30 dezembro 2020

Descontar

Descontar

in Contos de Guerra - Curso Mé­dico 1964/1970, pp. 59-65, ed. 5Livros.pt (2020)

Então ela virou-se para ele e disse-lhe assim:

– Paludismo?! Agora é tudo paludismo!

E era. As dores começaram nas pernas de repente e passado pouco tempo estavam por todo o lado, as tremuras eram muitas, não sabia se aquilo era frio ou calor. Durou um par de dias mas o pior de tudo foi a perda de apetite que se instalou. Nunca lhe tinha acontecido! Perder completamente a vontade de comer. Aprendera o termo ‘anorexia’ mas nunca imaginara o que significava senti-la. Felizmente nunca mais teve febres como aquelas e o apetite logo regressou, até hoje.

O filho de 2 anos viria a sofrer meses depois também uma crise palúdica e até teve uma convulsão na subida da febre. Além do susto, serviu para inventar a teoria de que aquela convulsão espremeu o baço e os plasmódios, apanhados na corrente pelo medicamento injetado, foram todos eliminados pois não se verificaram depois as recaídas que davam pelo nome de febres terçãs ou quartãs.

O risco maior daquelas paragens era pois o de ter febres – maior em termos de probabilidades – mas o mais temido era apanhar um tiro ou pisar uma mina quando havia deslocações por picadas entre vegetação cerrada. Por isso a ordem era de não facilitar. A estadia durante o primeiro ano no noroeste, zona de guerra, saltando cada mês de aquartelamento em aquartelamento, para substituir colegas nas suas férias, levou a que, nesse período, não firmasse amizades. Em cada mês, travava conhecimento com novos oficiais e comandantes, novos enfermeiros e maqueiros.

Certa vez, precisamente em Nambuangongo, depois de espantar o tenente-coronel por não saber jogar bridge (nem o querer aprender), recebeu a missão de ir visitar na manhã seguinte, bem cedo, um pelotão destacado a cerca de 10 km. Seriam 6 horas quando foi acordado com gritos para que se reunisse de imediato a coluna militar que estava previsto sair mais tarde. Era preciso ir socorrer uma outra coluna que fora atacada junto ao morro do Mata-Alferes. No seu imaginário, a palavra Nambuangongo já prenunciava que estar ali podia acabar mal. Lembrava-se de ler, ainda na Faculdade, cópias datilografadas da Trova do Vento que Passa, de Manuel Alegre.

Nambuangongo Meu Amor
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Seria o seu batismo de fogo? A coluna de viaturas todo-o-terreno seguia à velocidade estonteante de uns 30 à hora – os sulcos cavados na picada não davam para mais. É desta?

À chegada ao local, veem-se vários militares apeados que discutem, uns riem-se, outros insultam-se. Falso alarme! Só depois de muita discussão, todos reconhecem que tinha havido uma troca de tiros entre tropas portuguesas, desencadeada por um militar ter disparado uma rajada dirigida apenas às árvores do Morro. Outros, mais adiantados, pensaram estar a ser atacados e desatou um tiroteio que só acabou quando as munições começaram a rarear e alguém conseguiu gritar mais alto um cessar-fogo. Não houve feridos, tão-pouco houve emboscada, mas o medo de não regressar acentuou-se.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus / em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma / isto é / a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

Um ou dois meses antes, num aquartelamento cujo nome não foi cantado por poetas e esqueceu, tivera de fazer duas autópsias a militares apanhados na crista de uma colina, num ataque inesperado, mas a memória desse dia triste fora esmagada pela extrema ansiedade que ali viveria noutras circunstâncias. No dia da chegada, o comandante convidara para o almoço o velho administrador colonial e o seu adjunto que estava a preparar-se para lhe suceder no posto. Ambos tinham consigo as mulheres e a mais nova estava grávida com volume indicador de aproximação do fim de tempo. Todos estavam convencidos de que a criança nasceria em Luanda dado que a viagem estava programada para breve. Só que a criança não quis esperar e, certa manhã, foi obrigado a acompanhar o próximo papá num jipe que voava mais depressa que a coluna militar que devia escoltá-los até junto da parturiente. O parto lá se fez, muito contribuindo para o sucesso a serenidade da “administradora” mais velha. Feito o seu primeiro e único parto, com episiotomia e tudo, o regresso ao quartel foi adiado. Na pequena povoação desabitada, onde só viviam os administradores e havia uma pequena força militar destacada, a tarde e a noite passaram-se a ver jogos de cartas. Percebi que jogavam a dinheiro mas usavam vales escritos à mão em pedaços de papel e, se uns estavam a ganhar muito, outros estariam a perder outro tanto. As partidas sucediam-se sem pausas e parecia terem começado há várias semanas. Quando, a meio da noite, procurou verificar se a jovem mamã estaria bem e conseguiu convencer um sargento para o acompanhar, o silêncio da caminhada até à casa onde decorrera o parto, apenas quebrado por ruídos estranhos vindos do mato, agudizava a ansiedade. Terá havido alguma hemorragia? Estará bem? Sim, estavam bem – mãe radiosa, filha serena e pai exausto perguntavam, cada um à sua maneira, por que razões lhes interromperam os seus sonos. No dia seguinte, lá foram todos de avião para Luanda e nunca mais teve notícias deles. A miúda já deve ter 42 anos!

