16 março 2016

História de uma Mediação em Ambiente Clínico

The Journal of Clinical Ethics, Spring 2016 

História de uma Mediação em Ambiente Clínico
Haavi Morreim

Tradução espontânea do artigo


RESUMO: Em ambiente clínico, os conflitos podem aparecer vertiginosamente, à medida que as partes se tornam cada vez mais inflamadas e entrincheiradas nas suas posições. Parece improvável, na melhor das hipóteses, haver conversas proveitosas. No entanto, tais situações podem às vezes transformar-se em soluções colaborativas de problemas a velocidade igualmente notável. Para que isso aconteça, quem presta serviços de resolução de conflitos, como a mediação, precisam ter não apenas um conjunto de competências, mas também algumas normas básicas: o processo deve ser voluntário para todos, o mediador deve renunciar a dar conselhos ou tomar partido e deve respeitar a reserva dos pensamentos apresentados em privado.

Este artigo descreve um conflito que chegou ao ponto de um hospital solicitar decisão com força legal. Contudo, iniciou-se então um processo de resolução de conflitos que, no final, levou a uma solução amigável e reparou as relações, evitando a necessidade de ordens judiciais. Este artigo descreve detalhadamente esse conflito e o processo de resolução, anotando estratégias específicas geralmente altamente eficazes.

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03 março 2016

Contextualizar o consentimento

J Med Ethics February 2016 Vol 42 No 2

Tradução espontânea de editorial do JME, Contextualising consent  

Michael Dunn, Editor Associado

Nenhum eticista que se preza negará que o consentimento é um conceito fundacional da ética médica contemporânea. Os eticistas académicos gastam horas incontáveis a dissecar o consentimento com grande pormenor teórico: dando conteúdo aos seus diferentes componentes, indo até ao seu legado moral, marcando e defendendo os seus limites. Em ambiente de prática médica, a tendência é seguir outro caminho. A obtenção de consentimento aqui arrisca-se a ser um ato excessivamente procedimental; a colocação de mais um visto na ficha apenas para garantir que a prática médica está de acordo com as obrigações profissionais em vigor. Neste ambiente o consentir passa subtilmente a ser usado como verbo e não como substantivo. É comum ouvir médicos e estudantes de medicina falarem do ‘consentir’ dos seus doentes como uma ação diferente e distante que pesquisas anteriores sugerem poder perturbar os encontros em cuidados de saúde, despersonalizar a prestação de cuidados e diminuir a qualidade da comunicação entre médico e doente 1.

Em ambiente de investigação médica, esta abordagem do consentimento na prática foi já descrita como ‘ética vazia’ 2, onde a obtenção do consentimento dos participantes na investigação é retirada do contexto do mundo real no qual o seu significado e valor podem fazer sentido. Tem de ser certo que, embora as cuidadosas dissecações filosóficas do consentimento e do seu valor nos permitam compreendê-lo melhor, a nossa capacidade de melhorarmos a prática – e de evitar uma abordagem regulamentada que trata o ‘consentir’ como uma mera questão de cumprimento profissional – depende da nossa capacidade de levar a sério os vários contextos em que há necessidade de consentimento. Isto é em parte assim porque, no fundo, o consentimento diz respeito a dar ou negar um certo tipo de autorização. Estas autorizações no mundo dos cuidados de saúde contemplam interações interpessoais, moldadas pelo contexto social e pelas peculiaridades da linguagem. O consentimento é, pois, uma coisa complicada. O processo para a obtenção, de modo eticamente defensável, do consentimento depende da capacidade de quem o executa em atender às particularidades do doente ou do participante na investigação, do assunto em causa e do contexto sociocultural em que são pedidos os diversos tipos de autorização.

Esta breve exposição deve tornar imediatamente evidente que obter o consentimento de doente exige um grau significativo de aptidão. As aptidões de que aqui se fala não são, contudo, relativas à capacidade do médico em formular minuciosamente o respeito pela autonomia inerente ao consentimento ou de ser capaz de memorizar a listas de factos médicos de que deve falar ao doente. Pelo contrário, obter corretamente o consentimento obriga a que os médicos reflitam continuadamente sobre o como, o quê e o quando das interações com doentes para que seja claro se o doente concorda com o modo como o ato em apreço influencia o rumo dos cuidados clínicos em curso.

