Negar Ventiladores a Doentes com Covid-19 com DNR prévio não é Ético
Valerie Gutmann Koch (1), Susie A.
Han (2)
Tradução espontânea para distribuição sem fins lucrativos do artigo original Denying Ventilators to Covid-19 Patients with Prior DNR Orders is Unethical, The Hastings Centre, 21.04.2020
Ao decidir quais os doentes com Covid-19 que devem receber ventiladores escassos, os hospitais devem ter em conta a DNR [do not resuscitate = decisão ou ordem de não ressuscitar] de uma pessoa – o desejo declarado anteriormente [NT: Entre nós, a ordem de não ressuscitar, desde que justificada por critérios clínicos válidos e sólidos, pode ser assumida pela equipa médica no contexto de evitar encarniçamento terapêutico. Neste texto, contudo, fala-se de DNR no contexto de uma decisão do próprio doente em diretivas antecipadas de vontade] de não ter uma ressuscitação cardiopulmonar (RCP) que reinicie os batimentos do coração e a respiração após uma paragem cardíaca? Isso parece irrelevante para a atribuição de um ventilador embora algumas diretrizes (existentes e propostas) para a triagem, durante uma emergência de saúde, ponham a DNR na lista de critérios para excluir doentes de receberem ventiladores ou outros cuidados de saúde que salvam vidas. Essa abordagem contraria diretamente o objetivo geralmente aceite de maximizar o número de sobreviventes e pode resultar em confusão e desconfiança pública no sistema de saúde.
Os diversos Estados em todo o
país (EUA) estão a trabalhar energicamente para responder à pandemia da
Covid-19, incluindo a elaboração de protocolos para alocação de ventiladores.
Embora esses protocolos variem em termos de considerações clínicas e princípios
éticos em que se baseiam, geralmente todos concordam em que o objetivo é salvar
o máximo de vidas possível. Significativamente, a maioria dos protocolos
estaduais enfatiza apenas a dependência de fatores clínicos para avaliar a
probabilidade de sobrevida dos doentes.
Muitos desses planos coincidem
num processo de três passos para a alocação de recursos: aplicação de critérios
de exclusão, avaliação do risco de mortalidade e avaliações clínicas
periódicas. Embora alguns planos propostos eliminem
o passo 1, a maioria aplica critérios
de exclusão para identificar doentes com alto risco de mortalidade, mesmo com
tratamentos ventilatórios, para dar prioridade aos doentes com maior
probabilidade de sobreviver.
Por exemplo, em 2015, o Grupo
de Ação para a Vida e a Lei do Estado de Nova York emitiu Diretrizes
de Alocação de Ventiladores para as
instituições de saúde usarem numa pandemia de influenza se a procura de ventiladores
exceder a oferta. Essas diretrizes mostraram claramente que a definição de
sobrevivência “se baseia na probabilidade de sobrevivência a curto prazo de um
episódio médico agudo e não se concentra em saber se o doente pode sobreviver a
uma determinada doença a longo prazo (por exemplo, número de anos depois da pandemia)”.
Ao elaborar e divulgar as diretrizes, o grupo de ação, os grupos de trabalho
clínicos que desenvolveram o protocolo clínico para adultos e o Departamento de
Saúde do Estado de Nova York consideraram – e rejeitaram por unanimidade – a
inclusão de uma DNR na lista de critérios de exclusão.
Ao contrário, ao consultar
decisores políticos que estão a elaborar protocolos de alocação de ventiladores
específicos para a pandemia da Covid-19, vemos que algumas propostas consideram
a inclusão da DNR previamente declarada por um doente como um critério de
exclusão. Além disso, alguns planos regionais de triagem (por exemplo, North
Texas Mass Critical Care Task Force e
South Dakota Healthcare Community) incluem a DNR como critério para excluir doentes da
admissão ou transferência do hospital. Mas excluir doentes com base na sua DNR
está diretamente contra o objetivo geralmente aceite de maximizar o número de
sobreviventes e pode resultar em confusão e desconfiança do público – agora e
no futuro.
Numa instituição que enfrenta escassez de ventiladores, um doente cujo registo médico possui uma ordem de DNR veria negado o acesso à tratamentos por ventilador após a admissão num centro de tratamento de agudos, mesmo que a sua probabilidade de sobrevivência seja alta. Consideremos o exemplo hipotético de um doente que solicitou um pedido de DNR há vários anos [NT: Entre nós, uma diretiva antecipada de vontade, inclua ou não uma DNR, tem um prazo de 5 anos de validade e só pode ser usada se o subscritor estiver incapaz de decidir], antes de fazer uma cirurgia cardíaca de emergência, porque não queria realizar a RCP se algo desse errado. Recuperou totalmente dessa cirurgia, mas agora é internado no hospital devido a sintomas da Covid-19. Como o seu registo médico inclui a ordem DNR (da qual nem se lembra), ele não seria elegível para tratamentos com ventilador, mesmo que não tivesse comorbidades e as suas probabilidades de sobreviver com ventilador fossem altas.
Não nos opomos
à decisão de os doentes recusarem cuidados com ventiladores e/ou de serem
declarados DNR na admissão para a Covid-19. Nem objetamos, se clinicamente necessário, o estatuto geral
da DNR para doentes Covid-19, se for implementado de maneira consistente e
transparente. Contudo, excluir doentes com DNR conhecido de serem considerados para receber cuidados com
ventilador é inerentemente problemático. Essa ordem é apenas uma decisão sobre
a RCP e não se relaciona com nenhum
outro tratamento. Os pedidos de DNR
não são uma avaliação individual ou profissional da probabilidade de
sobrevivência de um doente; em vez disso, refletem as preferências de
tratamento médico do doente no contexto específico de uma decisão de
aceitar a RCP.
