Value-impregnated factual claims and slippery-slope arguments
O ponto principal deste artigo é ligar duas ideias
filosóficas diferentes, a saber, a argumentação da rampa escorregadia e os
juízos de valor. Primeiramente, fazemos uma breve apresentação de cada um e, em
seguida, sugerimos, apoiados por alguns dados empíricos, que os argumentos da
rampa escorregadia se podem apoiar em juízos de valor. Sugerimos que quanto
menos razoáveis são os argumentos da rampa escorregadio, mais fortemente podem
ser influenciados por valores pessoais implícitos.
Argumentos da rampa escorregadia
Os argumentos da rampa escorregadia são geralmente
baseados em estimativas do que aconteceria no futuro se uma determinada linha
de conduta fosse permitida. Eles afirmam que abrir a porta para essa linha de
conduta específica levará a uma série de eventos altamente provável, acabando
num resultado que está muito distante do pretendido no primeiro passo dado.
Esse tipo de argumento é comummente usado quando alguém se opõe a uma
determinada linha de conduta (den Hartogh 2010; LaFollette 2005;
Launis 2002, Launis 2010). Então, abrir a porta para essa
linha de conduta específica acabará num resultado negativo, se não mesmo
catastrófico – daí a queda na rampa escorregadia. Portanto, a porta nunca deve
ser aberta.
Um exemplo típico deste argumento no contexto
médico-ético é o argumento contra a legalização do suicídio medicamente ajudado
(SMA) no final da vida. Basicamente é assim: Se o SMA for permitido, pode-se
esperar que haja uma mudança contínua na aplicação dos critérios de
elegibilidade, devido a uma lenta mudança nos padrões morais da sociedade influenciada
por cada um dos passos dados. As consequências podem ser que mais e mais
doentes serão elegíveis para SMA, cada vez mais por outras razões além daquelas
que são de seu interesse – por exemplo, não apenas no final da vida ou a pedido
do doente. Esse desenvolvimento, mais cedo ou mais tarde, acabará numa situação
em que se tornarão comuns atrocidades na aplicação de SMA (Mishara e Weisstub 2013; Shariff 2012; Rietjens et al. 2009). Como reação a essa má prática,
também diminuirá significativamente a confiança da população em geral no
sistema de saúde, o que terá efeitos negativos adicionais na saúde (Juth e Lynøe 2010; Helgesson et al. 2009). A partir disso, o argumento
conclui que devemos evitar legalizar o SMA. Argumentos semelhantes podem ser
vistos em discussões sobre sedação paliativa e antecipação intencional da morte
de doentes em iminência de morrer (Rydvall et al. 2014; Verhagen 2013; Camporesi e Boniolo 2008). A estimativa do que acontecerá com a confiança do
público em geral na área de saúde, embora não seja a questão central, é uma
componente comum nesses argumentos.
Se um argumento de rampa escorregadia se baseia em
estimativas de eventos futuros, então, determinar até que ponto é provável que
a estimativa se torne realidade é uma preocupação empírica. Às vezes, podem ser
realizados estudos empíricos para comprovar as estimativas, enquanto outras
vezes isso não é possível, por exemplo, se não houver situações comparáveis
para recolher dados. Nestes últimos casos, o argumento torna-se irrefutável (Camporesi e Boniolo 2008).
Juízos de valor
No contexto da filosofia da ciência, as afirmações são
frequentemente ditas como imbuídas de hipóteses ou imbuídas de teoria, o que
significa que suposições e convicções teóricas influenciam as afirmações (Rydvall et al. 2014). Em analogia com as afirmações
imbuídas de teoria, podemos falar de alegações e juízos de valor. Uma alegação
factual imbuída de valor é um juízo sobre facto(s) que é influenciado por
valores. A ideia geral é que um juízo factual está imbuído de valor se a pessoa
que o faz não o teria feito, ou não teria enfatizado a sua relevância no mesmo
grau, se a pessoa não fosse influenciada pelos seus valores.
