Este armazém foi criado para guardar e partilhar textos (e contextos) que tenho escrito ou traduzido, quase todos ao longo da “terceira” metade da minha vida, mas também antes. Até aos 35 anos formei-me e cresci, até aos 70 exerci e aprendi, agora deu-me para isto... 😊
31 dezembro 2011
Comissão de Ética para a Saúde da ARSN (2009-2011)
30 dezembro 2011
Crónicas de Epilepsia
10 Episódios in Jornal de Notícias (1996)
8 Cartas para um doente
(1999-2005) e
10 Epístolas (2006-2010)
in Notícias da Epilepsia
Livro de distribuição
gratuita
Liga Portuguesa com a
Epilepsia, 2011
Ver AQUI
01 novembro 2011
Carta aberta a um jovem investigador clínico
Não sei se já se apercebeu disso mas julgo que muitos
médicos de família já se deram conta de que, nos tempos que correm, é cada vez
mais frequente a realização de estudos de investigação clínica nas unidades de
saúde da área dos cuidados primários.
Quase todos esses estudos são de tipo observacional, quantitativos,
transversais. São questionários que se aplicam a utentes, familiares e
cuidadores ou a profissionais de saúde. A grande maioria insere-se no contexto de
graduações académicas – mestrados ou doutoramentos.
A realização destes estudos depende naturalmente da
autorização dos dirigentes das unidades onde se concretizam, cabendo aos
Conselhos Clínicos do ACES especiais competências na matéria.1 Em
algumas ARS foram criadas Comissões de Ética para Saúde (CES) tendo em vista
emitirem pareceres que ajudem os dirigentes nas suas decisões.
Há quem pense que os estudos observacionais ou, por
outras palavras, aqueles em que não há intervenção sobre os participantes não
carecem de parecer ético. Todavia, esta opinião assenta em alguns equívocos que
importa resolver.
Em primeiro lugar, convém clarificar que os pareceres das
CES não são vinculativos nem obrigatórios – os dirigentes são livres de deferir
ou indeferir os pedidos de autorização qualquer que seja o sentido dos
pareceres da CES e, por outro lado, podem decidir sem pedir parecer. Por sua
vez, aos investigadores também interessa terem um parecer de uma CES pois
algumas revistas, como esta, o exigem.
Em segundo lugar, o papel das CES é zelar pelos direitos e
interesses dos participantes. Deste modo as comissões apreciam os projetos,
verificam os conteúdos dos inquéritos e as metodologias (nomeadamente quanto à
forma como os participantes são convidados e recrutados), confirmam os
compromissos de confidencialidade e anonimato, reconhecem a pertinência e
relevância dos objetivos. Ora, estas finalidades da apreciação de projetos são
independentes do tipo de estudo e são manifestamente importantes, sejam os
estudos observacionais, experimentais ou outros.2
Também corre a opinião de que em estudos observacionais não há necessidade
de obter, por assinatura de documento, o consentimento informado dos
participantes. Aparentemente este outro equívoco resulta de um entendimento
desfocado do que é o consentimento informado – é afinal olhar só para a palavra
«consentimento » e menorizar a palavra «informado».
A utilização para fins de investigação de dados pessoais e de depoimentos
dos participantes, sejam utentes ou profissionais de saúde, implica que os
investigadores se comprometam a não os utilizar para outros fins, garantam não
identificar os participantes na publicação dos resultados, expliquem em que
consiste o estudo, não escondam os eventuais incómodos causados pelo estudo,
etc. É por isso que um documento formal para dar informações e obter
consentimento se torna necessário. Ele representa uma forma de «contrato »
entre investigador e participante, feito em duplicado, em que cada parte fica
com uma via assinada por ambos – o primeiro «outorgante» guarda-o para provar
que pediu e obteve consentimento perante eventuais auditorias; o segundo
«outorgante» guarda-o para reler, revogar se assim o entender ou reclamar se
verificar eventual incumprimento do garantido. É óbvio que a linguagem deverá
ser tão simples quanto possível, livre de termos técnicos (exceto quando os participantes
forem profissionais de saúde) e globalmente adequada à literacia dos
participantes a recrutar.3
Existe um outro ponto que dá origem a mal-entendidos – trata-se do
anonimato dos dados tratados neste tipo de estudos.
Quando os investigadores contactam diretamente com os participantes, não podem
ignorar a identidade destes, mas o que se lhes pede é que mantenham o anonimato
(nunca revelem a sua identidade). Esta garantia não se deve confundir com a
anonimização de dados de saúde que consiste na entrega, por parte das
instituições, normalmente a partir de fontes informáticas, de dados expurgados
de elementos de identificação. Outra situação diferente será a dos inquéritos de
autopreenchimento voluntário e anónimo com devolução indireta (por exemplo,
devolução por correio ou introdução em caixa fechada), pois neste caso não há
lugar a assinatura de documento de consentimento.
