31 dezembro 2014

Pareceres do CNECV (correlator)


Pareceres do CNECV 

n.º 58/2010 sobre a realização de autópsias ou outros exames post mortem a requerimento de particulares
com Jorge Reis Novais

n.º 59/2010 sobre os Projetos de Lei relativos às Declarações Antecipadas de Vontade, 
com Lucília Nunes e Michel Renaud

n.º 60/2011 sobre Informação de Saúde e Registos Informáticos de Saúde 
com Lucília Nunes e Jorge Sequeiros

n.º 64/2012 sobre um Modelo de Deliberação para financiamento do custo dos medicamentos 
com Ana Sofia Carvalho

n.º 69/2012 sobre as Propostas de Portaria que regulamentam o Modelo de Testamento Vital e o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV) 
com Lucília Nunes e Michel Renaud

n.º 76/2013 sobre o Despacho relativo à colheita de órgãos em pessoas com paragem cardiorrespiratória irreversível 
com Duarte Nuno Vieira

n.º 80/2014 sobre as vulnerabilidades das pessoas idosas, em especial das que residem em instituições 
com Rita Lobo Xavier

30 dezembro 2014

Ciência, Ética e o mito da imortalidade


Ciência, Ética e o mito da imortalidade

 in Ciência, ética e o mi­to da imortalidade
in Bioética e Políticas Pú­bli­cas, pp. 233-8, ed. CNECV (2014)

ver AQUI

02 dezembro 2014

Epistóricos

10 Pequenas crónicas sobre pessoas com epilepsia que ficaram na grande História

Notícias da Epilepsia entre 2011 e 2014

ver AQUI

11 agosto 2014

Anonimização de dados: como fazer corretamente

                                       

Anonimização de dados: como fazer corretamente
Marianne Kolbasuk McGee

Tradução espontânea do texto

Data De-Identification: Getting It Right

Peritos debatem os melhores métodos para a proteção da privacidade do doente

Quando os dados do doente são usados para fins secundários, tais como a investigação, estes devem ser anonimizados. Mas é esse processo consistente e confiável na proteção da privacidade dos doentes? Um advogado especializado em privacidade e um investigador experiente explicam numa entrevista junto do Grupo de Trabalho sobre Segurança da Informação nos Media que a anonimização é confiável se certos métodos, tal como enunciado no Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA), forem realmente utilizados. Muitas vezes, dizem, os dados anonimizados não cumprem a sua função eficazmente porque não seguem as melhores práticas e padrões.

Dois métodos

Apenas podem ser usados dois métodos de anonimização para seguir as regras de privacidade do HIPAA, explica Scot Ganow, advogado escocês especializado em privacidade e segurança, do escritório de advocacia Faruki Ireland & Cox P. L. L.

O "porto seguro" exige a remoção de 18 identificadores da informação relativa ao doente, incluindo nome, código postal, número de Segurança Social, data de nascimento.

O segundo método, "determinação por perito", é um padrão mais flexível que permite que os profissionais calibrem os dados anonimizados com base no contexto em que os dados serão utilizados como finalidades secundárias, explica Khaled El Emam, cientista sénior no Children's Hospital of Eastern Ontario Research Institute e diretor do laboratório multidisciplinar de informação sobre saúde.

O método de determinação por perito implica utilizar um especialista "com conhecimento adequado e a experiência em princípios e métodos científicos e estatísticos globalmente aceites para tratamento de informações não identificáveis individualmente", de acordo com a orientação federal sobre o tema (ver De-Identification Guidance Offered).

Ganow afirma que os dados anonimizados cumprem o disposto no HIPAA e são "defensáveis" se qualquer um destes dois métodos aprovados for usado para anonimizar os dados do doente.

Alguns advogados queixam-se de que, mesmo em conformidade com o HIPAA, os métodos de anonimização de dados são insuficientes, o que cria um risco de que os doentes possam se reidentificados, especialmente se houver erros nos procedimentos (ver Sizing Up De-Identification Guidance).

Contudo, El Emam contrapõe que os problemas de proteção da privacidade apenas acontecem quando as orientações do HIPAA não são seguidas ou são aplicadas incorretamente. “Outro erro é aplicar somente parte das regras. Neste caso, os dados não ficam protegidos”, disse.

“Se se fizer um trabalho de anonimização fraco, não baseados nas regras, então é fácil que alguém consiga reverter o processo. Mas se se fizer o trabalho bem feito, torna-se muito difícil reidentificar os dados”, contestou El Emam.