Note-se que a ideia sobre a impregnação de valor de
alegações factuais é distinta das ideias sobre conceitos normativos densos e
plenos de valor. Nestes, a ideia é que eles tenham um conteúdo descritivo e,
além disso, estejam carregados de valores de vontade. Por exemplo, seria
estranho dizer "Ele é honesto/simpático/indulgente, mas não quero dizer com
isso que haja algo de bom nele", já que honestidade, simpatia e
indulgência, além de terem um conteúdo descritivo, designam algo de bom. O
objetivo de argumentar que algumas afirmações factuais estão imbuídas de valor
não é insistir em que elas são carregadas de valor. A impregnação de valor de
afirmações factuais diz respeito à explicação por que são feitas. A explicação
é que os valores influenciam as alegações factuais que são feitas (ou o quanto
fortemente são enfatizadas ou defendidas), tal como as teorias podem interferir
na perceção e, assim, influenciar as afirmações que são feitas.
Em contraste com as afirmações imbuídas de teoria (onde
(1) a influência teorética pode ser considerada uma pré-condição para fazer
afirmações significativas e (2) provavelmente a impregnação pela teoria é
inevitável), a impregnação por valores das alegações factuais é evitável e distorce/perturba o juízo factual. Isso não
significa negar que todas as decisões sobre o que fazer têm um componente de avaliação: tais
decisões não podem ser baseadas apenas em alegações factuais. No entanto,
também as nossas alegações factuais podem ser afetadas pelos nossos juízos de
valor, de tal modo que, por exemplo, acreditamos em algo porque queremos que
seja assim ou achamos desejável que o seja. Se não estivermos cientes da
possibilidade de tais juízos factuais imbuídos de valor, podemos pensar que
somos mais objetivos (ou seja, em maior medida orientados por provas nos juízos
factuais, mais do que por valores próprios) do que realmente somos.
O caso de particular interesse no contexto da saúde é a
impregnação de valores decorrente de valores pessoais que divergem dos valores
oficiais dos serviços de saúde. Sugerimos que a impregnação de valor de
alegações e juízos factuais pode ser não intencional e inconsciente, assim como
consciente e intencional, em analogia com a influência potencial de suposições
e convicções teóricas sobre as afirmações.
Um exemplo do que constituiria juízos factuais imbuídos
de valor no cenário dos serviços de saúde são as alegações exageradas sobre o
risco de aborto, ou algum outro procedimento, se o médico/enfermeiro discordar
pessoalmente do procedimento ou do seu uso frequente.
Se os valores oficiais dos serviços de saúde, conforme
expressos na lei e regulamentos, ou de outra forma realçados nas instituições
de saúde, forem contrários aos do profissional de saúde individual –
especialmente se estes últimos forem valores e convicções fortemente assumidos –
então pode-se esperar que esses valores pessoais, pelo menos algumas vezes, continuarão
a influenciar as perceções e os comportamentos do profissional de saúde, mas se
não forem oficialmente aceites, essa influência provavelmente continuará de
forma menos detetável. Em vez de declarar abertamente os seus valores, é mais
provável que o profissional deixe que eles afetem o resultado, influenciando as
alegações factuais que estão sobre a mesa. Novamente, esse movimento do aberto
para o oculto não é necessariamente intencional ou consciente. O profissional
pode até acreditar que está a agir de acordo com os valores oficiais.
O argumento da rampa escorregadia como
juízo de valor
O que gostaríamos de sugerir agora é que os argumentos da
rampa escorregadia às vezes baseiam-se em juízos factuais imbuídos de valores.
Ou seja, a relação entre juízo factual e juízo normativo, neste contexto, não
pode ser tal que uma conclusão normativa derive apenas da convicção de que as
coisas se desenvolverão de uma certa maneira (tipo rampa escorregadia) se for
tomada uma certa decisão. Também pode ir na direção oposta: a partir da
convicção de que algo não deve ser permitido (porque é considerado errado), os
juízos factuais de alguém podem ser influenciados por essa convicção, por
exemplo, acreditar que haverá uma rampa escorregadia que levará a desastre se
uma determinada decisão for tomada. Isso, é claro, leva-nos de volta à
conclusão normativa, de forma circular.
