Revista OM -
setembro/2011Foi recentemente anunciada uma campanha que pretende a realização de um
referendo para que os portugueses digam, sim ou não, se acham que a vida é um
valor absoluto.
Trata-se de uma forma ardilosa de levar a maioria dos votantes a responder
afirmativamente e de, com isso, conseguir modificar certas leis, assim como
promover o aparecimento de outras.
Sejamos claros, o objetivo óbvio é rever a lei que despenaliza a
interrupção voluntária da gravidez nas primeiras semanas e impedir a discussão
da eutanásia voluntária ativa (também conhecida por morte medicamente assistida
a pedido do próprio).
A pergunta referendária é aparentemente simples na sua formulação e a
resposta induzida é o Sim: a vida é um valor absoluto que se sobrepõe aos
outros valores. O “diabo está nos detalhes”!
O óvulo que todos os meses as mulheres libertam é vida? Os milhares de
espermatozoides que saltam para o desconhecido numa ejaculação são vida?
É vida um grupo de células resultante da fusão entre um óvulo e um
espermatozoide que ocorreu involuntariamente há menos de 3 meses e que se
desprende do útero por ação de uma medicação tomada voluntariamente?
Prolongar obsessivamente a vida de um doente, instituindo medicações
inúteis que apenas acrescentam sofrimento à doença terminal, é desrespeitar o
valor “absoluto” da via?
Qualquer um de nós pode decidir livremente não ser operado, ou não iniciar
um qualquer tratamento, se lhe diagnosticarem um cancro ou outra doença fatal,
esperando contudo que não deixem de controlar ativamente os sintomas de
sofrimento que vai ter antes de morrer – deve o valor da autonomia ou
autodeterminação ser subjugado ao valor “absoluto” da vida?
Sim, é justa uma campanha que combata a tendência crescente que alguns
sentem de exercerem justiça pelas suas próprias mãos, disparando contra quem os
assalta ou os ofende. Sim, é justa a condenação social de quem mata inocentes
quando conduz um automóvel sob o efeito do álcool ou de quem manda jovens,
algures numa guerra, matar inimigos reais ou fictícios da “civilização
ocidental”. Mas um referendo sobre o valor da vida vai ter algum efeito nisso?
Considero que há um grande risco de esta iniciativa referendária ter
acolhimento em certas camadas mais conservadoras da nossa sociedade e julgo que
é urgente que se comece já a equacionar a forma de a enfrentar, se iniciem
debates sobre o assunto e se prepare uma agenda inteligente contra os
absolutismos, sejam eles quais forem. Receio mesmo que possa constituir um
rastilho para o surgimento de “fundamentalismos cristãos” (o que quer que isso seja)
até agora adormecidos.
Não sei como se faz isso, não sei qual a melhor altura para sair à liça,
mas manifesto-me pronto a integrar um movimento cívico de ampla base social que
tenha por objetivo desmontar a ideia de um referendo absolutista em Portugal e,
havendo-o, trabalhar para a derrota dos seus intentos.