Uma das principais razões para a anonimização de dados ser por vezes imperfeita é a escassez de pessoas aptas a anonimizar de acordo com as boas práticas e as regras em vigor, disse El Emam. “É necessário aumentar a quantidade de profissionais que saibam fazer este trabalho”.

Não há infalíveis

Nenhum método de anonimização é 100% seguro. “Quando se aplicam os métodos de anonimização de acordo com o HIPAA, o objetivo é ter um risco muito baixo de reidentificação e não afirmar que temos uma completa anonimização”, afirmou Ganow. A anonimização “não está num depósito. Tem de se pensar nela: A quem vou dar os dados? Qual a finalidade do seu uso? Que acordos e que segurança temos? Não há soluções milagrosas.”

Na entrevista, Ganow e El Emam debatem:

- A importância da anonimização para gerir o risco e garantir a privacidade do doente;

- Como proteger a identidade de doentes com doenças raras ou invulgares, como por exemplo Ébola.

- Como a escassez de pessoas aptas pode contribuir para anonimizações fracas e a importância de programas de formação e de certificação profissional.  

01 maio 2014

Investigação médica em emergência nos Estados-membros da União Europeia


Intensive Care Med (2014) 40:496–503

Investigação médica em emergência nos Estados-membros 
da União Europeia: tensões entre teoria e prática

Erwin J. O. Kompanje  Andrew I. R. Maas, David K. Menon, Jozef Kesecioglu

Introdução

Está atualmente em apreciação pelo Parlamento e pelo Conselho Europeu uma proposta de regulamento (NT: Ver versão oficial em português do regulamento AQUI) da Comissão Europeia que substituirá o determinado pela Diretiva 2001/20/EC [1]: “Este regulamento deve estabelecer regras claras sobre o consentimento informado em situações de emergência”.

Não obstante esta louvável intenção, há dúvidas sobre a clareza das regras, se a investigação diariamente praticada nas unidades de cuidados intensivos europeias cumpre os requisitos indicados e se, na verdade, tal cumprimento é globalmente possível.

Segundo a Agência Europeia do Ambiente/União Europeia, todos os anos são registados cerca de 4400 ensaios clínicos. Destes, aproximadamente 60% são patrocinados pela indústria farmacêutica e cerca de 24% são multinacionais, realizando-se em, pelo menos, dois Estados-membros. Os ensaios clínicos, de acordo com a definição da Diretiva 2001/20/EC do Parlamento e do Conselho Europeu de 4 de abril de 2001, são investigações de medicamentos em humanos quando estes medicamentos são usados fora da prática clínica normal e seguem um protocolo de investigação [1]. O objetivo da Diretiva 2001/20/EC sobre ensaios clínicos era simplificar e harmonizar a realização de ensaios clínicos e procurava criar um clima que estimulasse a investigação clínica nos Estados-membros europeus. Esta diretiva permitiu melhorias importantes em termos de segurança e validade ética dos ensaios clínicos, e de credibilidade dos seus dados, na UE. Contudo, a diretiva é um dos itens mais duramente criticados das regras da UE no campo farmacêutico, designadamente quanto à investigação em doentes incapazes [2–13]. A incapacidade mental é uma caraterística inerente à investigação em situações de emergência, frequente em doentes agudos admitidos em unidades de cuidados intensivos. As disposições da Diretiva 2001/20/EC parecem mais ter perturbado a realização de ensaios clínicos na Europa do que facilitado. De facto, podia argumentar-se que a diretiva teve um impacto negativo significativo no desenvolvimento de novas terapias muito necessárias para situações de risco de vida, como lesões cerebrais traumáticas, paragem cardíaca e acidentes vasculares cerebrais. Neste contexto, a iniciativa da Comissão Europeia de rever a diretiva representou uma importante oportunidade. Em julho de 2012, a Comissão Europeia apresentou ao Parlamento e ao Conselho uma proposta de regulamento sobre os ensaios clínicos de medicamentos para uso humano, revogando a Diretiva 2011/20/EC. Neste artigo, pretendemos resumir a legislação europeia e nacional existente para debater as tensões entre teoria e prática e para refletir sobre a situação que se seguirá à aprovação da proposta de novo regulamento europeu.

