Teatro Nacional S. João (2021)
Dar a mão
Os fantasmas assustadores, as aparições ameaçadoras, ou seja, os “espectros”
que nos assolam no fim de vida são tão pessoais como imprevisíveis. Ninguém
sabe como os vai ver, ninguém é capaz de verdadeiramente imaginar o que o outro
vê ou pensa ver.
O enredo desta peça de Ibsen conduz-nos, num encadeado de relações
equívocas, para um final sem boas saídas.
O medo de morrer é generalizado em todas as sociedades, pese embora algumas
afirmações em contrário de alguns valentes saudáveis. Esse medo deriva, naturalmente,
do desconhecido. É sabido que os crentes na vida para lá da morte serão mais
propensos a confiar em que esse desconhecido poderá ser de eterna felicidade,
mas a incerteza gera medos. Os incréus, os que pensam que para lá da morte não
há nada, senão a memória, temem, tanto quanto os outros, pelo que deixam de
viver, e também para eles não há certezas.
Caso diferente é o choque de medos. Quem sente que está perto de morrer
passa, frequentemente, a ter dois medos: o de morrer e o de viver. As dores
físicas e os sofrimentos mentais, tantas vezes juntos, seja em doenças fatais e
iminentes, seja em situações incuráveis e incontroláveis, levam muitas pessoas
a questionar-se sobre a qualidade do seu viver.
Estas afirmações, aparentemente consensuais, não significam que todos
reajam e pensem do mesmo modo, ou que haja uma reação ou um pensamento mais
correto do que outro. Não somos todos iguais e os espectros da morte próxima ou
da vida insuportável podem, muitas vezes, ser afugentados com apoio
profissional e lenitivo (cuidados paliativos), com ajuda de medicações para as
dores, a ansiedade ou a depressão, com abordagens psicológicas apropriadas, com
o amparo de familiares ou pessoas próximas e queridas.
Contudo, neste conflito de medos, restam situações em que “o direito à
vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”,
como salientou recentemente o nosso Tribunal Constitucional. São situações
obviamente carregadas de grande subjetividade e perturbadas por imensas
dificuldades de decisão.
Sejamos claros. Esta peça, sem happy end, nada tem a ver com a eutanásia. “A
eutanásia não é um tópico central em Espectros, mas encontra um eco na peça”, como
diz quem me convida a escrever umas palavras para este programa de sala.
Todavia, falar desse tema é incontornável.
A palavra “eutanásia” é, contudo, algo equívoca. Melhor dito, contém em si
vários significados. Há quem a entenda como sendo a morte provocada mesmo que o
doente a não deseje e não a peça – seria, nesse caso, um homicídio (eutanásia
não solicitada por ação). Também há quem lhe dê o significado de ação praticada
a quem a solicite, qualquer que seja a situação – seria, nesse caso, ajuda ao
suicídio –, igualmente um crime punível. Há ainda as situações em que, a pedido
do doente ou por decisão médica, face a casos sem qualquer esperança, se
suspendem os tratamentos, mantendo apenas os necessários a controlar os
sintomas – eutanásia, solicitada ou não, por omissão, já hoje aceite como boa
prática pelas profissões e pela deontologia consolidada.
Onde está, então, o pomo da discórdia? Só há crime e castigo se uma ação estiver
prevista como tal no Código Penal de um Estado de direito, e o que alguns defendem
na atualidade é que um certo e determinado ato (eutanásia solicitada por ação)
deixe de ser considerado crime e deixe de ter castigo penal. Por outras palavras,
é preciso acabar com a pena de cadeia para quem tiver uma atitude de misericórdia,
ajudando a antecipar a morte, após pedido livre e repetido de uma pessoa, em
certas e determinadas condições. É preciso mudar a lei para não castigar do
mesmo modo situações moralmente diferentes.
Ah! Mas depois pode acontecer que, a coberto da misericórdia, haja
homicídio ou ajuda ao suicídio por motivos fúteis ou interesses obscuros! É por
isso que são tão importantes as palavras “em certas e determinadas condições”,
e deva ser reafirmado que ninguém será obrigado a pedir tal antecipação
provocada da morte (assim como ninguém é obrigado a atender a tal pedido). Cabe
a cada um decidir em sua consciência, em sua boa-fé e respeitando o princípio
da proporcionalidade. Cabe às entidades definidas em lei verificar a
conformidade dos pedidos e a conformidade das respostas. Cabe aos legisladores
estabelecer as “certas e determinadas condições”.
Sobre o jovem Osvald, na peça de Ibsen, não sabemos muito da doença tida por
herdada, mas percebemos que o seu estado anímico está condicionado pelas peripécias
da trama familiar (afinal alguém não é filho, afinal alguém não é pai). Sabemos,
contudo, que o autor põe o personagem a desejar morrer e a pedir que o ajudem
nesse desfecho. Não se trata, em rigor, de uma “morte medicamente assistida”.
Dir-se-ia mesmo que o apelo é para que o compreendam. A sua decisão concretiza-se
mesmo antes de alguma ajuda ser prestada e logo que a mãe lhe dá a mão.