28 setembro 2020

Juízos de valor e argumentos de rampa escorregadia

 
01 Mar 2017, 20(1):147-150

Juízos de valor e argumentos de rampa escorregadia

Gert Helgesson, Niels Lynøe e Niklas Juth
(Stockholm Centre for Healthcare Ethics, Department of Learning, Informatics, Management and Ethics, 
Karolinska Institutet, 171 77, Stockholm, Sweden)

O ponto principal deste artigo é ligar duas ideias filosóficas diferentes, a saber, a argumentação da rampa escorregadia e os juízos de valor. Primeiramente, fazemos uma breve apresentação de cada um e, em seguida, sugerimos, apoiados por alguns dados empíricos, que os argumentos da rampa escorregadia se podem apoiar em juízos de valor. Sugerimos que quanto menos razoáveis são os argumentos da rampa escorregadio, mais fortemente podem ser influenciados por valores pessoais implícitos.

Argumentos da rampa escorregadia

Os argumentos da rampa escorregadia são geralmente baseados em estimativas do que aconteceria no futuro se uma determinada linha de conduta fosse permitida. Eles afirmam que abrir a porta para essa linha de conduta específica levará a uma série de eventos altamente provável, acabando num resultado que está muito distante do pretendido no primeiro passo dado. Esse tipo de argumento é comummente usado quando alguém se opõe a uma determinada linha de conduta (den Hartogh 2010; LaFollette 2005; Launis 2002, Launis 2010). Então, abrir a porta para essa linha de conduta específica acabará num resultado negativo, se não mesmo catastrófico – daí a queda na rampa escorregadia. Portanto, a porta nunca deve ser aberta.

Um exemplo típico deste argumento no contexto médico-ético é o argumento contra a legalização do suicídio medicamente ajudado (SMA) no final da vida. Basicamente é assim: Se o SMA for permitido, pode-se esperar que haja uma mudança contínua na aplicação dos critérios de elegibilidade, devido a uma lenta mudança nos padrões morais da sociedade influenciada por cada um dos passos dados. As consequências podem ser que mais e mais doentes serão elegíveis para SMA, cada vez mais por outras razões além daquelas que são de seu interesse – por exemplo, não apenas no final da vida ou a pedido do doente. Esse desenvolvimento, mais cedo ou mais tarde, acabará numa situação em que se tornarão comuns atrocidades na aplicação de SMA (Mishara e Weisstub 2013; Shariff 2012; Rietjens et al. 2009). Como reação a essa má prática, também diminuirá significativamente a confiança da população em geral no sistema de saúde, o que terá efeitos negativos adicionais na saúde (Juth e Lynøe 2010; Helgesson et al. 2009). A partir disso, o argumento conclui que devemos evitar legalizar o SMA. Argumentos semelhantes podem ser vistos em discussões sobre sedação paliativa e antecipação intencional da morte de doentes em iminência de morrer (Rydvall et al. 2014; Verhagen 2013; Camporesi e Boniolo 2008). A estimativa do que acontecerá com a confiança do público em geral na área de saúde, embora não seja a questão central, é uma componente comum nesses argumentos.

Se um argumento de rampa escorregadia se baseia em estimativas de eventos futuros, então, determinar até que ponto é provável que a estimativa se torne realidade é uma preocupação empírica. Às vezes, podem ser realizados estudos empíricos para comprovar as estimativas, enquanto outras vezes isso não é possível, por exemplo, se não houver situações comparáveis para recolher dados. Nestes últimos casos, o argumento torna-se irrefutável (Camporesi e Boniolo 2008).

Juízos de valor

No contexto da filosofia da ciência, as afirmações são frequentemente ditas como imbuídas de hipóteses ou imbuídas de teoria, o que significa que suposições e convicções teóricas influenciam as afirmações (Rydvall et al. 2014). Em analogia com as afirmações imbuídas de teoria, podemos falar de alegações e juízos de valor. Uma alegação factual imbuída de valor é um juízo sobre facto(s) que é influenciado por valores. A ideia geral é que um juízo factual está imbuído de valor se a pessoa que o faz não o teria feito, ou não teria enfatizado a sua relevância no mesmo grau, se a pessoa não fosse influenciada pelos seus valores.