O Consentimento na Diretiva 2001/20/EC

De acordo com o Artigo 3(2)a da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, qualquer intervenção no campo da medicina e da biologia só pode ser feita após consentimento livre e informado da pessoa em causa. O Artigo 4 da Diretiva 2001/20/EC estabelece: “No caso de pessoas incapazes de dar o seu consentimento… o consentimento escrito dos represente legal do doente, dado em cooperação com o médico assistente, é necessário antes da participação em qualquer ensaio clínico.” As regras sobre a proteção de sujeitos e sobre o consentimento livre e informado foram debatidas exaustivamente no processo legislativo conducente à Diretiva 2001/20/EC. O objetivo desta formulação foi proporcionar uma proteção adicional aos sujeitos incapazes. É aparentemente provável que a população destinatária fosse a dos doentes psiquiátricos. Na prática, a redação teve consequências indesejáveis na investigação em emergência. A obrigação de, especificamente, obter consentimento escrito do representante legal do doente tem impedido muita investigação em contexto de emergência [4, 15, 16]. Além disso, o uso das palavras “representante legal” criou problemas. Em alguns países tem sido interpretado como obrigando a uma decisão em tribunal sobre quem é o representante legal, enquanto noutros países se aceita o consentimento de procurador mandatado. De um ponto de vista prático, muitos estudos viram substituída nos seus protocolos a terminologia representante legal por representante legalmente aceitável, assim incluindo também os procuradores. Havia a preocupação de que as restrições da redação pudessem acabar com a investigação em situações de risco de vida e, na verdade, permanecem problemas sérios em alguns Estados-membros.

Investigação em emergência e investigação sobre o uso de medicamentos em doentes incapazes

As situações de emergência referem-se a casos em que o doente está numa condição médica súbita de risco de vida devida a doença séria e aguda. Lesão cerebral traumática grave, formas graves de acidente vascular cerebral (como hemorragia subaracnoideia, hemorragia intracerebral, enfarte do tronco cerebral), enfarte do miocárdio com paragem circulatória e outras emergências cardíacas e choque sético grave são tudo situações que necessitam de intervenções médicas imediatas enquadradas em intervalos de tempos curtos [14]. O baixo nível de consciência devido à doença, a depressão da consciência provocada por medicações essenciais (por exemplo, uso de sedativos para facilitar a ventilação mecânica em lesões cerebrais traumáticas ou sépsis), e/ou a ausência de um representante legal imediatamente disponível tornam impossível obter consentimento informado de uma pessoa ou do seu representante antes da intervenção. As questões éticas específicas relativas à avaliação de agentes farmacêuticos em situações de emergência prendem-se com o caráter da emergência da investigação, a estreita janela terapêutica, a incapacidade dos doentes em consentir antes da intervenção, e uma relação risco-benefício baseada na noção de que pode ser aceitável haver efeitos laterais adversos significativos face à gravidade da situação aguda. Estes aspetos divergentes exigem competência específica e as diferentes maneiras como as diretivas europeias foram transcritas para as legislações nacionais têm resultado numa grande diversidade das abordagens e decisões assumidas pelas comissões de ética para a investigação nos vários Estados-membros. As comissões de ética têm de analisar e aprovar os protocolos de investigação clínica. Como as legislações diferem nos Estados-membros, as comissões nacionais têm diferentes métodos e diferentes tipos de protocolos para analisar.

Consentimento para investigação sobre o uso de medicamentos em doentes incapazes e em situações de emergência

