnóstico, não nos cabia, não nos ocorreu fazer algo mais. Os tempos eram outros – não havia obrigação de denunciar um crime? Não se falava nessas coisas. Não sei o que aconteceu à menina.
Muito rapidamente, apercebi-me de que o paradigma de especialidade dos diagnósticos, que nada tinha para tratar, era falso. É certo que poucas são as situações de verdadeira cura, mas a terapêutica neurológica deu saltos de gigante a partir dos anos 80 do século XX. Contudo, estou em crer que a maioria dos neurologistas desses tempos (e talvez também do século XXI) pouco ou nada se preocupava com aspetos que, hoje em dia, são cruciais no cuidar.
Recordo vários doentes que segui com tumores cerebrais inoperáveis e que, não consigo saber como nem quando, desapareceram do meu radar. Não sei o que aconteceu. A dada altura, era como se não tivesse mais para fazer e a fase terminal das suas vidas ocorria noutros locais e com outros médicos. Os tempos eram outros – não se falava de cuidados paliativos. Julgo saber que mesmo atualmente há ainda a tendência para pensar que os cuidados paliativos só se prestam em unidades especializadas.
Deixei de exercer clínica há cerca de 14 anos, seguro de que a retirada tardia era um risco que não queria correr e receoso de que a retirada precoce me fosse penosa. Felizmente, penso que evitei o risco e não sofri as dores que alguns referem.
Dirijo este texto aos jovens neurologistas não com a pretensão de descrever um percurso exemplar. Move-me a vontade de demonstrar o quanto Abel Salazar estava certo: o médico que só sabe Medicina, nem Medicina sabe. Ou, melhor, a Medicina não é só diagnosticar e tratar para a cura. Tão pouco é só evitar ou atrasar a morte. Desde há muitos anos me apercebi – como certamente todos quantos me estão a ler – de que a parte mais nobre e influente do clinicar é a do prognóstico.
A pergunta mais dramática que nos fazem não é “o que tenho?” – é “o que me vai acontecer?”
Ora, para os casos de prognóstico reservado ou fatal, espero bem que as novas gerações tenham formação sobre modos de agir – coisa que não tive.
Falta-me autoridade moral e académica para dar lições sobre estes assuntos. Gostei muito de estudar questões éticas do exercício profissional mas só muito tarde comprei o livro de James L. Bernat, “Ethical issues in Neurology”, (Butterworth Heinmann, 1994; Lippincott Williams & Wilkins, 3.ª ed, 2008), cujo índice é bem demonstrativo da sua importância. 

Fiz parte de várias comissões de ética mas reconheço que não consegui que deixassem o papel passivo reativo – continuam silenciosas e ignoradas, apesar das muitas horas despendidas pelos seus membros. Pela minha parte, contabilizo uma boa dose de reflexão sobre estes temas mas continuo a surpreender-me com palavras que leio e gostaria de ter escrito. É o caso do que escreveu Desidério Murcho, filósofo português radicado no Brasil, no seu livro “Pensar Outra Vez” (Quasi Edições, 2005 - Amazon): «Assim, não há boas razões para aceitar o subjetivismo quanto ao sentido da vida. Uma vida com sentido não é apenas uma vida subjetivamente realizada; nem apenas uma vida valorizada pela comunidade. Uma vida com sentido é uma vida ativamente empenhada em valores objetivos. Mas estes valores são-nos familiares: são os valores estéticos, éticos e cognitivos.»
Mas, de facto, o que gostava de vos dizer era que acredito sinceramente que o curso da História tem um sentido positivo. E que, porque isso se aplica à Medicina e à Neurologia em especial, tenho a certeza de que, quando chegarem ao final das vossas carreiras, ireis ver como as coisas mudaram e ainda bem. É só estar atento e fazer por isso. Vale a pena!
Porto, junho de 2018


04 junho 2018

Negligência médica: não há vencedores

Negligência médica: não há vencedores 

Tradução do editorial Medical negligence: there are no winners

Os custos com a negligência médica no Serviço Nacional de Saúde (SNS) do Reino Unido estão a atingir novos níveis insustentáveis. No início deste mês, uma menina de 9 anos conseguiu uma indemnização que pode ultrapassar os 17,1 milhões de euros por ter nascido com icterícia grave de que resultou uma lesão cerebral. O SNS gastou 2 mil milhões de euros em reclamações por negligência no ano financeiro de 2017-18 e o custo anual duplicou desde 2010. O total de passivos calculado para 2017-18 – a despesa do SNS se todas as reclamações fossem bem-sucedidas – é de 74,4 mil milhões de euros, bem acima da estimativa para 2015-16 de 64,1 mil milhões de euros.

