01 novembro 2022

Declaração de Barcelona


Declaração de Barcelona sobre Princípios Éticos

[Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos a partir do artigo de P. Kemp, J. D. Rendtorff, (2008) The Barcelona Declaration, Synthesis Philosophica 46, 2, p. 239-251]

Propostas de políticas à Comissão Europeia

Novembro 1998

pelos Membros do BIOMED-II Project Basic

Princípios Éticos da Bioética e da Biolegislação Europeias

A. Preâmbulo

Este documento é o resultado de um debate realizado no seio do projeto de investigação BIOMED da União Europeia por um grupo de 22 participantes oriundos de diferentes países da Comunidade Económica Europeia alargada e coordenado pelo Centro de Ética e Direito de Copenhaga. Os participantes provinham de várias disciplinas e de horizontes diferentes, mas o seu interesse comum era em questões éticas levantadas pelo progresso da biomedicina e da biotecnologia modernas.

Esse processo consistiu em quatro grandes reuniões (Copenhaga, Sheffield, Utrecht, Barcelona) e num debate contínuo entre os participantes. Resultou numa publicação em dois volumes (Princípios Éticos Básicos em Bioética e Biolegislação Europeias, vol. I-II), juntamente com uma série de documentos de trabalho como primeiro passo para estimular e apoiar um amplo debate democrático sobre as questões mais controversas em bioética e biolegislação. O primeiro volume tem coautoria de Jacob Dahl Rendtorff e Peter Kemp, mas foi amplamente discutido pelos participantes na reunião final em Barcelona, em novembro de 1998. O segundo volume contém trabalhos específicos relacionados ao projeto.

Este breve documento de trabalho com propostas de políticas destina-se a várias audiências, a decisores em todos os níveis na União Europeia, a educadores de todos os níveis, investigadores e profissionais, mas, mais importante, aos cidadãos em geral na Europa (não apenas na União Europeia). O seu objetivo é estimular e auxiliar o mais amplo e controverso debate público sobre algumas das questões mais vitais e conflituantes dos nossos tempos. Essas questões têm de ser discutidas não só quanto ao ambiente europeu, mas de um modo sensivelmente mais alargado. As perguntas não são simplesmente sobre o bem-estar dos seres humanos, mas também sobre a equidade social, o bem-estar dos animais e a sustentabilidade do ambiente global.

Neste documento, temos algumas observações sobre o contexto em que os participantes pensam que as questões devem ser debatidas, quatro princípios que os participantes consideram úteis para orientar ideias na prossecução do debate e uma agenda que mostra algumas das principais perguntas e algumas respostas propostas.

Na verdade, os participantes apresentam este documento como especialistas, mas também no espírito de uma cidadania responsável. Seria, nomeadamente, antiético que os participantes impusessem as suas propostas abaixo sugeridas. Portanto, é intenção explícita dos participantes e objetivo deste documento facilitar o debate democrático crítico e decisões adequadas e responsáveis.

B. Contexto

Para os objetivos da discussão das propostas de políticas, os participantes trabalharam com a ideia de que o valor da “autonomia” (juntamente com integridade, dignidade e vulnerabilidade) deve ser posto no contexto do cuidar do outro – um contexto que já pressupõe uma ética de solidariedade, responsabilidade e justiça (lealdade). No entanto, é importante que a própria ideia de “autonomia no contexto do cuidar do outro” seja inserida no contexto mais amplo da biomedicina e biotecnologia, da economia e cultura na Europa nas últimas décadas do século XX.

Primeiro, o desenvolvimento acelerado da biomedicina e da biotecnologia – particularmente na área da genética – criou (e está a criar) muitas novas possibilidades, mas também levanta muitas perguntas sobre o lugar dos seres humanos, animais, plantas e meio ambiente (tanto natural como social). Essas são questões que os participantes acreditam que precisam ser debatidas o mais amplamente possível e com urgência, mas sem a necessidade de chegar a conclusões precipitadas. No entanto, existem dificuldades consideráveis em articular os termos em que essas questões devem ser enquadradas e discutidas, e muito menos resolvidas.

As propostas identificam quatro termos de referência principais para esse debate (ou seja, os quatro princípios de autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade), além de esboçarem, num contexto normativo, algumas sugestões de políticas derivadas desses conceitos básicos reguladores.