Têm sido adotadas várias soluções na concretização dos requisitos relativos ao consentimento informado: os representantes legais (procuradores) podem consentir antes da entrada na investigação, ou o consentimento do doente e/ou do procurador pode ser adiado por algum tempo, ou o consentimento pode mesmo ser dispensado. Um médico independente pode dar o seu consentimento para o recrutamento num ensaio, ou o consentimento do doente/procurador pode ser presumido. O quadro 1 (NT: Ver Quadro 1 no artigo original mas, sobre Portugal, ter em consideração que a legislação aí citada foi revogada. O decreto-lei n.º 97/94 foi revogado pela Lei n.º 47/2004. Esta última foi revogada pela recentíssima Lei n.º 21/2014, de 16 de abril. No que se refere à participação em investigação de pessoas incapazes de decidir vigora agora o artigo 8.º desta lei que diz: Participantes maiores incapazes de prestar consentimento informado 1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 6.º, quando um participante maior não estiver em condições de prestar o consentimento informado, a realização do estudo clínico depende dos requisitos referidos nos números seguintes. 2 — A realização de estudos clínicos com maiores que, antes do início da sua incapacidade, não tenham dado nem recusado o consentimento informado só é possível quando: a) For obtido o consentimento informado do respetivo representante legal, nos termos do número seguinte, o qual deve refletir a vontade presumível do participante; b) A pessoa incapaz de dar o consentimento informado tiver recebido informações adequadas à sua capacidade de compreensão sobre o estudo clínico e os respetivos riscos e benefícios; c) O investigador ou, se for esse o caso, o investigador principal considerar a vontade expressa do participante que seja capaz de formar uma opinião. 3 — O estudo clínico com intervenção só pode ser realizado em participantes maiores incapazes de prestar consentimento informado quando: a) Se verifiquem os requisitos referidos no número anterior; b) O estudo clínico com intervenção for essencial para validar dados obtidos em estudos clínicos realizados em pessoas capazes de dar o consentimento informado ou através de outros métodos de investigação e estiver diretamente relacionado com o quadro de perigo de vida ou de debilidade de que sofra o participante em causa; c) O estudo clínico com intervenção, tiver sido concebido para prevenir a doença ou o mal-estar, reabilitar, minimizar a dor, o mal-estar, o medo ou qualquer outro previsível risco relacionado com a doença e com o grau de sofrimento desta, devendo o limiar de risco e o grau de sofrimento serem especificamente fixados e objeto de permanente verificação. 4 — A CEC [comissão de ética competente] pode, de forma fundamentada e a título excecional, dispensar os requisitos constantes do n.º 2, nos estudos clínicos sem intervenção. 5 — O estudo clínico com intervenção não pode ser realizado em incapaz de prestar consentimento informado que se encontre em acolhimento institucional, nos termos da respetiva legislação, salvo se da não realização do estudo resultar um potencial prejuízo ou desvantagem para o mesmo. 6 — Nas circunstâncias referidas no número anterior, o consentimento informado será prestado em articulação com o médico assistente.) e a figura 1 (NT: Portugal aparece referenciado, na Figura 1, com um símbolo que indica ser utilizado um médico independente para dar o consentimento – o tradutor ignora a fundamentação dessa informação.) apresentam uma panorâmica das abordagens aceites nos Estados-membros da UE. O consentimento diferido dado pelo procurador parece ser o substituto preferido do consentimento informado dado pelo doente na investigação em cuidados críticos de emergência. Em 12 Estados-membros, contudo, a investigação em emergência não é mencionada na lei nacional. Em quase todos os Estados-membros, o consentimento prévio por um representante legal é utilizado como um substituto do consentimento informado dos doentes na investigação não-urgente e o consentimento diferido (do doente e/ou procurador) é aceite como um substituto na investigação em emergência aguda em aproximadamente metade dos Estados-membros.

Consentimento na proposta revista (Julho 2012)

O regulamento proposto em julho de 2012 [1] não altera substancialmente, com a exceção do tema dos ensaios clínicos em situações de emergência, as regras sobre os requisitos do consentimento informado. Ao contrário da Diretiva 2001/20/EC, o regulamento proposto dá uma orientação para o consentimento informado em situações de emergência. A proposta estabelece especificamente que: “… o regulamento deve estabelecer regras claras segundo as quais os doentes em situações de emergência podem ser recrutados para ensaios clínicos em determinadas e restritas condições. Estes ensaios clínicos devem ter em conta a situação médica que faz com que seja impossível ao doente dar consentimento informado. Tem de ser respeitada qualquer objeção previamente manifestada pelo doente e o consentimento informado de uma pessoa ou do seu representante legal deve ser pedido o mais cedo possível” (pp. 18-19 da proposta). As disposições dos ensaios clínicos em situações de emergência estão descritas no artigo 32 da proposta (pp. 47-48). O consentimento informado pode ser obtido depois do início do ensaio clínico para que este continue e a informação sobre o ensaio clínico pode ser dada após o início desde que se cumpram as seguintes cinco condições:

1. Em consequência da urgência da situação, provocada por uma doença súbita com risco de vida ou outra condição médica súbita e séria, seja impossível obter consentimento informado prévio do participante e seja impossível prestar a informação prévia ao participante
2. Não haja um representante legal disponível
3. O participante não tenha manifestado previamente objeções do conhecimento do investigador
4. A investigação refere-se diretamente a uma condição clínica que torna impossível obter consentimento informado prévio e prestar a informação prévia
5. O ensaio clínico representa um risco mínimo para o participante, assim como implica um incómodo mínimo para este.

