30 junho 2016

Dignity - Dignité


 O conceito de dignidade e a sua utilização nos debates sobre fim-de-vida 
em Inglaterra e França

Ruth Horn (investigadora de Sociologia), Angeliki Kerasidou (investigadora de Filosofia e Teologia)

Tradução espontânea do artigo 

The Concept of Dignity and Its Use in End-of-Life Debates in England and France

Introdução

Dignidade é um conceito muito discutível. Muitos significados diferentes têm sido propostos nos debates éticos e políticos, mas não foi alcançado um consenso 1. A falta de uma definição clara de dignidade deu origem a controvérsias e confusões. Alguns autores defendem o termo 2,3,4, outros rejeitam-no por inútil em bioética 5. No entanto, a dignidade continua a ser um conceito proeminente em orientações e regulamentos internacionais de bioética. Por exemplo, a Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina (1997) 6, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO (1997) 7 e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) 8, todas invocam a dignidade humana e a obrigação de a respeitar como fundamento de restrições e obrigações na prática biomédica.

O respeito pela dignidade é invocado como um dos princípios fundamentais dos debates e diretrizes morais internacionais sobre problemas de fim-de-vida. Mais especificamente, o artigo 5.º da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e Biomedicina estabelece a obrigação de procurar o consentimento do doente para cada intervenção em saúde, o que implica o direito de recusar o tratamento, como uma forma de respeito pela dignidade e pelas liberdades individuais. A convenção é apoiada pela maioria dos países europeus, incluindo Inglaterra e França. Estes países têm a obrigação de implementar as diretivas da convenção a nível nacional. No entanto, as abordagens nacionais dessa aplicação podem diferir consideravelmente. Uma das razões para esta discrepância entre os países pode ser os diferentes significados do termo “dignidade” e as diferentes formas que o respeito pela dignidade humana podem tomar 9. Portanto, é importante explorar os diferentes significados da dignidade numa tentativa para clarificar o seu uso nos debates 10 e assim facilitar o diálogo entre países 11.

Neste artigo concentramo-nos em dois países, Inglaterra e França, e na forma como as diretrizes internacionais em matéria de respeito pela dignidade têm sido traduzidas a nível nacional. Analisamos as questões legais das práticas no fim-de-vida em Inglaterra e França e também investigamos o significado do termo “dignidade” tal como aparece nas políticas públicas e diretrizes nacionais.

Defendemos que em Inglaterra o respeito pela dignidade é essencialmente entendido como o respeito pela autonomia, enquanto em França o respeito pela dignidade é sobretudo entendido como o respeito pela humanidade, a solidariedade e a ordem pública. Concluímos que as diretrizes internacionais que invoquem termos discutíveis como “dignidade” não podem conduzir a uma harmonização de políticas e práticas a nível europeu e indicam que, para que a harmonização das políticas e práticas seja alcançada, o significado do termo tem de ser mais bem definido.

Abordagem legal das práticas de fim-de-vida em Inglaterra

Os esforços para estabelecer o respeito pela dignidade do doente já constam de documentos internacionais. Como mencionado anteriormente, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Biomedicina salienta a obrigação de procurar o consentimento livre e esclarecido dos doentes, antes de qualquer intervenção em saúde (artigo 5.º), como elemento essencial para o respeito pela dignidade dos doentes e pelas liberdades (artigo 1.º). Além disso, a convenção obriga a que os prestadores de cuidados de saúde mostrem respeito pela dignidade e pela liberdade dos doentes, tendo em conta os seus desejos quanto aos tratamentos em fim-de-vida. No entanto, França e Inglaterra adotaram diferentes maneiras de cumprir esta obrigação, ao atribuir um estatuto jurídico diferente à vontade dos doentes que recusam tratamentos 12.

No Direito inglês, o direito de um doente recusar tratamentos baseia-se no princípio da integridade física, introduzido pela primeira vez em 1765 por William Blackstone 13. Conquanto sejam devidamente informados e tenham compreendido as consequências da sua decisão, os doentes não têm de explicar em pormenor as razões por que pretendem recusar um tratamento. Os doentes podem recusar qualquer tratamento, mesmo tratamentos para manter a sua vida, “por razões racionais, irracionais ou sem quaisquer razões” 14. No caso de doentes incapazes, são juridicamente vinculativas, no Direito inglês, as declarações antecipadas de recusa de tratamentos específicos, desde que o doente tenha compreensão suficiente da situação quando a declaração foi feita 15. Apenas nas situações em que existam dúvidas sobre a coerência e a clareza do desejo anteriormente expresso é que o tribunal pode decidir ignorar a decisão antecipada do doente que recusa tratamentos 16.

Desde a Lei da Capacidade Mental de 2005, que entrou em vigor em Inglaterra e no País de Gales em 2007, as decisões antecipadas de recusa de tratamentos escritas são também juridicamente vinculativas ao abrigo da lei, desde que certos critérios se verifiquem. A lei de 2005 introduziu as decisões antecipadas como uma forma de reforçar a autonomia dos doentes que fiquem incapazes. Na ausência de uma tal decisão antecipada, de acordo com a secção 4 da lei, o tratamento de um doente incapaz deve ser feito no seu “melhor interesse”; isto significa que o médico deve contrabalançar os benefícios clínicos com as vontades passadas e presentes da pessoa, seus sentimentos, crenças, valores e com qualquer outro fator que a pessoa teria em conta se fosse capaz de o fazer. O médico deve também ter em conta as opiniões de outras pessoas, como familiares e amigos próximos, que possam contribuir para se determinar quais seriam os melhores interesses dessa pessoa em concreto.

