J Med Ethics February 2016 Vol 42 No 2
Tradução espontânea de editorial do JME, Contextualising consent
Michael Dunn, Editor Associado
Nenhum eticista que se preza negará que o consentimento é
um conceito fundacional da ética médica contemporânea. Os eticistas académicos
gastam horas incontáveis a dissecar o consentimento com grande pormenor
teórico: dando conteúdo aos seus diferentes componentes, indo até ao seu legado
moral, marcando e defendendo os seus limites. Em ambiente de prática médica, a
tendência é seguir outro caminho. A obtenção de consentimento aqui arrisca-se a
ser um ato excessivamente procedimental; a colocação de mais um visto na ficha
apenas para garantir que a prática médica está de acordo com as obrigações
profissionais em vigor. Neste ambiente o consentir passa subtilmente a ser
usado como verbo e não como substantivo. É comum ouvir médicos e estudantes de
medicina falarem do ‘consentir’ dos seus doentes como uma ação diferente e
distante que pesquisas anteriores sugerem poder perturbar os encontros em
cuidados de saúde, despersonalizar a prestação de cuidados e diminuir a
qualidade da comunicação entre médico e doente 1.
Em ambiente de investigação médica, esta abordagem do
consentimento na prática foi já descrita como ‘ética vazia’ 2, onde a
obtenção do consentimento dos participantes na investigação é retirada do
contexto do mundo real no qual o seu significado e valor podem fazer sentido.
Tem de ser certo que, embora as cuidadosas dissecações filosóficas do
consentimento e do seu valor nos permitam compreendê-lo melhor, a nossa
capacidade de melhorarmos a prática – e de evitar uma abordagem regulamentada
que trata o ‘consentir’ como uma mera questão de cumprimento profissional –
depende da nossa capacidade de levar a sério os vários contextos em que há
necessidade de consentimento. Isto é em parte assim porque, no fundo, o
consentimento diz respeito a dar ou negar um certo tipo de autorização. Estas
autorizações no mundo dos cuidados de saúde contemplam interações
interpessoais, moldadas pelo contexto social e pelas peculiaridades da
linguagem. O consentimento é, pois, uma coisa complicada. O processo para a
obtenção, de modo eticamente defensável, do consentimento depende da capacidade
de quem o executa em atender às particularidades do doente ou do participante
na investigação, do assunto em causa e do contexto sociocultural em que são
pedidos os diversos tipos de autorização.
Esta breve exposição deve tornar imediatamente evidente
que obter o consentimento de doente exige um grau significativo de aptidão. As
aptidões de que aqui se fala não são, contudo, relativas à capacidade do médico
em formular minuciosamente o respeito pela autonomia inerente ao consentimento
ou de ser capaz de memorizar a listas de factos médicos de que deve falar ao
doente. Pelo contrário, obter corretamente o consentimento obriga a que os
médicos reflitam continuadamente sobre o como, o quê e o quando das interações
com doentes para que seja claro se o doente concorda com o modo como o ato em
apreço influencia o rumo dos cuidados clínicos em curso.
Este número do Journal of Medical Ethics * inclui um conjunto de artigos que, de
diversas formas, pretendem navegar na complicação intrínseca ao consentimento
de tal modo que os encontros entre médicos e doentes sejam adequados ao
contexto. Um aspeto central, em que a contextualização do consentimento se
manifesta, é o do relacionamento entre a linha da frente da prática de cuidados
de saúde e as regras legais que a regem. Dois artigos, de Farrell e Brazier (ver p.
85) e de Montgomery e Montgomery (ver p.
89), apresentam uma análise crítica de um julgamento recente
no Supremo Tribunal britânico centrado na obrigação de informar própria do
consentimento válido. A posição expressa no julgamento Montgomery obriga a que os médicos personalizem
a informação que dão aos doentes, tendo em conta aquilo que um doente razoável
esperaria saber, dadas as circunstâncias da situação, em vez de referirem
critérios profissionais baseados em consensos médicos.