Este número do Journal of Medical Ethics * inclui um conjunto de artigos que, de diversas formas, pretendem navegar na complicação intrínseca ao consentimento de tal modo que os encontros entre médicos e doentes sejam adequados ao contexto. Um aspeto central, em que a contextualização do consentimento se manifesta, é o do relacionamento entre a linha da frente da prática de cuidados de saúde e as regras legais que a regem. Dois artigos, de Farrell e Brazier (ver p. 85) e de Montgomery e Montgomery (ver p. 89), apresentam uma análise crítica de um julgamento recente no Supremo Tribunal britânico centrado na obrigação de informar própria do consentimento válido. A posição expressa no julgamento Montgomery obriga a que os médicos personalizem a informação que dão aos doentes, tendo em conta aquilo que um doente razoável esperaria saber, dadas as circunstâncias da situação, em vez de referirem critérios profissionais baseados em consensos médicos.

Farrell e Brazier apresentam uma história pormenorizada e útil da herança jurídica da sua criação e analisa as implicações que a lei e as práticas médicas provavelmente terão no futuro do Reino Unido. Contrariamente, Montgomery e Montgomery contrariam o próprio fundamento judicial do caso, argumentando que os magistrados que julgaram o caso no Supremo Tribunal fizeram inferências problemáticas e caíram numa série de equívocos. Uma questão em especial levantada por Montgomery e Montgomery é a que resulta da competência dos cuidados de saúde, segundo a opinião dos juízes, para distinguir opiniões puramente médicas (i.e. se uma determinada medicação é eficaz) de outras que envolvem considerações não médicas (i.e. que riscos revelar a um doente ou que rumo de tratamento se recomenda). Como notam os autores, preocuparmo-nos em aplicar verificações legais diferentes a estas duas espécies de opiniões vai contra a corrente das práticas assistenciais e da formação, focadas fortemente numa apreciação holística dos interesses e necessidades dos doentes, num modelo de tomadas de decisão partilhado.

Embora a principal atenção do caso Montgomery esteja centrada em demonstrar o valor do respeito pela autonomia dos doentes na prática médica, essa não deve ser a única conclusão que os que trabalham em cuidados de saúde devem tirar deste julgamento ou de desenvolvimentos semelhantes noutras jurisdições. Tanto na educação como na prática, o ajustamento da informação ao que um doente razoável espera receber, dadas as circunstâncias específicas de cada doente individual, não é apenas uma questão de pedir ao doente que partilhe os seus valores de modo a personalizar o consentimento e a dar a informação que interessa ao doente. Isso faz correr o risco, de novo, de afastar o processo de consentimento do encontro médico em que se situa. Saber como articular os valores do doente, quando o fazer e como adaptar a conversa sobre as opções do tratamento, de modo a permitir que seja o doente a tomar uma decisão devidamente informada, é um requisito chave, tanto ética como legalmente. A lei preocupa-se igualmente em fomentar parcerias terapêuticas onde os médicos, como parceiros ativos na tomada de decisões, dão opiniões corretas e qualificadas sobre quais as opções terapêuticas a oferecer e quais os riscos a revelar aos seus doentes; como Farrell e Brazier afirmam, ‘os caminhos do saber são contextuais’. Interpretar estes desenvolvimentos legais deste modo está longe de ser uma visão rudimentar e simplista que vê no julgamento do Supremo Tribunal uma obrigação legal de os médicos se ajoelharem perante os valores dos doentes para obterem um consentimento válido, mais do que o saber fundamentado dos seus estimados colegas.

Numa outra escala de análise, também se pode ver que o desafio de obter um consentimento válido pode ser especialmente agudo em contextos práticos específicos. Contextualizar corretamente o consentimento nestes cenários pode ser duvidoso e provocar discordâncias significativas. Numa série de artigos, Youngs e Simonds tratam de saber se a informação sobre o diagnóstico de VIH deve ser revelada a um doente quando esse doente manifesta o desejo de não ser informado do resultado das análises ao VIH. Os autores criticam a visão generalizada de que o direito a não saber o resultado de uma análise ao VIH resulta linearmente do respeito devido à autonomia pessoal, em vez de se defender que o interesse dos doentes em não saberem tais resultados deve ser contrabalançado com os subsequentes benefícios e prejuízos para o próprio e outros se essa informação for revelada (ver p. 95). Esta posição, acreditam, pode ser assumida desde que o doente mantenha o direito absoluto a não querer realizar a análise.