Note-se que a ideia sobre a impregnação de valor de alegações factuais é distinta das ideias sobre conceitos normativos densos e plenos de valor. Nestes, a ideia é que eles tenham um conteúdo descritivo e, além disso, estejam carregados de valores de vontade. Por exemplo, seria estranho dizer "Ele é honesto/simpático/indulgente, mas não quero dizer com isso que haja algo de bom nele", já que honestidade, simpatia e indulgência, além de terem um conteúdo descritivo, designam algo de bom. O objetivo de argumentar que algumas afirmações factuais estão imbuídas de valor não é insistir em que elas são carregadas de valor. A impregnação de valor de afirmações factuais diz respeito à explicação por que são feitas. A explicação é que os valores influenciam as alegações factuais que são feitas (ou o quanto fortemente são enfatizadas ou defendidas), tal como as teorias podem interferir na perceção e, assim, influenciar as afirmações que são feitas.

Em contraste com as afirmações imbuídas de teoria (onde (1) a influência teorética pode ser considerada uma pré-condição para fazer afirmações significativas e (2) provavelmente a impregnação pela teoria é inevitável), a impregnação por valores das alegações factuais é evitável e distorce/perturba o juízo factual. Isso não significa negar que todas as decisões sobre o que fazer têm um componente de avaliação: tais decisões não podem ser baseadas apenas em alegações factuais. No entanto, também as nossas alegações factuais podem ser afetadas pelos nossos juízos de valor, de tal modo que, por exemplo, acreditamos em algo porque queremos que seja assim ou achamos desejável que o seja. Se não estivermos cientes da possibilidade de tais juízos factuais imbuídos de valor, podemos pensar que somos mais objetivos (ou seja, em maior medida orientados por provas nos juízos factuais, mais do que por valores próprios) do que realmente somos.

O caso de particular interesse no contexto da saúde é a impregnação de valores decorrente de valores pessoais que divergem dos valores oficiais dos serviços de saúde. Sugerimos que a impregnação de valor de alegações e juízos factuais pode ser não intencional e inconsciente, assim como consciente e intencional, em analogia com a influência potencial de suposições e convicções teóricas sobre as afirmações.

Um exemplo do que constituiria juízos factuais imbuídos de valor no cenário dos serviços de saúde são as alegações exageradas sobre o risco de aborto, ou algum outro procedimento, se o médico/enfermeiro discordar pessoalmente do procedimento ou do seu uso frequente.

Se os valores oficiais dos serviços de saúde, conforme expressos na lei e regulamentos, ou de outra forma realçados nas instituições de saúde, forem contrários aos do profissional de saúde individual – especialmente se estes últimos forem valores e convicções fortemente assumidos – então pode-se esperar que esses valores pessoais, pelo menos algumas vezes, continuarão a influenciar as perceções e os comportamentos do profissional de saúde, mas se não forem oficialmente aceites, essa influência provavelmente continuará de forma menos detetável. Em vez de declarar abertamente os seus valores, é mais provável que o profissional deixe que eles afetem o resultado, influenciando as alegações factuais que estão sobre a mesa. Novamente, esse movimento do aberto para o oculto não é necessariamente intencional ou consciente. O profissional pode até acreditar que está a agir de acordo com os valores oficiais.