Farrell e Brazier apresentam uma história pormenorizada e
útil da herança jurídica da sua criação e analisa as implicações que a lei e as
práticas médicas provavelmente terão no futuro do Reino Unido. Contrariamente,
Montgomery e Montgomery contrariam o próprio fundamento judicial do caso,
argumentando que os magistrados que julgaram o caso no Supremo Tribunal fizeram
inferências problemáticas e caíram numa série de equívocos. Uma questão em
especial levantada por Montgomery e Montgomery é a que resulta da competência
dos cuidados de saúde, segundo a opinião dos juízes, para distinguir opiniões
puramente médicas (i.e. se uma determinada medicação é eficaz) de outras que
envolvem considerações não médicas (i.e. que riscos revelar a um doente ou que
rumo de tratamento se recomenda). Como notam os autores, preocuparmo-nos em
aplicar verificações legais diferentes a estas duas espécies de opiniões vai
contra a corrente das práticas assistenciais e da formação, focadas fortemente
numa apreciação holística dos interesses e necessidades dos doentes, num modelo
de tomadas de decisão partilhado.
Embora a principal atenção do caso Montgomery esteja centrada em demonstrar o valor
do respeito pela autonomia dos doentes na prática médica, essa não deve ser a
única conclusão que os que trabalham em cuidados de saúde devem tirar deste
julgamento ou de desenvolvimentos semelhantes noutras jurisdições. Tanto na
educação como na prática, o ajustamento da informação ao que um doente razoável
espera receber, dadas as circunstâncias específicas de cada doente individual,
não é apenas uma questão de pedir ao doente que partilhe os seus valores de
modo a personalizar o consentimento e a dar a informação que interessa ao
doente. Isso faz correr o risco, de novo, de afastar o processo de
consentimento do encontro médico em que se situa. Saber como articular os valores
do doente, quando o fazer e como adaptar a conversa sobre as opções do
tratamento, de modo a permitir que seja o doente a tomar uma decisão
devidamente informada, é um requisito chave, tanto ética como legalmente. A lei
preocupa-se igualmente em fomentar parcerias terapêuticas onde os médicos, como
parceiros ativos na tomada de decisões, dão opiniões corretas e qualificadas sobre
quais as opções terapêuticas a oferecer e quais os riscos a revelar aos seus
doentes; como Farrell e Brazier afirmam, ‘os caminhos do saber são contextuais’.
Interpretar estes desenvolvimentos legais deste modo está longe de ser uma
visão rudimentar e simplista que vê no julgamento do Supremo Tribunal uma
obrigação legal de os médicos se ajoelharem perante os valores dos doentes para
obterem um consentimento válido, mais do que o saber fundamentado dos seus
estimados colegas.
Numa outra escala de análise, também se pode ver que o
desafio de obter um consentimento válido pode ser especialmente agudo em
contextos práticos específicos. Contextualizar corretamente o consentimento
nestes cenários pode ser duvidoso e provocar discordâncias significativas. Numa
série de artigos, Youngs e Simonds tratam de saber se a informação sobre o
diagnóstico de VIH deve ser revelada a um doente quando esse doente manifesta o
desejo de não ser informado do resultado das análises ao VIH. Os autores criticam
a visão generalizada de que o direito a não saber o resultado de uma análise ao
VIH resulta linearmente do respeito devido à autonomia pessoal, em vez de se
defender que o interesse dos doentes em não saberem tais resultados deve ser
contrabalançado com os subsequentes benefícios e prejuízos para o próprio e
outros se essa informação for revelada (ver p. 95). Esta
posição, acreditam, pode ser assumida desde que o doente mantenha o direito
absoluto a não querer realizar a análise.
Chan (ver p. 100) contribui com a sua perspetiva,
embora se esforce por salientar que esses prejuízos e benefícios devem ser
calculados com cuidado. Para Andorno (ver p. 104), é o
interesse de terceiros que invalida os argumentos, baseados na autonomia, a
favor do direito do doente a não saber o resultado das análises. Como ele
afirma, a questão mais interessante não é se o doente tem direito a não saber
mas as circunstâncias em que o doente tem o ‘dever de saber’ o resultado das
análises com vista a evitar o prejuízo de outros. Foster (ver p.