Após inclusão no ensaio clínico e do início da administração do agente experimental e de outros procedimentos em estudo, quando se trate de doentes incapazes:

1. “O consentimento informado deverá ser obtido tão cedo quanto possível do representante legal e a informação será prestada tão cedo quanto possível ao participante”
2. “O consentimento informado … deverá ser obtido tão cedo quanto possível do representante legal ou do participante – qualquer que seja o primeiro – e a informação necessária a … deverá ser dada tão cedo quanto possível ao representante legal ou ao participante – qualquer que seja o primeiro”
3. Quando “o consentimento informado tiver sido obtido do representante legal, o consentimento informado para continuar o ensaio deverá ser obtido do participante logo que este esteja capaz de dar o consentimento informado”.

Estas disposições representam um avanço substancial face à atual legislação, com reconhecimento específico dos aspetos específicos da investigação em emergência e a investigação em doentes incapazes.

São boas as notícias que consideram aceitável o princípio do consentimento diferido em situações de emergência, especialmente no caso de o representante legal não estar disponível, mas também nos casos em que o tempo para a intervenção terapêutica é muito curto e não há tempo para informar adequadamente os perturbados familiares. São boas as notícias de que os projetos de investigação poderão ser submetidos a apreciação ética através de um portal europeu central, facilitando e acelerando desse modo a harmonização das decisões. A avaliação e as decisões finais permanecerão, contudo, da responsabilidade e competência dos Estados-membros. Apesar destas vantagens, mantêm- se algumas nuvens no horizonte [16]. Podem surgir problemas como consequência da cláusula que exige risco mínimo, das interações com os requisitos europeus de proteção de dados, e da falta de reconhecimento explícito de que a incapacidade pode dever-se tanto a uma terapêutica essencial e inevitável como à própria doença.

Em primeiro lugar, os potenciais problemas podem resultar da cláusula restritiva em que “o ensaio clínico representa um risco mínimo para o participante, assim como implica um incómodo mínimo para este”. Contudo, esta formulação da cláusula não tem em conta a extrema gravidade da doença em doentes críticos, que leva ao uso de intervenções com mais efeitos laterais potenciais. Para citar Shakespeare: “Para grandes males, grandes remédios. Ou nenhum.” [Hamlet IV. iii. 9]. Poucos são os tratamentos que, em contexto de doentes críticos, podem ser considerados sem risco; assim, a exigência de um “risco mínimo” afigura-se impraticável e torna impossível a investigação em emergência com novos fármacos para situações de risco de vida. Apelamos aos investigadores para que usem esmeradas análises de variáveis independentes, como propõem Weijer e Miller [17, 18]. A análise de variáveis

independentes representa uma aproximação sistemática à análise ética dos riscos e potenciais benefícios em investigação clínica e apoia-se em argumentos aceitáveis. Weijer e Miller [17] dizem: “A análise de variáveis independentes garante que, através da adequada aplicação do equipolência clínica (NT: Clinical equipoise - No contexto de estudos clínicos, "equilíbrio clínico" está relacionado com o estado de incerteza sobre se uma das alternativas de intervenção, por exemplo, um de dois braços de tratamento ativo, irá produzir um resultado mais favorável que o outro.), a soma dos riscos e potenciais benefícios dos procedimentos terapêuticos num ensaio clínico é, grosso modo, semelhante à que o doente receberia na prática clínica”. Esta abordagem é também recomendada pelo grupo de trabalho VISEAR em resposta às restrições da Diretiva 2001/20/EC [19].

Em segundo lugar, ao estabelecer explicitamente que só é admissível a investigação se “esta se refere diretamente a uma condição clínica que torna impossível obter consentimento informado prévio e prestar antecipadamente a necessária informação”, o regulamento em análise ignora o facto de que a sedação terapêutica, com subsequente perda de capacidade, pode contribuir para, ou mesmo causar, a impossibilidade de obter consentimento. Por exemplo, uma pneumonia grave pode, em si mesma, não perturbar a capacidade. Contudo, a necessidade de possibilitar uma ventilação mecânica determina, habitualmente, a necessidade de sedativos que facilitem a intubação traqueal e garantam o conforto do doente. Em muitas circunstâncias, tal sedação pode tornar impossível comunicar em termos que permitam um verdadeiro consentimento informado. Os tratamentos que precisamos para a pneumonia com insuficiência respiratória grave podem ser completamente diferentes dos que usamos numa pneumonia menos grave e, impedindo a realização de investigações que desenvolvam e testem novas terapias neste e noutros contextos semelhantes, fazer com que, injustamente, os doentes com estas doenças aufiram pouco ou nada dos progressos terapêuticos.