As viagens, que de cada localidade se faziam para visita médica às tropas estacionadas nas redondezas, eram feitas em pequenos aviões que também levavam correio e alguns frescos. Os Austers (conhecidos por teco-tecos) eram os mais pequenos dos pequenos. Andavam aos pares, diziam que era assim pois se um caísse o outro ficava a saber o local da queda – muito animadora esta explicação. Os pilotos gostavam muito de passageiros novatos…

Vrrruuuum! Vrrruuuum! Olhe, as mãos ficam molhadas de gasolina, é por isso que não nos deixam fumar, disse ele com uma ponta de cigarro apagada no canto da boca. O motor não vai pegar! Vrrruuum! Vrrruuuuum! Vrrruuuuuum! Lá vai ele! Aproximava-se o fim da pista pedregosa… olha, tem um murete lá ao fundo! Vrrruuuuuuuuum! Levantou!
– Ó doutor, ‘tava a ver que não conseguia!

Os Dorniers eram também pequenos mas tinha carcaça metálica, não eram de lona como os teco-tecos. Tinham piloto e copiloto. Faziam distâncias maiores e transportavam feridos para Luanda. Naquele tempo, a guerra estava num impasse. Os combates eram raros. As emboscadas tinham diminuído. As cidades estavam mais ou menos tranquilas. As matas eram “deles”. Fala-se que na Guiné a coisa está mais feia – há mísseis terra-ar que são transportados ao ombro por um só homem e já caíram alguns aviões.

É por isso que, quando há uma viagem do interior para a capital, o avião segue para ocidente até ao mar e depois segue a costa até Luanda – o mínimo de permanência sobre a terra para evitar os tais temidos mísseis.

Numa evacuação por fratura do úmero – dizia-se que havia mais feridos por acidentes com viaturas do que ferimentos de guerra – o jovem soldado tinha o seu braço muito bem imobilizado com múltiplas ligaduras que o mantinha solidário com um triângulo de tábuas. A tábua vertical estava enfaixada ao tronco e a oblíqua obrigava o braço a estar esticado e erguido com a mão um pouco mais alta do que o ombro, como mandava a figurinha do manual de primeiros socorros da Segunda Grande Guerra.

O Dornier voava suave embora ruidosamente em direção ao mar. Ao avistá-lo o médico levanta-se e metendo a cabeça entre as cabeças dos pilotos diz:

– Isto é um assalto! Vira para Lisboa!

O piloto não hesitou um segundo. Deslocou a manette de condução bruscamente para direita e para esquerda. O engraçadinho bateu com a cabeça duas vezes na dureza da carlinga e o pobre do soldado, com o repelão, desconjuntou tudo, vendo-se envolto em ligaduras lassas. O úmero, que vinha alinhado, desalinhou-se e soldado gritava de dores. O aviãozinho estabilizou, rumou rapidamente ao seu destino e ele, arrependidíssimo, procurava manter o braço partido na posição, amparando-o com as suas mãos, até o entregar à ambulância que os esperava no aeroporto. Nunca mais soube do soldado. Já deve ter mais de 60 anos.

Após um ano de zona quente, os médicos eram colocados, usualmente, em cidades mas, no seu caso, saiu-lhe uma rua no meio de Angola. Nova Gaia terá sido próspera noutros tempos pois tinha, no máximo, uma vintena de casas que ladeavam a estrada para a distante terra dos diamantes – a Diamang, uma espécie de Estado dentro Estado. Naquele ano de 1974, contudo, apenas viviam em Nova Gaia, além de uma companhia militar (cerca de 120 homens), um administrador e dois fazendeiros (que também tinham uma loja topa-a-tudo).

Havia paz, embora não fosse seguro ir para fora do perímetro da povoação, e foi possível ter a companhia da mulher e do filho. O capitão miliciano também tinha consigo a mulher e um filho. A vida corria sem novidades apesar de alguns desaguisados próprios de se estar confinado. Um alferes, cujo nome se perdeu, também tinha a companhia de sua mulher. Tinham ambos personalidades estranhas, davam-se pouco ao convívio e eram atreitos a conflitos. Nunca mais soube dele. Há de ter a sua idade, passe bem!

Os outros oficiais ficaram amigos.

Até que em abril, dia 27, chega a notícia surpreendente! Passava-se algo na Metrópole. Um golpe de Estado conduzido por militares! A incredulidade e a dúvida logo compensadas pela alegria e pela esperança. Caiu o regime! Depois dos militares, seguiu-se o levantamento popular e a emergência das forças políticas organizadas – era o rumar à liberdade e à democracia. A transformação, seguida à distância na rádio e com enorme atraso na leitura dos jornais – não havia telemóveis – provoca uma súbita politização e uma brusca compreensão dos valores em causa.

Como que caída do nada, a pergunta bateu então com mais força: que estava ali a fazer? Os três meses de Mafra tinham sido os piores da sua vida. Pedira, sem êxito, aos seus pais que não assistissem ao juramento de bandeira. Não ter proferido as palavras sacramentais não chegou para atenuar a repulsa que durou meses. Aceitar cumprir o serviço militar e ser mobilizado para o Ultramar fora uma decisão difícil depois de muitas hesitações. A alternativa era partir para o estrangeiro e recusar ativamente colaborar com uma guerra injusta. Muitos o fizeram. Porque não o fez? A noção de que não ia combater, não usaria armas, mas apenas exercer a sua profissão junto dos militares e das populações autóctones, confrontava-se com o sentimento de que ser militar era, só por si, uma derrota pessoal. Ir à guerra era ser cobarde! Que contradição! A fragilidade das suas convicções políticas, o nunca ter aderido, até então, a quaisquer grupos políticos e, afinal, a aparente generalizada aprovação social do cumprimento do serviço militar, contribuíram para o adormecimento das dúvidas durante o primeiro ano de estadia em Angola. De repente, tudo mudou! Acabou a guerra! Viva!

Apesar de nunca ter conhecido qualquer deles, nunca viverá tempo suficiente para agradecer aos Capitães de Abril.

Aqueles dois anos são para descontar.

Rosalvo Almeida, alferes miliciano médico em Angola de janeiro de 1973 a dezembro de 1974