Carinho Intensivo: Lembrar aos doentes
que eles são importantes
Harvey Max
Chochinov, MD, PhD
University of Manitoba, and Cancer Care
Manitoba, Winnipeg, MB, Canada
Tradução espontânea do artigo
Introdução
Dame Cicely Saunders (1918-2005), a fundadora do movimento moderno dos hospícios e cuidados
paliativos, disse a famosa frase: “You matter because you are you, and
you matter to the last moment of your life” (Tu és importante porque és tu
e tu és importante até ao último momento da tua vida).1 Esta frase
tornou-se o princípio filosófico central dos cuidados paliativos. Exorta-nos a lembrar
aos doentes que podem estar a sentir-se desamparados, sem esperança ou sem valor,
que são eles importantes. Mesmo quando sentem que a vida já não vale a pena ser
vivida, nós, os seus profissionais de saúde, devemos afirmar o seu valor intrínseco,
por tudo o que são, tudo o que foram e tudo o que se tornarão nas memórias coletivas
daqueles que acabarão por deixar para trás. Embora Dame Cicely nos tenha
dado esta diretiva inspiradora, falta cumprir uma abordagem bem articulada centrada
na afirmação da importância dos doentes. Esta abordagem, que designarei por Carinho
Intensivo, incorpora várias componentes de ordem empírica que, coletivamente,
descrevem uma forma de estar com os doentes que perderam a esperança, perderam qualquer
sentido ou objetivo e, em última análise, sentem que já não são importantes.
Porque é
importante ser importante
Há muitas provas de que os doentes que
se aproximam da morte têm tendência para sentirem que já não são importantes.
A nossa própria investigação demonstra que os doentes que se aproximam da morte
podem sentir-se um fardo para os outros2; que a vida é fútil e
uma aflição para quem se sente sobrecarregado por ter de cuidar de si. A autoperceção
de fardo é contagiosa e autoperpetua-se; os doentes que a vivenciam podem fazer
com que os familiares se sintam desamparados e exaustos, confirmando tacitamente
que eles são, de facto, um fardo.3 O sentimento de fardo tem sido
consistentemente referido como um fator impulsionador do desejo de morte, da perda
de vontade de viver e do interesse pela morte apressada pelo médico.3
Na perspetiva do doente, a morte permite aliviar o fardo em que se sente transformado,
ao mesmo tempo que põe fim a uma vida que sente já não ter importância.
Lembro-me de um desses doentes no início
da minha carreira que se debatia com sentimentos de futilidade e desespero face
a um cancro cerebral em fase terminal. Tinha sido internado numa enfermaria de neuro-oncologia,
onde se sentia um fardo para a sua equipa de saúde e queria que eu o ajudasse a
morrer. Não via grande interesse em continuar a sua vida, marcada por uma doença
bipolar, abuso de substâncias e afastamento da família; sentia enfaticamente que
já não tinha importância. Disse-lhe que não podia nem queria apressar a sua morte,
mas que estava disposto a apoiá-lo de todas as formas possíveis até ao fim. Começámos
a encontrar-nos semanalmente, por vezes duas vezes por semana, enquanto eu procurava
saber mais sobre quem ele era, incluindo as origens da sua autodepreciação crónica.
Queixava-se frequentemente de coisas como as rotinas do hospital, o pessoal médico
– e um dia começou a criticar-me a mim e à futilidade dos meus esforços para o ajudar.
Sendo jovem e ingénuo, sugeri que, se os nossos encontros não ajudavam, nenhum de
nós tinha obrigação de continuar. Ele respondeu como se eu tivesse enlouquecido.
“Está doido?”, disse ele. “Estas consultas são a única coisa que me faz continuar!”
Elementos do Carinho Intensivo
A prestação de Carinho
Intensivo exige que se encontrem formas de lembrar aos doentes que eles ainda são
importantes - Quadro
Um elemento fundamental desta abordagem
é o não-abandono, que exige cuidados empenhados, contínuos e carinhosos,
mesmo quando os doentes já não se preocupam consigo próprios. Dame Cicely
escreveu que “o sofrimento só é intolerável quando ninguém se importa”.1
Na ausência de alguém que se importe, o sofrimento, tal como o cancro, pode crescer,
espalhar-se e até matar. Estudos demonstraram que, quando os doentes se sentem abandonados
e desprovidos de cuidados, é mais provável que pensem em suicidar-se ou que morram
por suicídio.4 Outros estudos referiram que uma ligação sustentada
e de qualidade entre os doentes e o seu oncologista protege melhor contra a ideação
suicida do que as intervenções de saúde mental, incluindo os medicamentos psicotrópicos.5
Os nossos estudos sobre o desejo de morte nos doentes terminais revelaram que aqueles
que desejam a morte relatam um menor apoio familiar do que aqueles que não o desejam.6
Assim, a garantia de cuidados e apoio continuados é uma componente vital para ajudar
os doentes a sentirem-se importantes.