Em segundo lugar, as propostas devem ser lidas como um contributo para um processo de diálogo e debate sobre políticas bioéticas e biolegais na Europa. Em grande medida, a política na Europa já reflete uma cultura de cuidados com o outro – como é testemunha, por exemplo, a Convenção do Conselho da Europa sobre Direitos Humanos e Biomedicina, que foi finalizada enquanto esse projeto estava em andamento. Existe também um apoio considerável na Europa ao princípio da não-discriminação e à sustentabilidade a longo prazo do meio ambiente. No entanto, há poucas dúvidas de que os europeus compartilham, primeiro, o sentido de responsabilidade e de capacidade de resposta para com terceiros (o sentimento de que os outros realmente importam) e, segundo, a responsabilidade pela viabilidade ecológica. No entanto, ainda estamos a marcar o terreno conceptual com o qual po-demos nos encontrar para expressar o nosso acordo, mas também a nossa discordância. Os quatro princípios de autonomia, dignidade, integridade e vulnerabilidade são, pensamos, características importantes desse terreno. Não se afirma, no entanto, que esses princípios representem todo esse terreno, nem mesmo a única maneira de expressar uma ética do cuidado com o outro e a qualidade do ambiente global. A maneira como foram articulados é impulsionada pelo desejo de alcançar um consenso amplo. Embora o grupo tenha concordado em que as quatro ideias norteadoras são centrais para a análise da bioética e da biolegislação, houve uma discordância considerável sobre uma interpretação substantiva dessas ideias e, em particular, a noção de dignidade, apesar de haver total consenso sobre a importância da articular a noção de vulnerabilidade. Também deve ficar claro que qualquer aplicação das quatro ideias orientadoras dependerá fortemente da própria interpretação dos princípios.

Em terceiro lugar, as propostas apresentam um quadro conceptual no qual os europeus podem debater questões de bioética e biolegislação. Não se deve pensar, no entanto, que uma linguagem comum implique uma resolução fácil dos assuntos em discussão. Facilitar o debate é uma coisa; resolver diferenças de valor é outra questão. Cada um dos quatro princípios reguladores apresentados na próxima secção deve ser considerado como uma orientação para o debate e a tomada de decisões. No entanto, esses princípios estão abertos a interpretações alternativas; a relação precisa entre cada um dos princípios será enformada por posições teóricas mais gerais adotadas pelos discordantes; e são discutíveis quais as formas de vida que devem ser incluídas na ideia de “outro” (seja como portador de direitos ou com interesses a serem protegidos e promovidos), assim como a relação entre os seres humanos e o ambiente.

Em quarto lugar, o enquadramento é feito para uso na União Europeia, como uma comunidade económica no mercado global. Nesse mercado, deve-se entender que a biotecnologia e a biomedicina representam negócios globais altamente competitivos. O mercado envolve um processo de exclusão que opera em vários níveis. Num nível, os cidadãos têm dificuldade em intervir na tomada de decisões. Este documento procura compensar esse défice democrático. Noutro nível, esse mercado pós-nacional funciona com exclusão dos menos favorecidos em todo o mundo, tanto no Norte quanto no Sul. Embora este documento tenha sido elaborado pelos europeus para debate entre os europeus, como enfatizamos, a biotecnologia é um negócio global. Se a importância de ser um negócio global é a ética do cuidado com o outro não conhecer fronteiras regionais, a importância de ser um ‘empurrão’ global é a ética ter de se dirigir ao investimento comercial e às obrigações que impulsionam a biotecnologia moderna. Ou seja, posições acordadas no debate bioético europeu não serão defensáveis se negligenciarem os interesses dos não europeus. Nem serão efetivamente promovidas se não envolverem a prática comercial.

Finalmente, vale a pena apontar a noção fundamental de que todos nós (mesmo os autónomos) somos vulneráveis. A ética do cuidado com o outro não é simplesmente uma questão de proteger aqueles que são incapazes de agir autonomamente (as formas de vida mais vulneráveis). Pelo contrário, é uma ética que se baseia na premissa de que todos somos capazes de ser lesados por ações negligentes (e às vezes paternalistas) dos outros.

Apesar do reconhecimento das complexidades, ao aplicar as quatro ideias norteadoras ao contexto, o grupo chegou a acordo com as seguintes recomendações, pelo menos em princípio:

C. Articulações

1. A autonomia não deve ser apenas interpretada no sentido liberal de “permissão” dada para tratamentos e/ou experiências. Devem ser consideradas cinco qualidades: 1) a capacidade de criação de ideias e objetivos para a vida; 2) a capacidade de discernimento moral, “autorregulação” e privacidade; 3) a capacidade de reflexão e ação sem constrangimentos; 4) a capacidade de responsabilidade pessoal e envolvimento político; 5) a capacidade de consentimento informado. Mas a autonomia não expressa o significado completo do respeito e da proteção do ser humano. A autonomia continua a ser apenas um ideal, devido às limitações estruturais que lhe são impostas pela finitude humana e dependência de condições biológicas, materiais e sociais, falta de informações para raciocinar, etc. Temos de reconhecer a pessoa humana como um corpo vivo concreto. A autonomia em relação a crianças pequenas, pessoas em coma e pessoas com problemas mentais deve permanecer uma questão em aberto.

2. Dignidade é a propriedade em virtude da qual os seres possuem estatuto moral. Existem várias conceções opostas de dignidade na cultura europeia. A dignidade é, de várias formas, identificada com a capacidade de ação autónoma, a capacidade de sentir dor ou prazer, de ser humano (no sentido biológico) ou um organismo vivo ou mesmo sistema. Reconhecendo as várias definições, em nossa opinião, é no entanto possível defender com sucesso que o ser humano tem deveres em relação à parte não humana da natureza viva.

