08 dezembro 2021

O Desaparecimento do Exame Físico nos Cuidados Primários

 
November 2020 Volume 180, Number 11

O Desaparecimento do Exame Físico nos Cuidados Primários – Perder o Toque
Paul Hyman, MD, Mid Coast-Parkview Health, Brunswick, Maine.

Quanto vale um exame físico? Ao olhar fixamente para uma lista das próximas consultas com doentes da minha clínica de cuidados primários e tentar decidir quem deve entrar no consultório apesar da pandemia da Covid-19, esta questão paralisa-me.

Nos 15 anos que levo como médico, o exame físico sempre ocupou para mim um espaço precário. Como residente, as resmas de informação que tinha sobre os doentes antes de entrar no seu quarto fizeram com que fosse tentador fazer o “exame físico rápido”, como Robert Hirschtick se queixou num ensaio1 recentemente republicado. Mais recentemente, a insistência da minha organização de cuidados para aumentar o nosso número anual de consultas de bem-estar da Medicare, as quais não obrigam a um exame físico, e as recomendações2 de alguns, contrárias a exames físicos de rotina em doentes assintomáticos, fizeram-me pensar por que razão examino pessoas idosas saudáveis.

Dado que a nossa prática de cuidados primários se tem deslocado para a telessaúde e o exame físico se tem afastado de mim, dou por mim a refletir sobre qual o valor que este exame tem. É claramente necessário, por vezes, para fazer um diagnóstico. Mas agora apercebo-me de outras formas como utilizo o exame para antecipar cuidados e do seu significado para o meu próprio bem-estar. É um meio através do qual faço uma pausa e me ligo fisicamente aos doentes, demonstro os meus conhecimentos e autoridade, e é um instrumento que utilizo para persuadir os doentes e para processar as suas narrativas.

Muitos médicos diriam que alguns diagnósticos não podem ser feitos sem examinar pessoalmente um doente. Não sei bem como distinguir vertigens centrais versus periféricas, diagnosticar otite média ou determinar se alguém tem hipotensão ortostática sem examinar a pessoa à minha frente. Além disso, muitos de nós têm casos em que uma descoberta inesperada no exame parece ter salvo a vida de um doente. A descoberta de uma verruga irregular, uma massa de tecido mole ou um novo sopro – não me esqueço destes casos e penso que os doentes também não.

O que era menos aparente para mim antes da pandemia era como um exame físico atento proporciona um grau de objetividade que me pode ajudar a repensar a narrativa de um doente. Eu trabalho no Maine, onde há uma boa quantidade de estoicos. Um doente procurou-me recentemente, sentindo-se um pouco cansado, mas achava que não era nada, provavelmente como resultado de um trabalho demasiado árduo. O seu exame sugeriu que ele estava em insuficiência cardíaca. Se eu não tivesse sido capaz de ouvir o seu coração e pulmões e de examinar a sua veia jugular e extremidades inferiores, poderia ter colocado demasiado peso na falta de preocupação do doente e ter perdido o diagnóstico. Quando doentes e eu discordamos sobre um plano, o exame físico não só fornece dados, como também atua como árbitro. Por exemplo, os doentes sentem por vezes necessidade de utilizar antibióticos para tratar uma infeção respiratória. Se eu comunicar que os resultados do seu exame pulmonar são claros e que os seus níveis de saturação de oxigénio são normais, eles sentem-se muitas vezes mais tranquilos por não precisarem de medicação.

O exame, porém, é mais do que uma ferramenta que informa o diagnóstico e o tratamento. Percebo agora o valor que tem para mim. Os momentos tranquilos em que estou a ouvir os batimentos cardíacos e a respiração de um doente podem ser centrais, à semelhança daquela parte de uma meditação em que nos recentramos na própria respiração. Abraham Verghese3 elaborou extensivamente sobre o papel do exame físico como um ritual e a sua importância para os doentes; também observou como este ritual acarreta satisfação para os médicos devido à conexão humana. Só agora reconheço o exame como um ritual restaurador que me traz tranquilidade e confiança.

Numa admissão da minha própria insegurança, o exame físico acaba por ser uma das poucas áreas em que mantenho um sentido de competência profissional e autoridade. Nunca fui um grande procedimentalista. A base do que ofereço aos doentes é a capacidade de os ouvir, de usar o pensamento crítico e de oferecer os meus conhecimentos e experiência. Mas essas capacidades são por vezes desafiadas num mundo onde os doentes pesquisam a sua própria saúde e desenvolvem as suas próprias narrativas médicas. O exame físico continua a ser um momento em que ofereço algo de distinto valor e que é apreciado.

Assim, ao cabo de 15 anos de exercício, o exame físico é uma das minhas rotinas, adquirida com o surgimento da pandemia. Começando pelos princípios da escuta ativa, pela recolha de dados e pela criação de algo bem diferente, tinha-me afastado de praticar a medicina para que me sentia mais bem preparado. Embora continuasse evoluindo neste processo, não me questionava todos os dias se um doente precisava de um exame físico. Mas a pandemia obrigou-me a desconstruir a minha rotina, incluindo o exame físico, de uma forma que me deixa em terreno incerto. Isto tem sido emocionalmente exaustivo e inquietante.

Nem tudo está perdido com o surgimento da telessaúde. Pelo menos nestas fases iniciais, as consultas virtuais parecem permitir-me estabelecer uma ligação mais frequente e fácil com os doentes. Com a telessaúde, posso ver doentes nos seus ambientes domésticos, o que muitas vezes me dá novas informações sobre fatores que influenciam os seus comportamentos de saúde. As consultas virtuais respeitam o tempo de um doente. E, claro, nesta pandemia quando o distanciamento social é tão importante, a telessaúde é mais segura para os doentes. Com o passar dos meses, vou me adaptar e, sem dúvida, aprendendo novas formas de recolher dados de exames físicos. A tecnologia utilizável ou a orientação de doentes através de autoexames irá permitir algumas abordagens criativas para obter ganhos com o tele-exame.

Nos últimos 10 anos, com o aparecimento dos registos de saúde eletrónicos e dos cuidados baseados em equipas, nós, médicos de cuidados primários, encontrámo-nos numa base insegura com a nossa identidade e a nossa forma de praticar, frequentemente deslocados e perturbados. Não tenho dúvidas de que quando a poeira assentar da pandemia de Covid 19, as coisas voltarão a mudar, incluindo uma reavaliação do papel do exame físico em consultório.

Este exame, na sua forma atual, pode ser deixado para trás. Como Michael Rothberg escreve num artigo recente de JAMA4 (p1683), alguns exames físicos, no nosso ambiente atual de cuidados de saúde, podem ter consequências não intencionais dispendiosas e arriscadas, levando a “testes invasivos e potencialmente ameaçadores de vida”. Embora simpatize com esta lógica e reconheça os benefícios da telessaúde, tenho dificuldade em encontrar equipolência (equipoise - incerteza ou indeterminação de benefício). Ao tentar manter os doentes à distância, estou a perder o contacto com uma parte da minha identidade profissional.

___________________ 
1. Hirschtick RE. The quick physical exam. JAMA.2016; 316(13):1363-1364.
2. Society of General Internal Medicine. Five things physicians and patients should question. Choosing Wisely. September 12, 2013. Updated February 15, 2017. Accessed May 8, 2020.  
3. Parks T. Dr. Abraham Verghese looks at the patient- physician relationship. American Medical Association. January 20, 2016. Accessed May 8, 2020.  
4. Rothberg MB. The $50 000 physical. JAMA.2020; 323(17):1682-1683.