Debate

A redação sobre investigação em emergência nesta proposta é uma melhoria, mas alguns aspetos são ainda impraticáveis e podem constituir uma ameaça a este tipo de investigação [15, 16]. De acordo com a formulação da proposta, a investigação em emergência sobre novos fármacos não é sempre possível e os doentes em situações de risco de vida não podem participar em estudos quando um familiar está presente no hospital e quando não haja tempo para informar os perturbados familiares [20–27]. O adiamento do consentimento é aceitável na perspetiva do participante [28]. Contudo, muitos familiares querem ter alguma forma de envolvimento na decisão [29]. Os familiares de doentes críticos receiam danos ou desconfortos relacionados com os estudos mas estão motivados a consentir face a potenciais benefício e por altruísmo [30].

O processo para a obtenção de consentimento de procurador numa situação de emergência tem três fases. Primeiro, prestar informação sobre o estudo dos cuidados críticos em emergência. Segundo, o investigador ou o médico responsável pede consentimento ao procurador. Terceiro, o procurador consente ou recusa [25]. Vários autores afirmam que a natureza emotiva das situações de emergência limita a validade do consentimento por representação. Dada a complexidade dos documentos de consentimento, a maior parte dos representantes talvez não compreenda um protocolo de ensaio em emergência na totalidade [31]. Dada a pressão do tempo e a carga emocional da situação, essa compreensão pode ser menor que ótima [32]. Os doentes são submetidos a cuidados críticos numa crise fisiológica, enquanto os seus familiares passam por uma crise psicológica [33]. A incerteza sobre se o doente sobreviverá também tem uma profunda influência nas reações, ações e estratégias dos procuradores [34]. Nestes casos, o consentimento diferido é eticamente válido. Informar os familiares apenas quando estes podem compreender a informação fornecida. Em quase todos os Estados-membros, o consentimento prévio dado por um representante legal é usado para substituir o consentimento informado dado pelo doente em investigações clínicas não-urgentes. O consentimento diferido (dado pelo doente ou pelo procurador) é aceite como substituto na investigação da emergência aguda em cerca de metade dos Estados-membros. Em 12 Estados-membros a investigação em emergência não está mencionada nas leis nacionais. O consentimento diferido dado pelo doente ou pelo procurador está previsto na proposta de regulamento datada de julho de 2012, mas não se ajusta completamente à prática da investigação em emergência [15, 16]. O consentimento diferido só é possível quando o representante legal não está disponível. Este critério atrasará a inclusão de doentes em condições de risco de vida agudo com janelas de tempo estreitas. A proposta de regulamento entrará em vigor 2 anos após a sua aprovação pelo Parlamento e no 20.º dia seguinte à sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia. O regulamento será de cumprimento obrigatório na sua totalidade e terá aplicação em todos os Estados-membros. Há muito trabalho a fazer pelos diferentes Estados-membros para incorporar as novas regras nos seus regulamentos nacionais, já que neste momento os regulamentos não estão harmonizados. A confusão relativa à investigação em emergência foi inicialmente devida à falta de clareza da Diretiva 2001/20/EC. Apesar de tudo, a investigação em emergência de situações agudas continua a não ser possível como deveria.

[ver Figuras e Referências no artigo original]

13 março 2014

Mediação bioética, por exemplo

Público, 13.03.2014

A mediação bioética é uma forma de atenuar desencontros. E, felizmente, esse caminho está a fazer-se.

Corro o risco de me meter onde não sou chamado e de falar do que não sei. Certamente não serei o primeiro nem o último. Mas deixem-me chamar a atenção para uma outra forma de tratar certos casos que frequentemente surgem da imprensa relativos à Saúde.

Há um doente com cancro cuja progressão escapa às intervenções realizadas e que, depois de submetido a uma operação de emergência, se complica a ponto de necessitar de assistência em unidade de cuidados intensivos. As unidades estão lotadas e o doente acaba por falecer antes de conseguir ser admitido ou logo após essa admissão. Naturalmente que o assunto é notícia e, enquanto uns exigem explicações, outros apressam-se a lançar averiguações.

No meio de tão desagradáveis e tristes ocorrências, os telejornais exploram, até à exaustão, a exposição do sofrimento dos familiares. Os ouvintes, motivados pelo hábito, pelam-se por isso. Nada a fazer. As televisões não podem escapar à sua natureza – são como os lobos, comem as ovelhas mas não é por mal, é porque tem de ser. A desgraça alheia “vende”!