Uma característica comum dos argumentos da rampa
escorregadia, acreditamos, é que, por boas razões, têm pouca influência sobre
quem ainda não está convencido da fatalidade da ação em questão e pede alguns
fundamentos racionais para esse medo. Em particular, a inevitabilidade de
percorrer toda a suposta série de eventos desde que é dado o primeiro passo, em
muitos casos, parece ser gravemente exagerada – ao contrário, parece possível e
viável parar, se recomendável, em cada uma das etapas consecutivas
(evidentemente, se tem mesmo a ver com o caso em questão). Parece que os
argumentos da rampa escorregadia são frequentemente usados quando parte no
debate está a ficar sem bons argumentos para a sua posição. Isso encaixa bem no
estilo dos juízos de valor “primeiro os valores, depois os juízos factuais”. Na
medida em que os argumentos da rampa escorregadia devem ser entendidos dessa
maneira, eles servem principalmente como uma racionalização de convicções de
valor e convicções normativas já antes assumidas.
Lições dos estudos empíricos
Alguns estudos recentes dão contributos empíricos para o
debate sobre juízos de valor e argumentação da rampa escorregadia (Juth e Lynøe 2010; Rydvall et al. 2014; Björk et al.
2016; Lindblad et al. 2009).
Num desses estudos, examinamos numa amostra aleatória de
médicos suecos quais as suas atitudes em relação ao suicídio medicamente
ajudado (SMA) e, noutro estudo, exploramos as atitudes de médicos suecos em
relação à morte intencionalmente antecipada (MIA) de doentes na iminência de
morrerem (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Além das perguntas sobre as suas
atitudes, também perguntamos aos médicos o que aconteceria com a sua própria
confiança nos serviços de saúde se essas práticas fossem legalizadas. Em média,
cruzando os dois estudos, 61,2% (n = 627) afirmaram que a sua confiança diminuiria, 12,2% (n = 125) afirmaram que
aumentaria e 26,6% (n = 273) afirmaram que não influenciaria a sua própria confiança
nos serviços de saúde.
Partimos do pressuposto de que existe uma associação
entre classificar a legalização do SMA ou da MIA como uma coisa errada, uma vez
que tornaria essas ações legais sob certas condições especificadas, e prever
que a própria confiança nos serviços de saúde diminuiria se tal legislação
fosse implementada . Da mesma forma, presumimos que se a legalização a favor
das duas práticas fosse considerada uma coisa boa, o médico estimaria que a sua
própria confiança nos serviços de saúde aumentaria se fossem feitas essas
alterações legais. Por fim, presumimos que aqueles que consideraram a
legalização do SMA ou da MIA como nem boa nem errada, afirmariam que a sua
própria confiança nos serviços de saúde não seria influenciada por uma mudança
na legislação. Se a nossa suposição for razoável, parece claro que a maioria
sugeriu que legalizar o SMA e a MIA seria uma coisa errada.
Para estudar se havia ou não correlação entre as
declarações dos médicos sobre o que aconteceria com a sua própria confiança nos
serviços de saúde e as suas estimativas sobre o que aconteceria com a confiança
do público em geral se as duas práticas fossem legalizadas, fizemos essas
perguntas com as mesmas opções de resposta em ambos os estudos. Encontramos uma
boa concordância para o SMA [Kappa
ponderado: 0,695 (IC 95% 0,640–0,751)] e uma concordância bastante boa para a MIA [(0,585 (IC 95% 0,492–0,678)]; a
média de Kappa ponderado para ambas as práticas foi boa (0,620). Entre aqueles cuja própria
confiança diminuiria (n = 627), descobrimos que 83,4% também estimaram que a confiança do
público em geral diminuiria (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Vale a pena observar que, embora
não se espere que a diminuição da confiança dos médicos nos serviços de saúde
tenha qualquer impacto na segurança do doente, a falta de confiança dos doentes
no sistema de saúde pode, de facto, ter um impacto negativo nos resultados em
saúde, uma vez que pode mudar, em sentido negativo, o seu comportamento em
relação aos profissionais de saúde e às recomendações de tratamento.
