Declaração em 30 de janeiro de
2014: não reconheço conflitos de interesses pessoais no conteúdo do artigo; fui
correlator do Parecer n.º 64/CNECV/2012 referido no texto.
O interesse crescente da comunidade científica pelos temas das
neurociências tem-se traduzido, nos últimos anos, por um igualmente crescente
interesse por parte da opinião pública.
Os progressos nesta área consistem essencialmente num conhecimento
mais profundo do modo de funcionamento do cérebro e das relações entre os
fenómenos mentais e as suas bases biológicas. São exemplo do estudo dessa
problemática, assaz complexa, o trabalho e as publicações 1 de
António Damásio, e as intervenções concretas em resultado da investigação são
uma realidade nos nossos dias.
No campo da intervenção médica aplicada a doentes afetados por
patologias do sistema nervoso tem-se assistido a um progressivo aumento da
capacidade de utilizar tecnologias avançadas, cujos resultados são
reconhecidamente beneficentes. A neurocirurgia, em cooperação com a
neurofisiologia e outras ciências, tem demonstrado uma eficiência imensa, como
é o caso paradigmático da ablação de zonas cerebrais epileptogénicas,
conseguindo curas ou francas reduções na frequência de crises epiléticas em
pessoas cujos tratamentos medicamentosos se mostravam ineficazes ou, muitas vezes,
geradores de efeitos secundários muito penosos.
Do mesmo modo, verificaram-se progressos significativos no
campo da farmacologia com o que se conseguiu modificar de modo muito notório, a
nível global, o panorama da saúde mental no que concerne à redução de
internamentos em fases agudas e à menor institucionalização nas fases crónicas de
diversas patologias.
Os exemplos citados, pelo seu próprio caráter, não suscitam questões
éticas especiais. Sendo certo, contudo, que em muitos casos as pessoas afetadas
por doenças neurológicas ou psiquiátricas se encontram incapazes de se
autodeterminar e, consequentemente, de consentir livre e esclarecidamente nas intervenções
neurocirúrgicas para retirada de lesões ou nas prescrições psicofarmacológicas
para controlo de sintomas, pelo que prevalece o princípio da beneficência e
supre-se a não-aplicação plena do princípio de respeito pela autonomia.
Outros progressos científicos e tecnológicos têm ocorrido nas
últimas décadas, embora esteja ainda por demonstrar uma eficácia tão grande
como a desejada ou esperada. É o caso das aplicações de próteses ou implantes
biónicos. A implantação de equipamentos eletrónicos que permitem reconhecer, a
nível cerebral, estímulos visuais ou que permitem movimentos de membros
paralisados após uma ordem mental, são exemplos de algo que hoje se pode
afirmar como real e que o futuro certamente confirmará. Também a nanotecnologia
permite, ou permitirá a breve prazo, que certos medicamentos sejam construídos
de modo personalizado e/ou com eficácia adaptada constantemente por sensores
introduzidos no corpo.
A principal questão ética que se tem levantado é a da possibilidade de criação de um ser humano cujos componentes físicos são sucessivamente substituídos por equipamentos artificiais, transformando-se em qualquer coisa que temos dificuldade em reconhecer como boa.2
Outro campo de aplicação das tecnologias neurocientíficas que se encontra em desenvolvimento crescente é o da estimulação cerebral profunda. A colocação de elétrodos na proximidade de certos núcleos cerebrais, ligados a equipamentos implantados sob a pele, capazes de produzir estímulos elétricos, reguláveis em frequência e intensidade, consegue modular determinadas funções e obter resultados muito interessantes em certas formas da Doença de Parkinson e de outras perturbações do movimento.3. Equipamentos similares têm sido utilizados para tratar estados depressivos muito graves e quadros obsessivo-compulsivos resistentes aos fármacos. 4 Também há notícia de projetos de aplicação da estimulação cerebral profunda com a finalidade de condicionar comportamentos, como por exemplo em certas toxicodependências. 5
Ainda que a estimulação cerebral profunda seja uma
intervenção reversível, a sua utilização em casos de doença mental grave, com o
objetivo de condicionar comportamentos, levanta questões éticas que merecem
estudo cuidadoso, tendo em vista a história da psicocirurgia do princípio do
século XX. 6 Por
outro lado, os benefícios conseguidos no campo das perturbações do movimento
(pese embora a possibilidade de ocorrência de efeitos secundários
desconfortáveis ou, por vezes, insuportáveis) são hoje largamente reconhecidos,
ainda que levantem delicados problemas na aplicação do consentimento informado.
Importa, também, que se discuta, à luz do princípio da justiça, a grande
questão do acesso a equipa mentos altamente dispendiosos e produzidos ou
comercializados em regime de quase monopólio à escala mundial.
Se juntarmos a esta possibilidade tecnológica de interferir nos
comportamentos humanos as numerosas aplicações no âmbito cardiológico e
ortopédico, reconhecemos estar perante um mundo novo. Um mundo tão interessante
como fonte de deslumbramentos potencialmente danosos.