Os serviços da Saúde, pelo seu lado, tentam lavar a imagem e um “rigoroso inquérito”, logo anunciado, serve bem para atirar para mais tarde os esclarecimentos, os quais, afinal, raramente aparecem, já que a imprensa estará então mais interessada noutro facto, noutro escândalo, noutra desgraça. E assim, sucessivamente, sem cessar.

Ora, outra forma de também tratar estas questões pode ser a ativação, a nível local, de mecanismos de mediação. Talvez não seja fácil que aconteçam antes do caso chegar às televisões mas, pelo menos, podiam acontecer ao mesmo tempo. Imagine-se que os familiares do doente eram chamados, ao hospital, não para lhes explicarem as regras do sistema ou para os convencerem de que a morte é uma inevitabilidade quando surgem complicações. Seria possível uma entidade não implicada na assistência ao doente promover uma reunião entre os profissionais e os familiares, tendo por finalidade chegar a um ponto em que as partes percebessem melhor o que se passou?

É verdade que muitas incompreensões deixariam de existir se, antes, as posições dos profissionais de saúde e das instituições fossem propícias a que, naturalmente, os doentes e os familiares compreendessem os problemas que vão surgindo no decurso de um caso grave. É certo que alguns médicos se esquecem de expor e explicar, a tempo, o prognóstico de uma doença. É conhecido que o mito da imortalidade é alimentado por certos noticiários. É sabido que a decisão de suspender tratamentos fúteis e dedicar os esforços “apenas” a cuidados paliativos que controlem o sofrimento terminal é, além de difícil, frequentemente adiada. Outras vezes é mesmo suprimida pelo deslumbramento tecnológico – é quase um desafio a que alguns não resistem: até quando posso adiar a morte, qualquer que seja o custo? Claro que não estou a falar de custos económicos (antes que alguém me acuse de defender o racionamento), refiro-me a sofrimentos como a dor e a angústia.

Contudo, mesmo com boa prevenção, nunca deixará de haver situações em que as partes necessitam de parar para pensar e tentar a mútua compreensão. É a hora de as comissões de ética locais se dedicarem a esta tarefa, com independência face às administrações. Não chega serem verificadores de conformidades quando se trata de estudos de investigação clínica. Não basta responderem a pedidos de parecer sobre documentos ou normas de atuação. As comissões de ética hão de, certamente, num futuro próximo, disponibilizar oportunidades de mediação bioética. Não se trata de as envolver em processos de averiguação ou apuramento de responsabilidades – para isso já há entidades que cheguem e algumas até são as primeiras a pedir inquéritos a outras. Não se trata de arbitrar decisões. A mediação bioética é uma forma de atenuar desencontros. E, felizmente, esse caminho está a fazer-se, caminhando.

01 fevereiro 2014

O exemplo da Consulta de Ética

 
O exemplo da Consulta de Ética
Judith Andre / University of North Carolina Press / 2002
Tradução espontânea de um extrato do livro Bioethics as Practice acedido AQUI

(…)

Muitas comissões de ética hospitalares disponibilizam hoje o serviço de Consulta de Ética – e a escolha da palavra “serviço” é deliberada. As “comissões de ética hospitalares” não são corpos disciplinares. Em vez disso, os seus objetivos são ajudar os hospitais a compreender e cumprir padrões éticos atualizados. O serviço da Consulta de Ética destina-se a tratar de incertezas ou desacordos em casos especiais. Quem faz consultas participa naqueles objetivos; na verdade, todos falamos uns com os outros, escrevemos uns aos outros, assistimos às mesmas conferências, e assim por diante. Este consenso foi recentemente articulado por um grupo de trabalho da Sociedade Americana de Bioética e Humanidades (ASBH), a maior organização profissional da área. As suas orientações incluem uma secção intitulada “Natureza e finalidades da Consulta de Ética”. Procuro usar uma formulação diferente, abaixo descrita, a qual ajudei a escrever, por coincidência, pela mesma altura, num grupo de trabalho do Hospital Sparrow, em Lansing, Michigan, e mais tarde foi publicada no Journal of Clinical Ethics6. As semelhanças entre versões nacionais e locais demonstram um consenso sobre o tema.