Assim, a decisão de um doente
sobre a sua DNR não é necessariamente indicativa do que escolheria quanto ao
acesso a um ventilador ou a outros cuidados potencialmente salvadores de vidas
e, portanto, não se constitui como uma representação confiável para a tomada de
decisão autónoma de uma pessoa com Covid-19. E certamente não é indicativa da
mortalidade imediata ou quase imediata dos tratamentos agressivos.
Além disso, se o foco principal
hoje é, com razão, gerir a pandemia da Covid-19, negar aos doentes com vírus o
acesso a tratamentos por ventilação com base apenas numa ordem DNR anterior
teria enormes implicações para a tomada de decisões dos doentes no futuro e
poderia minar muito a confiança do público nos seus médicos e nas instituições
de saúde. Os doentes geralmente hesitam em concordar com a DNR por medo de não
receberem tratamento benéfico. E existe alguma justificação para esse medo. Um
estudo feito por médicos e internos mostrou que muitos pensavam que os pedidos
de DNR podem ou devem ser “aplicados a uma ampla
variedade de outros tratamentos” –
dissuadindo, assim, os doentes e/ou seus decisores de aceitarem ordens DNR que
estejam indicadas médica e/ou pessoalmente. Se os planos de alocação da
Covid-19 considerarem as DNR declaradas antecipadamente um motivo para negar um
ventilador a um doente, mais pessoas provavelmente se recusariam a subscrever
um pedido de DNR e exigiriam o ‘façam tudo’ em qualquer circunstância – mesmo
quando não for medicamente indicado – devido a receios de que mais tarde lhes
fosse negado um ventilador (ou qualquer outra intervenção que lhes salve a
vida).
As Diretrizes de Nova York de
2015 representam o culminar de mais de nove anos de análise, investigação e
construção de consensos sobre os princípios éticos e as diretrizes de alocação
de ventilador clínico. A flexibilidade deve ser incorporada nos planos de
alocação de recursos escassos para permitir que os Estados, instituições e
prestadores de serviços de saúde se ajustem às variadas informações clínicas.
Embora louvemos qualquer iniciativa para dar orientação clara e sucinta aos
prestadores de cuidados de saúde e instituições que estão confrontadas com
decisões quase impossíveis de alocação de recursos, a inclusão da DNR
previamente declarada como critério de exclusão nos planos de atribuição de
ventiladores minará a confiança no sistema que deveria proteger a saúde da
população durante esta emergência de saúde pública. ◼
Comentário Stephen P. Wood em 22 de abril de 2020 - 9:05
Esta é uma discussão importante
e, concordo, decisões sobre o acesso a ventiladores são importantes e
complexas. Penso que esta discussão destaca aspetos importantes desta questão,
mas simplifica demais o termo DNR. O termo DNR refere-se a, no cenário de uma
paragem cardíaca súbita, saber se um doente quereria ou não ter um dos vários
tratamentos como intubação, ventilação mecânica, compressões torácicas e
medicamentos de ressuscitação. No entanto, isso não indica que os prestadores
não recorram a outras intervenções para salvar vidas, quando indicado. Embora o
termo DNR seja comummente usado, geralmente refere-se a um conjunto mais amplo
de declarações, mais apropriadamente denominadas diretivas antecipadas de
vontade. Por exemplo, em Massachusetts, o formulário MOLST [Medical Orders
for Life-Sustaining Treatment] descreve exatamente quais os procedimentos
que um doente desejaria ou não. Isso inclui intubação, ventilação invasiva e
não invasiva, bem como nutrição artificial e diálise. A maioria dos
profissionais usaria uma DNR como ponto de partida para discussões sobre o que
o doente desejaria ou não antes da necessidade de ressuscitação cardiopulmonar.
Especialmente em doentes com pneumonia grave do Covid-19, é importante
determinar a extensão da diretiva avançada, pois muitos doentes não só
necessitam de ventilação mecânica, como também de hemodiálise, colocação da
linha central e outros procedimentos invasivos. A decisão de intubar e ventilar
um doente é complexa e envolve o estado do doente, comorbidades, qualidade de
vida e resultado potencial. Embora a prática do prestador possa ser de
considerar, vários sistemas de pontuação também estão disponíveis para avaliar
possíveis resultados. A linguagem é importante, e dada a escassez potencial de
recursos como ventiladores, camas de Unidades de Cuidados Intensivos e equipa
para os gerir, é importante abordar essas questões com antecedência. O termo
DNR é ambíguo e pode ser confuso para o público leigo. É imperativo usar o
termo diretiva antecipada e ajudar o público leigo a entender o que isso
implica, pois enfrentamos esta crise e outras que se podem seguir. Este artigo
é importante, levanta alguns pontos excelentes e questões éticas, bem como a
importância da linguagem. Obrigado.
(1) Foi advogada sénior e consultora especial do New York State Task Force on Life and the Law e atualmente é diretora de lei e ética no MacLean Center for Clinical Medical Ethics da Universidade de Chicago e bolseira no DePaul University College of Law.
(2) Foi diretora adjunta do New York State Task Force on Life and the Law e presidente do projeto Ventilator Allocation Guidelines e atualmente é membro da Venture Catalyst.