Na verdade todos os dias vemos anunciada a “cura” do cancro
ou do Alzheimer, embora raramente se refira o tempo que falta para que isso se
verifique. Não é só o público leigo que é levado a pensar que, com medicamentos
cada vez mais eficazes, com medidas preventivas cada vez mais específicas, com
implantação de dispositivos e próteses cada vez mais sofisticados, com uma
longevidade cada vez mais consolidada em dados estatísticos fiáveis, a
ocorrência de morte é cada vez mais um sinal de falhanço. Esta falácia
repete-se, infelizmente, nos media numa narrativa que não só gera
sentimentos de culpabilidade como acentua tendências maléficas para um desempenho
profissional pretensamente defensivo. A observação, por parte de prestadores e
por parte de utilizadores de serviços de saúde, de padrões de comportamento
condicionados por expectativas irrealistas é, para agravar, perturbada por
recursos cada vez menos disponíveis. Deste modo, com o acréscimo do tempo de
vida e o decréscimo dos meios para lhes dar qualidade, enfrentamos uma
contradição geradora de conflitos e de problemas éticos.
Não cremos que haja soluções mágicas para esta problemática.
Não basta a definição cuidadosa de modelos de decisão eticamente sustentados.
Veja-se o caso do “racionamento” da prescrição de medicamentos tão caros quanto
inovadores. Perante a dificuldade resultante do crescente aumento de custos e
da assustadora diminuição de recursos públicos, o CNECV foi instado em 2012 a
pronunciar-se sobre uma medida adotada por um grupo de hospitais. O Parecer 7 definiu os
critérios que considerou necessários para um justo processo de decisão:
transparência com declaração de interesses, previsibilidade, publicidade,
confirmação científica, independência responsável, possibilidade de exceção
fundamentada. Pondo de parte polémicas de cariz corporativo e algo demagógicas,
pode-se afirmar que o modelo proposto foi globalmente bem acolhido tanto por
decisores hospitalares como por comentadores independentes. Contudo tal modelo está
longe de ser seguido pela generalidade das administrações. Verificou-se mesmo
que os critérios utilizados pelos hospitais que deram origem ao pedido de
parecer estavam em contradição absoluta com o modelo proposto.
Enunciar dificuldades não significa retirar validade à
redação de documentos de orientação corretos e exaustivos. Às políticas
públicas cabe o difícil papel de transpor o essencial das recomendações feitas
de boa-fé para medidas eficazes e justas – tarefa especialmente relevante e
imperiosa em tempos como os que vivemos, onde infelizmente parece que tratar de
assuntos relacionados com a morte não está na lista das prioridades.
Deixar ao livre arbítrio dos mercados 8 e à
despudorada influência das pressões mediáticas o encontrar da justa medida para
a satisfação das necessidades, independentemente das possibilidades de cada um,
é algo que deve merecer a nossa atenção crítica, principalmente através da
formação de uma opinião pública decente. Bom seria que, além de apelos à
parcimónia 9 e de
normas de orientação consensualizadas 10, se
avançasse entre nós para um programa nacional de formação e reflexão
participada dedicado às questões da vida longa em tempos de crise.
Em conclusão, consideramos globalmente positiva a evolução do conhecimento e a aplicação dos progressos tecnológicos na área da neurociências e outras, mas, no entanto, importa manter em alerta os diversos intervenientes (dirigentes políticos, profissionais de saúde, cientistas, investigadores, membros de comissões de ética, jornalistas, etc.) face às questões apenas afloradas neste despretensioso texto.
2 Changeux, Jean-Pierre, 1991, O homem neuronal, 2.ª ed. Trad. Artur Jorge Pires Monteiro, Lisboa, Publicações Dom Quixote
3 St George RJ, Nutt JG, Burchiel KJ, Horak FB. Ameta-regression of the longterm effects of deep brain stimulation on balance and gait in PD, Neurology. 2010 Oct 5;75(14):1292-9
4 Glannon W, Consent to deep brain stimulation for neurological and psychiatric disorders, J Clin Ethics. 2010 Summer;21(2):104-11.
6 Wind JJ, Anderson de: From prefrontal leukotomy to deep brain stimulation: the historical transformation of psychosurgery and the emergence of neuroethics. Neurosurg Focus. 2008;25(1):E10
7 Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Parecer sobre um modelo de deliberação para financiamento do custo dos medicamentos. Parecer n.º 64/CNECV/2012, disponível em https://www.cnecv.pt/pt/deliberacoes/pareceres/parecer-n-o-64-cnecv-2012-sobre-um-modelo-de-deliberacao-para-fi?download_document=3133&token=52d6e45e15486df5101e949a4cc7d862
8 Papa Francisco. Evangelli Gaudium. 2013. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html
9 Tilburt, JC and Cassel, CK. Why the ethics of parsimonious medicine is not the ethics of rationing. JAMA. 2013 Jun 5;309(21):2212
10 Nuffield Council on Bioethics. Novel Neurotechnologies: intervening in the brain. June 2013. Disponível em http://www.nuffieldbioethics.org/neurotechnology