Assim, note-se que a utilização de dados de saúde para
fins de investigação, no respeito pela lei e pelos princípios da
confidencialidade e privacidade, só é possível quando os respetivos titulares
informada e expressamente o consintam ou quando os dados são fornecidos aos
investigadores de modo anonimizado. Na impossibilidade de se conseguir qualquer
das condições aqui referidas, um estudo pode ainda ser autorizado, se for
efetuado por profissionais da própria instituição (com natural e habitual
acesso aos dados), quando se revista de excecional interesse público e receba parecer
favorável da Comissão de Ética local.4
Já quando os estudos são realizados por médicos do internato
(colocados em fase de formação nas unidades de saúde onde decorram os estudos)
e consistem em revisões casuísticas amplas, desde que garantam, nos respetivos
protocolos de estudo, preservar o anonimato dos titulares e não pretendam criar
uma base de dados com elementos de identificação pessoal dos utentes, cremos
que poderão ser autorizados pelos Conselhos Clínicos, mediante o parecer dos
respetivos Orientadores de Formação (a quem aliás cabe também a supervisão do
estudo e da sua integridade ética).
Espero bem que estas linhas o possam ajudar caso esteja a
pensar em realizar alguma investigação. Elas representam as opções que têm sido
seguidas pela Comissão de Ética da ARS Norte nos três anos de funcionamento desde
que foi criada. O número de processos cresce todos os anos (em 2010 e 2011
dobrámos e triplicámos os números de 2009). Penso que poderá encontrar informações
úteis nas páginas da CES do portal https://www.arsnorte.min-saude.pt/comissao-de-etica/,
embora não esteja aí patente a parte do nosso trabalho que consistiu em
«negociar« com os investigadores alterações aos projetos que os tornaram mais
interessantes.5 Tem sido intelectualmente muito gratificante ver
esse trabalho reconhecido por muitos dos próprios investigadores. Desejo-lhe as
maiores felicidades profissionais e pessoais.
1. Art.º 26.º do Decreto-lei n.º 28/2008, de 28 de fevereiro.
30 setembro 2011
Futilidade terapêutica (documento-guia)
Este texto foi debatido no “SEMINÁRIO SOBRE A FUTILIDADE TERAPÊUTICA E O PAPEL DAS COMISSÕES DE ÉTICA PARA A SAÚDE” organizado em 21/09/2011 pelas Comissões de Ética para a Saúde da região norte e destina‐se a ser um documento de orientação, sem carácter vinculativo.
ver AQUI
01 setembro 2011
O Valor Absoluto
Foi recentemente anunciada uma campanha que pretende a realização de um referendo para que os portugueses digam, sim ou não, se acham que a vida é um valor absoluto.
Trata-se de uma forma ardilosa de levar a maioria dos votantes a responder
afirmativamente e de, com isso, conseguir modificar certas leis, assim como
promover o aparecimento de outras.
Sejamos claros, o objetivo óbvio é rever a lei que despenaliza a
interrupção voluntária da gravidez nas primeiras semanas e impedir a discussão
da eutanásia voluntária ativa (também conhecida por morte medicamente assistida
a pedido do próprio).
A pergunta referendária é aparentemente simples na sua formulação e a
resposta induzida é o Sim: a vida é um valor absoluto que se sobrepõe aos
outros valores. O “diabo está nos detalhes”!
O óvulo que todos os meses as mulheres libertam é vida? Os milhares de
espermatozoides que saltam para o desconhecido numa ejaculação são vida?
É vida um grupo de células resultante da fusão entre um óvulo e um
espermatozoide que ocorreu involuntariamente há menos de 3 meses e que se
desprende do útero por ação de uma medicação tomada voluntariamente?
Prolongar obsessivamente a vida de um doente, instituindo medicações
inúteis que apenas acrescentam sofrimento à doença terminal, é desrespeitar o
valor “absoluto” da via?
Qualquer um de nós pode decidir livremente não ser operado, ou não iniciar
um qualquer tratamento, se lhe diagnosticarem um cancro ou outra doença fatal,
esperando contudo que não deixem de controlar ativamente os sintomas de
sofrimento que vai ter antes de morrer – deve o valor da autonomia ou
autodeterminação ser subjugado ao valor “absoluto” da vida?
Sim, é justa uma campanha que combata a tendência crescente que alguns
sentem de exercerem justiça pelas suas próprias mãos, disparando contra quem os
assalta ou os ofende. Sim, é justa a condenação social de quem mata inocentes
quando conduz um automóvel sob o efeito do álcool ou de quem manda jovens,
algures numa guerra, matar inimigos reais ou fictícios da “civilização
ocidental”. Mas um referendo sobre o valor da vida vai ter algum efeito nisso?
Considero que há um grande risco de esta iniciativa referendária ter
acolhimento em certas camadas mais conservadoras da nossa sociedade e julgo que
é urgente que se comece já a equacionar a forma de a enfrentar, se iniciem
debates sobre o assunto e se prepare uma agenda inteligente contra os
absolutismos, sejam eles quais forem. Receio mesmo que possa constituir um
rastilho para o surgimento de “fundamentalismos cristãos” (o que quer que isso seja)
até agora adormecidos.