106) argumenta contra a possibilidade de se atender a alegação
de que um doente mantém o direito de recusar fazer um teste do VIH mas, por
outro lado, não se reconhecer o direito equivalente a não saber o seu
resultado. A conclusão de Foster é essencialmente que, em relação às análises
do VIH, o contexto realmente importa; provavelmente, a ação correta é prestar
tanta atenção aos factos que não tem sentido desenhar uma linha divisória
absoluta entre a recusa de realizar o teste e a recusa de saber o resultado.
Outro contexto onde as questões do consentimento podem
ser especialmente exigentes é o dos cuidados a crianças. Quando há decisões em
nome de crianças incapazes de, por si mesmas, darem consentimento, Birchley
argumenta contra a moda bioética de resistir à tendência, neste contexto, de
trocar o critério do melhor interesse, com um mínimo de danos, por uma tomada
de decisões alternativa (ver p. 111). Birchley conclui que os eticistas
médicos dariam por mais bem empregue o seu tempo se clarificassem os valores que
importam à correta avaliação dos melhores interesses do que a ver a
conceptualização do prejuízo, e dos seus limites, como uma panaceia para
determinar o que é melhor para as crianças.
Três comentadores convidados discordam de um conjunto de
temas levantados por Birchley. Nair e Wilkinson (ver p. 116) apresentam
uma série de razões para pensar que o mínimo de danos é preferível a uma
abordagem fundada em maximizar o bem-estar das crianças, embora mostrem de modo
convincente a posição que ambas abordagens podiam operar em conjunto para os
melhores cuidados das crianças. Do mesmo modo, McDougall (ver p.
119) argumenta que era melhor que as alegações avançadas por
Birchley se centrassem na necessidade de desenvolver uma lista completa do que
é bom para as crianças e que a sua crítica empírica ao dano mínimo esquece que
quem o defende identifica-se com uma visão normativa central do papel dos pais
na vida das crianças, mantida inalterada na tese principal de Birchley. É
certamente necessário trabalhar mais para dar sentido ao cruzamento entre o
conceito do papel dos pais e o dos interesses das crianças. De novo, contudo,
parece que o contexto é crucial para sabermos como aplicar esses conceitos. As
decisões sobre tratamentos médicos e sobre a localização dos cuidados são
decisões que colidem com os interesses de ambas as partes de diversas maneiras,
um ponto que Foster reconhece quando compara os enquadramentos legais dos
médicos e das famílias no que concerne às tomadas de decisão pelas crianças (ver p.
123).
Algures neste Journal, de Vries revela como é difícil
contextualizar o consentimento devido a diferenças socioculturais e ao impacto inigualável
das novas tecnologias (ver p. 132). O Consórcio H3Africa destina-se a
apoiar projetos que usam tecnologias genómicas para investigar doenças que
afetam populações africanas. As suas avaliações dos formulários de
consentimento usados em projetos H3Africa mostram abordagens muito diferentes
para obter consentimento informado de participantes em investigações, assim
como discrepâncias entre as estratégias dos investigadores sobre partilha de
dados e achados incidentais – tanto entre estudos como no vasto enquadramento
político do H3Africa. Como de Vries reconhece, é precisamente porque foram
adotadas estas diferentes abordagens que são necessárias mais investigações
empíricas. Parece claro, porém, que contextualizar adequadamente o
consentimento no seio da investigação médica tem muito caminho a percorrer
antes que as boas práticas sejam clarificadas e acionadas.
O consentimento continua merecidamente a ser uma área de
investigação em ética médica que o Journal está interessado em promover em
diálogo académico. Uma área especialmente produtiva para a investigação
consiste em contextualizar adequadamente o consentimento nos diferentes
cenários da prática e da investigação, dando orientações que ajudem os
profissionais de saúde e os investigadores a trabalhar no meio das complicadas
interações interpessoais nas quais são formuladas, apresentadas e decididas autorizações
deste tipo.