O argumento da rampa escorregadia como juízo de valor

O que gostaríamos de sugerir agora é que os argumentos da rampa escorregadia às vezes baseiam-se em juízos factuais imbuídos de valores. Ou seja, a relação entre juízo factual e juízo normativo, neste contexto, não pode ser tal que uma conclusão normativa derive apenas da convicção de que as coisas se desenvolverão de uma certa maneira (tipo rampa escorregadia) se for tomada uma certa decisão. Também pode ir na direção oposta: a partir da convicção de que algo não deve ser permitido (porque é considerado errado), os juízos factuais de alguém podem ser influenciados por essa convicção, por exemplo, acreditar que haverá uma rampa escorregadia que levará a desastre se uma determinada decisão for tomada. Isso, é claro, leva-nos de volta à conclusão normativa, de forma circular.

Uma característica comum dos argumentos da rampa escorregadia, acreditamos, é que, por boas razões, têm pouca influência sobre quem ainda não está convencido da fatalidade da ação em questão e pede alguns fundamentos racionais para esse medo. Em particular, a inevitabilidade de percorrer toda a suposta série de eventos desde que é dado o primeiro passo, em muitos casos, parece ser gravemente exagerada – ao contrário, parece possível e viável parar, se recomendável, em cada uma das etapas consecutivas (evidentemente, se tem mesmo a ver com o caso em questão). Parece que os argumentos da rampa escorregadia são frequentemente usados quando parte no debate está a ficar sem bons argumentos para a sua posição. Isso encaixa bem no estilo dos juízos de valor “primeiro os valores, depois os juízos factuais”. Na medida em que os argumentos da rampa escorregadia devem ser entendidos dessa maneira, eles servem principalmente como uma racionalização de convicções de valor e convicções normativas já antes assumidas.

Lições dos estudos empíricos

Alguns estudos recentes dão contributos empíricos para o debate sobre juízos de valor e argumentação da rampa escorregadia (Juth e Lynøe 2010; Rydvall et al. 2014; Björk et al. 2016; Lindblad et al. 2009).

Num desses estudos, examinamos numa amostra aleatória de médicos suecos quais as suas atitudes em relação ao suicídio medicamente ajudado (SMA) e, noutro estudo, exploramos as atitudes de médicos suecos em relação à morte intencionalmente antecipada (MIA) de doentes na iminência de morrerem (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Além das perguntas sobre as suas atitudes, também perguntamos aos médicos o que aconteceria com a sua própria confiança nos serviços de saúde se essas práticas fossem legalizadas. Em média, cruzando os dois estudos, 61,2% (n = 627) afirmaram que a sua confiança diminuiria, 12,2% (n = 125) afirmaram que aumentaria e 26,6% (n = 273) afirmaram que não influenciaria a sua própria confiança nos serviços de saúde.

Partimos do pressuposto de que existe uma associação entre classificar a legalização do SMA ou da MIA como uma coisa errada, uma vez que tornaria essas ações legais sob certas condições especificadas, e prever que a própria confiança nos serviços de saúde diminuiria se tal legislação fosse implementada . Da mesma forma, presumimos que se a legalização a favor das duas práticas fosse considerada uma coisa boa, o médico estimaria que a sua própria confiança nos serviços de saúde aumentaria se fossem feitas essas alterações legais. Por fim, presumimos que aqueles que consideraram a legalização do SMA ou da MIA como nem boa nem errada, afirmariam que a sua própria confiança nos serviços de saúde não seria influenciada por uma mudança na legislação. Se a nossa suposição for razoável, parece claro que a maioria sugeriu que legalizar o SMA e a MIA seria uma coisa errada.

Para estudar se havia ou não correlação entre as declarações dos médicos sobre o que aconteceria com a sua própria confiança nos serviços de saúde e as suas estimativas sobre o que aconteceria com a confiança do público em geral se as duas práticas fossem legalizadas, fizemos essas perguntas com as mesmas opções de resposta em ambos os estudos. Encontramos uma boa concordância para o SMA [Kappa ponderado: 0,695 (IC 95% 0,640–0,751)] e uma concordância bastante boa para a MIA [(0,585 (IC 95% 0,492–0,678)]; a média de Kappa ponderado para ambas as práticas foi boa (0,620). Entre aqueles cuja própria confiança diminuiria (n = 627), descobrimos que 83,4% também estimaram que a confiança do público em geral diminuiria (Juth e Lynöe 2010; Rydvall et al. 2014). Vale a pena observar que, embora não se espere que a diminuição da confiança dos médicos nos serviços de saúde tenha qualquer impacto na segurança do doente, a falta de confiança dos doentes no sistema de saúde pode, de facto, ter um impacto negativo nos resultados em saúde, uma vez que pode mudar, em sentido negativo, o seu comportamento em relação aos profissionais de saúde e às recomendações de tratamento.