Não sei como se faz isso, não sei qual a melhor altura para sair à liça,
mas manifesto-me pronto a integrar um movimento cívico de ampla base social que
tenha por objetivo desmontar a ideia de um referendo absolutista em Portugal e,
havendo-o, trabalhar para a derrota dos seus intentos.
07 janeiro 2011
Remuneração dos dadores de células estaminais hematopoiéticas
princípios e perspetiva da Associação Mundial de Dadores de Medula Óssea
Tradução parcial do texto
Considerações
éticas
A
questão da remuneração da doação suscita certas preocupações éticas. O ato
essencial em questão é a decisão por parte de uma pessoa não relacionada de se
submeter a um procedimento médico em benefício de outra pessoa. Há um conjunto
significativo de trabalhos em torno das questões éticas envolvidas nesse
intercâmbio, especialmente no contexto da doação de órgãos sólidos e da
utilização de dadores como sujeitos de investigação.
Três
princípios éticos em particular são frequentemente alvo de escrutínio. O
primeiro é o princípio da dignidade, visto que a transferência de parte de um
corpo humano é diferente da de um produto ou serviço e exige considerações
únicas para não desvalorizar a vida humana através da comercialização de
órgãos, tecidos e sangue. O segundo princípio é que o dador não deve estar
sujeito a danos desnecessários ou irrazoáveis. Finalmente, qualquer sistema de
distribuição deve ser fundamentalmente justo. Em particular, nenhum segmento da
sociedade deve ter benefícios à custa de outro ou permitir qualquer tipo de
coação no processo de obtenção de células estaminais hematopoiéticas.
Dignidade
O
conceito de dignidade baseia-se na ideia de que o corpo humano deve ser tratado
como tendo um valor intrínseco que está além do valor económico potencial que
pode ser atribuído a órgãos, tecidos ou sangue por alguém necessitado. Esta
noção é fundada tanto em considerações religiosas como filosóficas. Muitas
religiões sustentam que o corpo é uma dádiva sagrada de um ser superior e que
uma pessoa tem o dever de proteger ou conservar essa dádiva. Qualquer dano ao
corpo é uma violação desse dever, exceto se for para proteger a pessoa de
outros danos. Numa perspetiva filosófica, é frequentemente feita referência aos
ensinamentos de Immanuel Kant, cuja formulação de que a sociedade deve “tratar
a humanidade ... sempre como um fim e não apenas como um meio” é frequentemente
citada como a base para concluir que o pagamento por partes do corpo é uma má
utilização de um ser humano, porque vê o dador como uma fonte de suprimento para
a pessoa necessitada e não como um outro ser humano. Ao considerar apenas o
valor económico de um órgão, tecido ou sangue doado, existe a potencial criação
de mercados para partes do corpo. Em tal cenário, a venda de uma parte do corpo
é vista como uma desvalorização da vida humana, implicando que o valor de uma
pessoa se baseia no valor material do corpo e não na condição de ser humano
racional. A doação sem remuneração é geralmente permitida no contexto religioso
como um ato de caridade em benefício de um semelhante humano, enquanto no
contexto filosófico a doação não remunerada é vista como um ato altruísta em
benefício de outrem, não como uma mercantilização de um humano em benefício do
outro.
O
conceito de dignidade deve ser sopesado com o direito de a pessoa tomar
decisões sobre o seu próprio corpo, razoavelmente livre do controlo da
sociedade. Contudo, embora reconhecendo que a pessoa tem o direito de tomar
decisões sobre o seu próprio corpo dentro de um vasto espectro de comportamentos,
a sociedade tem interesse em evitar comportamentos que tenham certas
consequências sociais que incluam a neutralização de pontos de vista ampla e
profundamente reconhecidos quanto ao valor da vida. A preocupação primordial é
que a pessoa seja valorizada como um ser humano distinto.
No contexto da dignidade, é frequentemente avançado um outro argumento a favor da remuneração, uma vez que diz respeito ao acesso das populações economicamente desfavorecidas a cuidados de saúde, onde tendem a existir mais grupos étnicos minoritários. No caso da doação de órgãos, a negação da recompensa com base na dignidade humana pode obstaculizar o acesso das populações minoritárias que beneficiariam da doação de pessoas da mesma etnia. Se esse grupo aceitar a remuneração, argumenta-se, o prejuízo é contrabalançado pelo benefício de pessoas do mesmo grupo étnico. Isto tem alguma repercussão em relação ao transplante de células estaminais hematopoiéticas de dador não relacionado, porque os doentes provavelmente encontrarão um dador dentro do seu próprio grupo étnico e os recenseamentos mais facilmente vão encontrar dadores dentro das populações minoritárias. Para sustentar este ponto de vista, tem de argumentar-se que o valor económico derivado da venda de partes do corpo é mais importante do que a defesa do conceito de dignidade pessoal e social dos seres humanos. Mas é precisamente este compromisso que mina o valor que a sociedade atribui ao ser humano. Pode também levar a uma maior mercantilização de pessoas ou grupos desfavorecidos, abrindo o potencial de remuneração para outras partes do corpo, diminuindo ainda mais o valor da pessoa ou população.
[…]
Recomendação