Outra componente do Carinho
Intensivo é o grande interesse em saber quem é o doente enquanto pessoa.
Os nossos estudos sobre a Patient Dignity Question (PDQ), que perguntam “o
que preciso de saber sobre si, enquanto pessoa, para lhe prestar os melhores cuidados
possíveis”, ajudam os doentes a sentirem que são vistos como pessoas completas e
não como a personificação da sua doença ou incapacidade.7 Um estudo
recente com mais de 2.000 doentes internados e em ambulatório atendidos num centro
oncológico de cuidados quaternários nos Estados Unidos referiu que o PDQ pode ser
utilizado como meio de fazer emergir valores entre os doentes com neoplasias malignas
avançadas.8 Ser considerado desta forma holística ajuda a salvaguardar
a dignidade do doente. O reconhecimento da personalidade deve seguir os princípios
da consideração positiva incondicional, transmitindo apreço por quem são, o que
são e tudo o que tentaram ser.9 Também aumenta a aproximação,
o respeito e a empatia dos profissionais de saúde para com os doentes, estabelecendo
que, para além das particularidades do seu estado clínico, o que são, como pessoas,
conta.7
Quando os doentes sentem que não
são importantes, a falta de esperança está sempre por perto. Os estudos mostram
consistentemente uma forte ligação entre a falta de esperança e o suicídio.10,11
A nossa própria investigação no domínio dos cuidados paliativos afirma que a falta
de esperança é um forte indicador do desejo de morrer.10 O Carinho
Intensivo mostra que os profissionais de saúde mantêm ou alimentam a esperança quando
os doentes já não o conseguem fazer. Isto significa ampliar a imaginação terapêutica
para incluir a possibilidade de o doente encontrar conforto psicológico, espiritual
e físico, tolerar o sofrimento e, para os que estão perto do fim, ter uma morte
tranquila. Perto do fim da vida, a esperança tende a confundir-se com o seu sentido
e o objetivo e pode ser alimentada através de conexões com aqueles que, ou com as
coisas que, importam. Isto pode incluir a afirmação de que tudo o que precisa de
ser dito já foi dito ou merece ser repetido. Há estudos que demonstram que as abordagens
clínicas que facilitam a partilha deste tipo de informação atenuam o sofrimento
psicológico, melhoram a experiência de fim de vida12,13 e proporcionam
conforto às famílias.14 Os profissionais de saúde também podem
orientar as famílias ao longo de um caminho marcado por oportunidades de relacionamento,
conforto, perdão e despedidas.15
Os doentes podem também encontrar
sentido ou sentir-se confortados por saberem que estão a preparar os entes queridos
que em breve deixarão para trás. Recordo-me de uma jovem mulher com cancro da mama
metastático que, no contexto da terapia da dignidade12 , mostrou
sabedoria para ajudar a orientar a sua filha no futuro, partilhou reminiscências
para ajudar a família a manter a memória da sua vida demasiado curta, agradeceu
aos pais e aos irmãos o amor e o apoio que a moldaram como pessoa e deu ao marido
autorização para encontrar a felicidade, incluindo uma nova companheira, à medida
que se aproximava uma vida já sem ela. Este tipo de oportunidades estende-se até
ao fim da vida. Para algumas pessoas, os seus significado e objetivo podem residir
no facto de saberem que, ao morrerem, terão dado um exemplo de como deixar esta
vida valiosa.
O Carinho
Intensivo exige um nível de cuidados que afirme a dignidade. Estudámos este
registo, que designámos por Presença Terapêutica.16 Isto inclui
ser compassivo e empático, ser respeitoso e não julgar, ser genuíno e autêntico,
ser digno de confiança, estar totalmente presente, considerar o valor intrínseco
do doente, ter em atenção os limites e ser emocionalmente resiliente. Complementarmente,
este tipo de cuidados, independentemente das palavras ou ações, afirma o valor dos
doentes, proporciona-lhes o respeito que merecem e afirma que são verdadeiramente
importantes.