No futuro, o número de ações judiciais parece destinado a aumentar ainda mais. A mais recente pequena falha informática, responsável por 450 mil mulheres não receberem uma convocatória para mamografias de rastreio, persistiu alegadamente no sistema desde 2004, cinco anos antes da data indicada pelo Ministro da Saúde Jeremy Hunt – como disseram Shama Sheikh e Peter Sasieni num texto publicado online na revista The Lancet.

A negligência médica tem sido objeto de análises detalhadas e repetidas. Em 1999, o relatório de referência do Instituto de Medicina dos EUA, To Err is Human: Building a Safer Health System, previu que os erros médicos evitáveis conduziram a cerca de 98000 mortes todos os anos nos hospitais dos EUA. Confirmou-se que os erros hospitalares eram a oitava principal causa de morte em todo o país e que as questões relacionadas com a responsabilidade legal desencorajavam as equipas de saúde de relatar erros. Em 2004, o então diretor clínico (Chief Medical Officer) Liam Donaldson disse numa conferência sobre segurança do doente que “Errar é humano, encobrir é imperdoável e não aprender é indesculpável”. No Reino Unido, a questão foi exaustivamente avaliada num inquérito público que levou à publicação, em 2013, do Relatório Francis, na sequência dos acontecimentos no Mid Staffordshire NHS Foundation Trust, onde, pelo menos, 1200 pessoas morreram entre 2005 e 2009 devido a cuidados inferiores ao padrão.

Mais recentemente, o documento de estratégia, Delivering fair resolution and learning from harm, publicado em abril de 2017 pela autoridade de contencioso do SNS – NHS Resolution – sublinhou a necessidade da honestidade o mais cedo possível em situações potencialmente litigiosas. Há novas formas de ver desde a revisão de casos de paralisia cerebral ou lesão cerebral em que, entre 2012 e 2016, foi estabelecida uma responsabilidade legal. As queixas relacionadas com obstetrícia e possíveis danos neonatais representam 50% do valor total de todas as especialidades. O relatório da NHS Resolution “Cinco anos de queixas a propósito de Paralisia Cerebral”, publicado em setembro de 2017, revelou que as famílias estavam envolvidas apenas em 20 das 50 investigações em que ocorreu um incidente grave. Também concluiu que as investigações dos casos se concentravam mais nas pessoas do que nos sistemas. Curiosamente, a necessidade de evitar “o risco de danos antes que aconteçam” é uma recomendação da carta publicada em The Lancet por Terence Stephenson, cuja liderança do General Medical Council foi essencial para que a jovem médica Hadiza Bawa-Garba visse cassada a sua cédula médica depois de ter sido condenada por homicídio por negligência grosseira. Ela pode ainda recorrer no Tribunal da Relação em março.

Várias soluções estão a ser utilizadas para minimizar o problema. Por exemplo, após um ensaio piloto, foi lançado em dezembro de 2016 um serviço de mediação que, depois de investigar 47 denúncias fatais ou relativas a idosos, conseguiu resolver 81% dos casos sem recorrer ao tribunal. Em 2019, será introduzido um esquema de indemnização apoiado pelo Estado para aliviar o peso do aumento dos prémios de seguro de saúde.

As medidas adicionais atualmente em fase de avaliação são a introdução de regimes de custo fixo para queixas até ao valor de 25000 libras, a utilização de um perito por processo que atue em conjunto com o queixoso e o arguido e o nivelamento dos custos com o perito num máximo de 1200 libras. O Conselho de Justiça Civil (Civil Justice Council) criou um grupo de trabalho para avaliar as propostas, e deve fazer as suas recomendações em setembro deste ano. Os opositores temem que o acesso à justiça esteja em risco, visto que os queixosos podem não conseguir encontrar um advogado preparado para trabalhar em regime de remunerações fixas. Também foram levantadas preocupações com a segurança do doente: os entrevistados defendem que, se o acesso à justiça é impedido e os casos com mérito não são tratados, então o SNS não é capaz de aprender com o que acontece.

Nenhuma medida isolada irá solucionar o problema insustentável do aumento dos custos devidos a negligência médica. No entanto, várias ações importantes – no contexto de um contínuo aumento das despesas – podem ajudar: i) a promoção da honestidade [NT: ver ou rever A importância de ser honesto], ii) a defesa de uma cultura de solução de problemas [NT: ver ou rever Mediação Bioética, por exemplo] em vez da culpabilização do indivíduo e iii) a melhoria na qualidade de um serviço que tem sido, durante 70 anos, crucial na prestação de cuidados de saúde equitativos a milhões de pessoas. Em negligência médica, não há vencedores. ¢ The Lancet