Finalidade 1. “Oferecer uma solução ética para o caso concreto.” Este primeiro objetivo diz respeito às perguntas imediatas, aquelas que motivaram a consulta: No caso da D. Bactri, alcançar uma solução ética significou encorajar o médico a respeitar a sua recusa. Avançar para este tipo de solução exige análise moral, para a qual os filósofos estão vocacionados, mas também muito daquilo que Haavi Morreim chama “trabalho de detetive”, para o que nós não estamos treinados. “Trabalho de detetive” significa descobrir o que realmente se está a passar. Neste exemplo, um psiquiatra sénior dissera que a senhora estava incapaz para tomar as suas decisões. Como se viu depois, ela estava demasiado sonolenta quando o psiquiatra a observou. Ou seja, não se pronunciou sobre as suas capacidades quando ela estava desperta, as quais se verificou depois serem normais. Um detetive precisa conhecer o consenso nacional sobre estes temas e o estado da arte em termos legais. Nem o consenso nem a lei são decisivos, mas uma das nossas responsabilidades oficiais é disponibilizar ambos.

Em geral, o objetivo é menos teórico do que parece. Quando o nosso grupo de trabalho esclareceu o que, na prática, o seu significado, deu as seguintes orientações:

- Confirme se o doente pode falar por si.

- Se o doente estiver capaz disso, fale com ele.

- Incite o doente ou o seu representante a informar-se completamente sobre as diferentes possibilidades e sobre as prováveis consequências de cada uma.

- Ajude o doente e os familiares a classificar a importância relativa das implicações práticas e éticas das suas escolhas.

- Procure um padrão das opções de vida do doente.

- Descubra se o doente escolheu um procurador de cuidados de saúde formal.

Finalidade 2. “Criar condições para uma comunicação respeitosa e aceitável entre as partes envolvidas”. Este segundo objetivo reconhece que decisões subsequentes podem ter de ser adiadas. Os seres humanos são agentes morais, responsáveis por decidir, depois de pensar, as suas ações segundo os seus princípios. Também encarnam várias necessidades emocionais e limitações. Além disso, os casos ocorrem como sendo parte de relacionamentos dinâmicos e não como acontecimentos isolados. Por todas essas razões, uma consulta bem-sucedida ajudará quem for capaz de se ajustar ao desenrolar das histórias. Quando conhecemos Catherine Bactri tentámos olhar para o futuro. A sua mãe provavelmente tinha uma pneumonia de aspiração – será que quereria que fosse tratada com antibióticos? Contudo, não podíamos antecipar todas as possibilidades. Idealmente deveríamos tratar de algumas das tensões entre o médico, a doente e a família, de modo que pudessem, mais tarde, lidar melhor com as decisões a tomar. Não tenho a certeza de o termos conseguido. E nada havia na minha formação que me ajudasse.

Finalidade 3. “Ajudar as pessoas implicadas a aprender a superar incertezas e discordâncias éticas por si mesmas”.

Aqui temos de olhar para lá do caso concreto, antecipar situações que envolvam o mesmo tipo de assuntos. Este objetivo explora o meu treino em filosofia, pois exige que eu elabore uma argumentação clara para as recomendações. No entanto, é também verdade que muitas pessoas sem treino em filosofia o fazem e bem. Por outro lado, algumas das perguntas que precisam ser respondidas nada têm a ver com filosofia. (Nomeadamente: qual a melhor maneira de formar os profissionais de saúde envolvidos? Podem estar ávidos de teoria ou isso pouco lhes interessar; podem querer pensar com profundidade no tema ou simplesmente obter algo que os proteja legalmente).

Finalidade 4. “Ajudar a instituição a reconhecer os padrões éticos que necessitam de atenção”. Tais padrões podem ser individuais (um médico que nunca se encontrou com a família), de âmbito local (uma unidade de cuidados intensivos onde aos doentes nunca é permitida a recusa de tratamentos) ou de âmbito hospitalar (uma política institucional obscura sobre “Decisões de Não Reanimar”). Atingir este objetivo requer um bom discernimento prático, assim como uma consciência das origens do problema (psicologia individual, uma gestão de risco intrusiva, treino inadequado do pessoal).

Não é somente nas Consultas de Ética que a Bioética exige competências fora do âmbito da filosofia. Não se pode trabalhar bem em Bioética sem se saber bem como funciona o mundo, quer isso signifique saber como se expressa o genoma, conhecer as realidades financeiras das companhias farmacêuticas ou perceber o prognóstico de recém-nascidos com baixo peso. (Muitas vezes parece suficiente conhecer estas coisas pelo menos superficialmente, uma questão a que voltarei no capítulo 10, dedicado ao trabalho interdisciplinar.) Outro exemplo é o da necessidade de compreender e saber lidar com o assunto que se quer regular quando da formulação de códigos de conduta, regulamentos e políticas institucionais.

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