Necessidade de humildade terapêutica
A prestação de Carinho Intensivo pede
humildade terapêutica. O paradigma médico – examinar, diagnosticar e curar
– é motivador, mas, no domínio do sofrimento humano, alguns problemas simplesmente
não podem ser curados. A humildade terapêutica significa renunciar à necessidade
de resolver, bem como tolerar a ambiguidade clínica, respeitar e honrar o doente
como conhecedor e confiar no processo.16 Há cancros que não podem
ser curados, depressões que resistem ao tratamento e sofrimento cuja intensidade
parece impenetrável. Nesses casos, o objetivo de curar pode levar a sentimentos
de fracasso e a uma tendência para desistir. A conivência com o desespero do doente
pode levar os profissionais de saúde a afirmarem que, de facto, tudo é fútil e que
a própria vida é inconsequente. Ironicamente, embora isto possa aumentar um sentimento
de compreensão mútua e até de ligação, é um beco sem saída terapêutico, sendo a
morte a única forma aparente de resolver o sofrimento dos doentes. A humildade terapêutica
faz com que as noções de correção cedam ao compromisso de compreender a natureza
do sofrimento do doente, criando ao mesmo tempo um espaço seguro para apoiar, validar
e confortar sempre. Os profissionais de saúde também devem valorizar o potencial
terapêutico de fazer com que os doentes expressem o seu sofrimento, reconhecendo
a sua experiência, aliviando assim o seu peso e diminuindo o sentimento de isolamento.
Tolerar
a ambiguidade não é fácil, pois significa percorrer um caminho clínico repleto de
incertezas, na ausência dos nossos instrumentos terapêuticos habituais destinados
a curar. O apoio dos colegas pode ajudar-nos a superar este tipo de trabalho. O
Carinho Intensivo pode ser especialmente exigente quando se trata de pessoas que
oscilam entre a vida e a morte e impõe-se, quer se trate de doentes com cancros
em estado avançado, quer dos que lutam contra doenças em que a morte não é razoavelmente
previsível. Durante muitos anos, cuidei de uma dessas mulheres, cuja carreira académica
de sucesso se desfez depois de uma cirurgia ao cancro a ter deixado com dores crónicas,
o que levou a uma depressão residual intensa. Anos sucessivos de tratamentos, hospitalizações
e terapia eletroconvulsiva não conseguiram ajudá-la a recuperar a essência de quem
ela era. Quando ela se sentia perto do limite, eu lembrava-lhe que o nosso trabalho
em conjunto era importante, que ela era importante e que eu continuava empenhado
em vê-la. Por vezes, parecia que a nossa ligação inabalável era a única coisa que
a mantinha agarrada à vida. Um dia, duas semanas após a introdução de mais um antidepressivo
(desta vez recém-lançado), ela sentou-se na cadeira, virou-se para mim e declarou:
“a porta do consultório é roxa”. Eu disse-lhe que sempre tinha sido roxa, ao que
ela respondeu alegremente: “Eu sei, mas agora importo-me!” O envolvimento contínuo
oferece oportunidades de apoiar os doentes e, por vezes, até um potencial de cura.
Conclusão
O Carinho Intensivo, a expressão terapêutica da frase “Tu
és importante porque tu és tu” de Dame Cicely, proporciona uma forma de
estar com os doentes que acredita que as suas vidas já não têm qualquer
importância. Embora o Carinho Intensivo esteja concebido para responder às
necessidades dos doentes com doenças graves e potencialmente fatais, ele também
é uma forma de todos os profissionais de saúde estarem com doentes que
enfrentam a enormidade do sofrimento humano. Enquanto tentar reparar o que está
intrinsecamente estragado pode fazer com que os profissionais de saúde se
sintam impotentes e com a sensação de estarem a falhar, o Carinho Intensivo dá
a oportunidade de visar objetivos alcançáveis, centrados em inúmeras formas de
afirmar que os doentes são importantes. Os seus elementos individuais estão bem
descritos na literatura e, coletivamente, englobam a presença, a compaixão e a
esperança. Embora a repercussão transcultural do Carinho Intensivo ainda esteja
por ver, a noção de individualidade e a necessidade de sentir que se é
importante é universal e fala da essência do que é ser humano. Passaram mais de
50 anos desde que Dame Cicely partilhou a sabedoria que fundamenta esta
abordagem clínica. Décadas mais tarde, quando o poder de cura da medicina
ultrapassa o seu próprio âmbito, é altura de apelar ao papel do Carinho
Intensivo.17