3. Integridade. A ideia de integridade expressa o núcleo intocável, a condição básica da vida digna, tanto física quanto mental, que não tem de estar sujeita a intervenção externa. Portanto, respeitar a integridade é respeitar a privacidade e, em particular, o entendimento do doente sobre a sua própria vida e doença. A integridade refere-se à coerência da vida dos seres com dignidade que não deve ser tocada e destruída. Em relação aos seres humanos, é a coerência da vida que resulta das vivências e, portanto, pode ser contada numa narrativa. É a vida de uma pessoa, a unidade narrativa ou história da sociedade humana e da cultura. Alguns também incluiriam a coerência natural da vida de animais e plantas e, finalmente, tudo quanto no mundo cria as condições para toda a vida.

4. A vulnerabilidade expressa duas ideias básicas. (a) Expressa a finitude e fragilidade da vida que, nos capazes de ter autonomia, fundamenta a possibilidade e a necessidade de toda a moralidade. (b) A vulnerabilidade é o objeto do princípio moral que obriga ao cuidado com os vulneráveis. Os vulneráveis são aqueles cuja autonomia, dignidade ou integridade podem estar ameaçadas. Como tal, todos os seres que têm dignidade estão protegidos por esse princípio. Mas o princípio também obriga especificamente não apenas à não-interferência na autonomia, dignidade ou integridade dos seres, mas também que eles recebam ajuda que lhes permita realizar o seu potencial. A partir dessa premissa, conclui-se que existem direitos positivos à integridade e autonomia que fundamentam as ideias de solidariedade, não discriminação e comunidade.

D. Aplicações

5. As quatro ideias ou princípios orientadores não anulam as variações culturais na Europa, desde que respeitem o princípio da subsidiariedade.

6. A aplicação de ideias orientadoras não se deve restringir à esfera humana; dignidade, integridade e vulnerabilidade também podem ser uma base para a legislação e a prática legal em relação a animais, plantas e meio ambiente.

7. Cada país deve ter um serviço nacional de saúde baseado no princípio do seguro social.

8. Deve ser consagrada na legislação de todos os países europeus uma Carta dos Doentes, especificando os seus direitos e participação nas decisões políticas de cuidados de saúde.

9. Os doentes têm o direito de consentir e recusar tratamentos e ensaios terapêuticos.

10. Os leigos devem fazer parte das comissões de ética para a investigação.

11. As crianças nascidas como resultado da doação de gâmetas têm direito a informações sobre os seus pais genéticos, mas os doadores não devem ter responsabilidades ou deveres com essas crianças.

12. Os embriões devem ter um estatuto moral proporcional, de acordo com seu grau de desenvolvimento.

13. Deve haver proteção dos animais e da biosfera na legislação.

14. O anonimato dos doadores de órgãos deve ser mais discutido.

15. A eutanásia e outras decisões em fim de vida devem ser objeto de amplo debate e consulta pública.

16. A comercialização de tecido humano, incluindo o genoma humano e a doação de órgãos, deve ser objeto de amplo debate e consulta pública.

As propostas de políticas foram assinadas pelos seguintes participantes: 1. Francesc Abel, Institut Borja de Bioètica, Spain; 2. Mylène Botbol-Baum, Université Catholique de Louvain, Belgium; 3. Roger Brownsword, Faculty of Law, University of Sheffield, England; 4. Jean-François Collange, Faculté de Théologie Protestante, Université des Sciences Humaines de Strasbourg, France; 5. Geneviève Delaisi de Parseval, France; 6. Torben Hviid Nielsen, Senter for teknologi og menneskelige værdier (TMV) (Centre for Technology and Culture), Norway; 7. Teresa Iglesias, Dept. of Philosophy, University College Dublin, Ireland; 8. Peter Kemp, Centre for Ethics and Law, Denmark; 9. João Carlos Loureiro, Centro de Direito Biomédico, Universidade de Coimbra, Portugal; 10. Catherine Manuel, Faculté de Médecine, Université Aix Marseille II, France; 11. Madeleine Moulin, Centre de Sociologie de la Santé, Université Libre de Belgique, Belgium; 12. Rui Nunes, Centro De Estudos De Bioética, Portugal; 13. Francesco Rubino, Dep.of Civil & Economic Relationships, Salerno University, Italy; 14. Jan Helge Solbakk, Senter for medisinsk etikk (Centre for Medical Ethics), Universitetet i Oslo, Norway; 15. Georges Thill, PRÉLUDE réseau international, Facultés Universitaires Notre- Dame de la Paix, Na-mur, Belgium; 16. Helge Torgersen, Institute of Technology Assessment, ITA, Austrian Academy of Sciences, Austria

These policy proposals were made at the last meeting of the BIOMED-II Project in Barcelona, November 1998. They are reprinted in the Final Project Report (two volumes) on Basic Ethical Principles in European Bioethics and Biolaw, Institut Borja de Bioètica, Barcelona & Centre for Ethics and Law, Copenhagen, 2000, which contains an extensive discussion of the four guiding ideas and their applications. Comments from Partners to Policy Proposals, see Volume II of the Final Project Report.