Deve notar-se ainda que outro estudo empírico, realizado
entre a população em geral, indicou que legalizar o SMA não colocaria em risco
a confiança do público em geral na saúde – pelo contrário, estimou-se que a
confiança não seria influenciada ou aumentaria (Lindblad
et al. 2009).
Interpretamos estes achados como uma indicação de que os
valores pessoais dos médicos em relação ao SMA e à MIA tendem a afetar as suas
estimativas sobre o que aconteceria com a confiança do público nos serviços de
saúde se fossem legalizados. Essas estimativas factuais parecem ser
independentes das atitudes pessoais dos entrevistados em relação ao SMA e à
MIA, embora provavelmente não sejam. E, como vimos acima, as estimativas dos
efeitos sobre a confiança do público na área de saúde são geralmente
componentes importantes nos argumentos da rampa escorregadia a respeito de SMA –
e também em relação à MIA.
Se essa interpretação for correta, pode-se perguntar por
que os médicos fazem juízos de valor, por exemplo, em vez de simplesmente
declarar os seus valores e atitudes em relação a essas práticas. Um fator de
influência potencial é que se espera que os médicos ajam de forma racional e
razoável, com base em evidências empíricas e em objetivos de saúde globalmente
aceites. Agir com base em valores pessoais é entendido como impróprio nos
serviços de saúde suecos, o que não deixa espaço para objeções de consciência (Svennerlind 2009). Mesmo assim,
se os médicos querem deixar que os seus valores pessoais influenciem os
resultados, os argumentos da rampa escorregadia podem ser convenientes, pois podem
dar a impressão de se basearem apenas em juízos factuais e em objeções
compartilhadas quanto ao desfecho catastrófico. Ao mesmo tempo, ocultam o que
realmente está a acontecer.
Não estamos a sugerir neste artigo que todos os
argumentos da rampa escorregadia sejam do mesmo tipo em todos os aspetos
importantes. Assim, embora os juízos de valor possam estar presentes em alguns
casos, podem não estar noutros. No entanto, sugerimos que, no contexto da
saúde, quando ocorrem argumentos da rampa escorregadia, pode valer a pena
procurar juízos de valor.
Conclusão
O cerne do que se entende por rampa escorregadia está em
afirmar que uma determinada linha de conduta não deve ser adotada ou permitida,
pois, uma vez dado o primeiro passo, a trajetória está traçada e teremos
consequências muito negativas. Consequentemente, estes argumentos estimam que
certos eventos futuros indesejáveis são inevitáveis, ou pelo menos altamente
prováveis, desde que seja dado o primeiro passo infeliz nesse caminho. Neste
artigo, sugerimos que tais estimativas factuais com argumentos da rampa
escorregadia podem ser juízos de valor. Ou seja, as estimativas são feitas
porque as pessoas que as fazem têm uma certa atitude em relação à ação em
causa. Há algum fundamento para que estas estimativas dos médicos suecos sobre
a confiança do público em geral nos serviços de saúde, devido a certas reformas
em debate, como a legalização do SMA, tenham esta forma.
Se queremos levar a sério os argumentos da rampa
escorregadia, eles devem conter estimativas razoáveis de eventos futuros com
base em investigações empíricas cuidadosamente realizadas, ou pelo menos com
boas razões teóricas pelas quais um certo desenvolvimento provavelmente
ocorrerá. Caso contrário, existe um risco considerável de que a estimativa das
consequências de uma determinada decisão ou ato seja apenas uma racionalização
imbuída das próprias atitudes ou valores da pessoa.
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