Deve notar-se ainda que outro estudo empírico, realizado entre a população em geral, indicou que legalizar o SMA não colocaria em risco a confiança do público em geral na saúde – pelo contrário, estimou-se que a confiança não seria influenciada ou aumentaria (Lindblad et al. 2009).

Interpretamos estes achados como uma indicação de que os valores pessoais dos médicos em relação ao SMA e à MIA tendem a afetar as suas estimativas sobre o que aconteceria com a confiança do público nos serviços de saúde se fossem legalizados. Essas estimativas factuais parecem ser independentes das atitudes pessoais dos entrevistados em relação ao SMA e à MIA, embora provavelmente não sejam. E, como vimos acima, as estimativas dos efeitos sobre a confiança do público na área de saúde são geralmente componentes importantes nos argumentos da rampa escorregadia a respeito de SMA – e também em relação à MIA.

Se essa interpretação for correta, pode-se perguntar por que os médicos fazem juízos de valor, por exemplo, em vez de simplesmente declarar os seus valores e atitudes em relação a essas práticas. Um fator de influência potencial é que se espera que os médicos ajam de forma racional e razoável, com base em evidências empíricas e em objetivos de saúde globalmente aceites. Agir com base em valores pessoais é entendido como impróprio nos serviços de saúde suecos, o que não deixa espaço para objeções de consciência (Svennerlind 2009). Mesmo assim, se os médicos querem deixar que os seus valores pessoais influenciem os resultados, os argumentos da rampa escorregadia podem ser convenientes, pois podem dar a impressão de se basearem apenas em juízos factuais e em objeções compartilhadas quanto ao desfecho catastrófico. Ao mesmo tempo, ocultam o que realmente está a acontecer.

Não estamos a sugerir neste artigo que todos os argumentos da rampa escorregadia sejam do mesmo tipo em todos os aspetos importantes. Assim, embora os juízos de valor possam estar presentes em alguns casos, podem não estar noutros. No entanto, sugerimos que, no contexto da saúde, quando ocorrem argumentos da rampa escorregadia, pode valer a pena procurar juízos de valor.

Conclusão

O cerne do que se entende por rampa escorregadia está em afirmar que uma determinada linha de conduta não deve ser adotada ou permitida, pois, uma vez dado o primeiro passo, a trajetória está traçada e teremos consequências muito negativas. Consequentemente, estes argumentos estimam que certos eventos futuros indesejáveis são inevitáveis, ou pelo menos altamente prováveis, desde que seja dado o primeiro passo infeliz nesse caminho. Neste artigo, sugerimos que tais estimativas factuais com argumentos da rampa escorregadia podem ser juízos de valor. Ou seja, as estimativas são feitas porque as pessoas que as fazem têm uma certa atitude em relação à ação em causa. Há algum fundamento para que estas estimativas dos médicos suecos sobre a confiança do público em geral nos serviços de saúde, devido a certas reformas em debate, como a legalização do SMA, tenham esta forma.

Se queremos levar a sério os argumentos da rampa escorregadia, eles devem conter estimativas razoáveis de eventos futuros com base em investigações empíricas cuidadosamente realizadas, ou pelo menos com boas razões teóricas pelas quais um certo desenvolvimento provavelmente ocorrerá. Caso contrário, existe um risco considerável de que a estimativa das consequências de uma determinada decisão ou ato seja apenas uma racionalização imbuída das próprias atitudes ou valores da pessoa.

 

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