Chan (ver p. 100) contribui com a sua perspetiva, embora se esforce por salientar que esses prejuízos e benefícios devem ser calculados com cuidado. Para Andorno (ver p. 104), é o interesse de terceiros que invalida os argumentos, baseados na autonomia, a favor do direito do doente a não saber o resultado das análises. Como ele afirma, a questão mais interessante não é se o doente tem direito a não saber mas as circunstâncias em que o doente tem o ‘dever de saber’ o resultado das análises com vista a evitar o prejuízo de outros. Foster (ver p. 106) argumenta contra a possibilidade de se atender a alegação de que um doente mantém o direito de recusar fazer um teste do VIH mas, por outro lado, não se reconhecer o direito equivalente a não saber o seu resultado. A conclusão de Foster é essencialmente que, em relação às análises do VIH, o contexto realmente importa; provavelmente, a ação correta é prestar tanta atenção aos factos que não tem sentido desenhar uma linha divisória absoluta entre a recusa de realizar o teste e a recusa de saber o resultado.

Outro contexto onde as questões do consentimento podem ser especialmente exigentes é o dos cuidados a crianças. Quando há decisões em nome de crianças incapazes de, por si mesmas, darem consentimento, Birchley argumenta contra a moda bioética de resistir à tendência, neste contexto, de trocar o critério do melhor interesse, com um mínimo de danos, por uma tomada de decisões alternativa (ver p. 111). Birchley conclui que os eticistas médicos dariam por mais bem empregue o seu tempo se clarificassem os valores que importam à correta avaliação dos melhores interesses do que a ver a conceptualização do prejuízo, e dos seus limites, como uma panaceia para determinar o que é melhor para as crianças.

Três comentadores convidados discordam de um conjunto de temas levantados por Birchley. Nair e Wilkinson (ver p. 116) apresentam uma série de razões para pensar que o mínimo de danos é preferível a uma abordagem fundada em maximizar o bem-estar das crianças, embora mostrem de modo convincente a posição que ambas abordagens podiam operar em conjunto para os melhores cuidados das crianças. Do mesmo modo, McDougall (ver p. 119) argumenta que era melhor que as alegações avançadas por Birchley se centrassem na necessidade de desenvolver uma lista completa do que é bom para as crianças e que a sua crítica empírica ao dano mínimo esquece que quem o defende identifica-se com uma visão normativa central do papel dos pais na vida das crianças, mantida inalterada na tese principal de Birchley. É certamente necessário trabalhar mais para dar sentido ao cruzamento entre o conceito do papel dos pais e o dos interesses das crianças. De novo, contudo, parece que o contexto é crucial para sabermos como aplicar esses conceitos. As decisões sobre tratamentos médicos e sobre a localização dos cuidados são decisões que colidem com os interesses de ambas as partes de diversas maneiras, um ponto que Foster reconhece quando compara os enquadramentos legais dos médicos e das famílias no que concerne às tomadas de decisão pelas crianças (ver p. 123).

Algures neste Journal, de Vries revela como é difícil contextualizar o consentimento devido a diferenças socioculturais e ao impacto inigualável das novas tecnologias (ver p. 132). O Consórcio H3Africa destina-se a apoiar projetos que usam tecnologias genómicas para investigar doenças que afetam populações africanas. As suas avaliações dos formulários de consentimento usados em projetos H3Africa mostram abordagens muito diferentes para obter consentimento informado de participantes em investigações, assim como discrepâncias entre as estratégias dos investigadores sobre partilha de dados e achados incidentais – tanto entre estudos como no vasto enquadramento político do H3Africa. Como de Vries reconhece, é precisamente porque foram adotadas estas diferentes abordagens que são necessárias mais investigações empíricas. Parece claro, porém, que contextualizar adequadamente o consentimento no seio da investigação médica tem muito caminho a percorrer antes que as boas práticas sejam clarificadas e acionadas.

O consentimento continua merecidamente a ser uma área de investigação em ética médica que o Journal está interessado em promover em diálogo académico. Uma área especialmente produtiva para a investigação consiste em contextualizar adequadamente o consentimento nos diferentes cenários da prática e da investigação, dando orientações que ajudem os profissionais de saúde e os investigadores a trabalhar no meio das complicadas interações interpessoais nas quais são formuladas, apresentadas e decididas autorizações deste tipo.  

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1 Taylor K.M., Kelner M. 1987. Informed consent: The physicians’ perspective. Social Science and Medicine, 24: 135-43.
2 Corrigan O. 2003. Empty ethics: The problem with informed consent. Sociology of Health and Illness, 25: 768-92
* Índice deste número do Journal of Medical Ethics (cada hiperligação leva aos títulos, autores e páginas dos artigos da respetiva secção):
1. The concise argument Acesso gratuito
2. Reproductive ethics
3. Current controversy
4. Clinical ethics
5. Law, ethics and medicine
6. Research ethics Acesso gratuito
7. Teaching and learning ethics
8. Ethics briefing