Revista Sinapse, volume 18, n.º 1, maio 2018
Breve reflexão, em forma de carta aberta, sobre um percurso profissional e o modo como a Neurologia pode ser vista por dentro. Tentativa de testemunhar aos jovens neurologistas o quanto pode ser importante saber lidar com o prognóstico e ter sempre presente que o doente é algo mais do que um caso clínico.
Car@s jovens neurologistas,
Convidaram-me a escrever um texto para a Sinapse
sobre tema de minha escolha. Fiquei contente pois desde há uns tempos
cirandavam pelas minhas circunvoluções umas ideias difusas que precisava de
cerzir.
Dei os primeiros passos na Neurologia do
Hospital de Santo António, Porto, no remoto ano de 1972, ingressando em 1975 no
Internato Complementar, depois de regressar do difícil período de dois anos na
guerra de Angola. Como neurologista autónomo, a partir de 1979, passei por
vários hospitais e exerci clínica privada durante 25 anos. Não segui uma
carreira típica do meu tempo, não me deixei atrair por projetos académicos e,
tendo feito vários concursos públicos, terminei como chefe de serviço,
conseguindo escapar a cargos de direção hospitalar. Quando, nos três anos
anteriores a me aposentar, me dediquei a fundo a tratar de questões dos
direitos e deveres, dei por mim a perceber que afinal devia ter começado por
aí.
O aspeto que mais me impressionou no início foi o de ter
ficado convencido que a Neurologia estava no centro do mundo. A figura
esquemática que construí e onde me situava era tão real que bastava para
responder ufano aos comentários que menosprezavam a nossa especialidade por se
limitar a fazer diagnósticos.
É verdade que outros poderiam
construir esquemas similares mas a centralidade da Neurologia era tão óbvia que
não merecia ser posta em causa. Trabalhando vários anos como neurologista único
de um hospital geral, aprendi, à custa de muito calcorrear, que todos pareciam
precisar, “já agora”, da minha opinião. O exercício diário de tentar ligar
sintomas e sinais a lesões neurológicas, localizá-las topograficamente e
caraterizá-las quanto à sua natureza era tudo quanto tinha de fazer e era
muito.
Vejo, agora, à distância dos
tempos, que outras coisas me passavam ao largo, originando uma ou duas noites
mal dormidas mas pouco mais. Recordo, ainda no decorrer do Internato, o caso de
uma menina de 12 anos que me revelou, queixosa, que era abusada por um familiar
próximo. Concluímos que era possível fazer um diagnóstico. Os desmaios que
tinham justificado o pedido de consulta não eram, não eram mesmo, de natureza
epilética. Estava feito o diagnóstico, não nos cabia, não nos ocorreu fazer
algo mais. Os tempos eram outros – não havia obrigação de denunciar um crime?
Não se falava nessas coisas. Não sei o que aconteceu à menina.
Muito rapidamente, apercebi-me de
que o paradigma de especialidade dos diagnósticos, que nada tinha para tratar,
era falso. É certo que poucas são as situações de verdadeira cura, mas a
terapêutica neurológica deu saltos de gigante a partir dos anos 80 do século
XX. Contudo, estou em crer que a maioria dos neurologistas desses tempos (e
talvez também do século XXI) pouco ou nada se preocupava com aspetos que, hoje
em dia, são cruciais no cuidar.
Recordo vários doentes que segui
com tumores cerebrais inoperáveis e que, não consigo saber como nem quando,
desapareceram do meu radar. Não sei o que aconteceu. A dada altura, era como se
não tivesse mais para fazer e a fase terminal das suas vidas ocorria noutros
locais e com outros médicos. Os tempos eram outros – não se falava de cuidados
paliativos. Julgo saber que mesmo atualmente há ainda a tendência para pensar
que os cuidados paliativos só se prestam em unidades especializadas.
Deixei
de exercer clínica há cerca de 14 anos, seguro de que a retirada tardia era um
risco que não queria correr e receoso de que a retirada precoce me fosse
penosa. Felizmente, penso que evitei o risco e não sofri as dores que alguns
referem.
Dirijo este texto aos jovens
neurologistas não com a pretensão de descrever um percurso exemplar. Move-me a
vontade de demonstrar o quanto Abel Salazar estava certo: o médico que só sabe Medicina,
nem Medicina sabe. Ou, melhor, a Medicina não é só diagnosticar e tratar para a
cura. Tão pouco é só evitar ou atrasar a morte. Desde há muitos anos me
apercebi – como certamente todos quantos me estão a ler – de que a parte mais
nobre e influente do clinicar é a do prognóstico.
A pergunta mais dramática que nos
fazem não é “o que tenho?” – é “o que me vai acontecer?”
Ora, para os casos de prognóstico
reservado ou fatal, espero bem que as novas gerações tenham formação sobre
modos de agir – coisa que não tive.
Falta-me autoridade moral e
académica para dar lições sobre estes assuntos. Gostei muito de estudar
questões éticas do exercício profissional mas só muito tarde comprei o livro de
James L. Bernat, “Ethical issues in
Neurology”, (Butterworth Heinmann, 1994; Lippincott Williams & Wilkins,
3.ª ed, 2008), cujo índice é bem demonstrativo da sua importância.
Fiz parte de várias comissões de ética mas reconheço que não consegui que deixassem o papel passivo reativo – continuam silenciosas e ignoradas, apesar das muitas horas despendidas pelos seus membros. Pela minha parte, contabilizo uma boa dose de reflexão sobre estes temas mas continuo a surpreender-me com palavras que leio e gostaria de ter escrito. É o caso do que escreveu Desidério Murcho, filósofo português radicado no Brasil, no seu livro “Pensar Outra Vez” (Quasi Edições, 2005 - Amazon): «Assim, não há boas razões para aceitar o subjetivismo quanto ao sentido da vida. Uma vida com sentido não é apenas uma vida subjetivamente realizada; nem apenas uma vida valorizada pela comunidade. Uma vida com sentido é uma vida ativamente empenhada em valores objetivos. Mas estes valores são-nos familiares: são os valores estéticos, éticos e cognitivos.»
Mas, de facto, o que gostava de vos
dizer era que acredito sinceramente que o curso da História tem um sentido
positivo. E que, porque isso se aplica à Medicina e à Neurologia em especial, tenho
a certeza de que, quando chegarem ao final das vossas carreiras, ireis ver como
as coisas mudaram e ainda bem. É só estar atento e fazer por isso. Vale a pena!
Porto, junho de 2018