Abordagem legal das práticas de fim-de-vida em França

Em França, a lei sobre os direitos dos doentes [loi sur les droits des patients] de 2002 (lei n.º 2002-303) introduziu o direito à recusa de tratamentos 17. Muitos médicos franceses, no entanto, alegaram que era dúbia quanto à questão de se saber se este direito incluía o direito de interromper ou recusar tratamentos de apoio vital 18. A lei de 2005 sobre os direitos dos doentes e o fim-de-vida [loi sur les droits des patients et la fin de vie] (lei n.º 2005-370) [alteração] surgiu como uma tentativa de esclarecer esta confusão. Ficou estipulado que o doente tem o direito a recusar qualquer tratamento, incluindo nutrição e hidratação clinicamente ajudadas (Código da Saúde Pública no artigo L.1111-4) 19. Embora a lei de 2005 especifique que o médico tem de respeitar os desejos do doente, também declara que, se a recusa de tratamento puser em risco a vida do doente, o médico deve “fazer tudo o que for possível a fim de convencer o doente” a continuar o tratamento. Não é especificado o que significa “fazer tudo o que for possível”, ou quão longe o médico deve ir para convencer o doente a continuar o tratamento. “Em qualquer caso”, diz a lei, “o doente tem de repetir a sua decisão após um lapso de tempo razoável” (Código da Saúde Pública no artigo L.1111-4). Como assinala Dominique Thouvenin, estas restrições expressam ambivalência quanto ao reconhecimento subjetivo dos direitos dos doentes – isto é, no sentido do reconhecimento do doente como o verdadeiro titular do direito 20.

A relutância em confiar na escolha do doente é também evidente no estatuto jurídico das decisões antecipadas de recusa de tratamento em França. A lei de 2005 estipula que todas as doentes podem redigir um tal documento. No entanto, diferentemente da Inglaterra, as decisões prévias não são hoje juridicamente vinculativas na França. O artigo L.1111-11 do Código da Saúde Pública.  Afirma que elas “devem ser tidas em conta” pelo médico. Antes de ter em conta a decisão antecipada, o médico é aconselhado a consultar um colega, bem como o representante do doente, familiares ou amigos próximos. No entanto, é claro que é apenas o médico quem toma a decisão de interromper ou não iniciar tratamentos que mantêm a vida. Apesar de muitas tentativas nos últimos anos para reforçar os direitos dos doentes em França, um forte empenho em proteger a pessoa vulnerável e delegar responsabilidades no médico continua a ser o principal elemento na regulação das decisões de fim-de-vida 21.

Olhando para o panorama jurídico sobre práticas de fim-de-vida e decisões antecipadas em Inglaterra e França, poderá argumentar-se que, embora ambos os países estejam empenhados em proteger a dignidade do doente nos cuidados de fim-de-vida, o modo de alcançar este objetivo é diferente. Na Inglaterra, os direitos do doente parecem desempenhar um papel central, enquanto em França o dever de os médicos protegerem as pessoas vulneráveis é mais forte 22,23. É importante focar a nossa atenção na forma como o termo “dignidade” é comummente usado em relatórios de bioética e diretrizes médicas nestes dois países, pois é o apelo ao respeito pela dignidade que primordialmente condiciona decisões e políticas referentes aos tratamentos de fim-de-vida.

Dignidade no contexto inglês de fim-de-vida: políticas e diretrizes

Uma definição útil para sabermos como a dignidade é entendida no contexto médico inglês é a dada pelo Nuffield Council on Bioethics. Num relatório de 2002, o Conselho afirma que “um elemento essencial do conceito de dignidade humana é a presunção de que cada um de nós é uma pessoa cujas ações, ideias e preocupações são intrinsecamente merecedoras de respeito, pois foram escolhidas, organizadas e orientadas de um modo que faz todo o sentido de um ponto de vista puramente individual” 24. De acordo com esta definição, o valor intrínseco de uma pessoa, a sua dignidade, assenta na sua capacidade de autonomia e autodeterminação. O mesmo entendimento de dignidade é repetido pelo General Medical Council. O GMC pede aos médicos que trabalham em cuidados de fim-de-vida que “tratem os doentes como indivíduos e respeitem a sua dignidade”, ouçam e respondam às suas preocupações, dando-lhes informações de forma adequada e respeitando o seu direito a tomar as suas próprias decisões 25. Tanto para o Nuffield Council como para o GMC tratar as pessoas com dignidade é sobretudo entendido como facilitar, apoiar e promover as suas capacidades e, por extensão, o seu direito a escolherem por si mesmas e a verem as suas escolhas respeitadas.

Em 2008, “relatos confrangedores de pessoas que não eram tratadas com dignidade e respeito e (o facto de) muitas pessoas não morrerem onde escolheriam” 26 estimularam a publicação do relatório intitulado “Estratégia de Fim-de-Vida”. Embora outras facetas da dignidade, como os procedimentos com os falecidos ou o respeito pelo direito de uma pessoa a ter uma convicção religiosa, estejam mencionados na “Estratégia de Fim-de-Vida”, a importância de tratar alguém como um indivíduo com as suas escolhas e preferências permanece como a principal mensagem desse relatório 27.

Além disso, o direito do indivíduo à autodeterminação foi defendido com êxito por Lorde Donaldson de Lymington no julgamento do caso Bland:

O interesse do doente consiste no seu direito à autodeterminação…, mesmo que isso prejudique a sua saúde ou o leve à morte prematura. O interesse da sociedade é defender que toda a vida humana é sagrada e deve ser preservada, se for possível. Está bem estabelecido que, em última instância, o direito do indivíduo prevalece 28.

No contexto da cultura inglesa liberal, baseada no Direito 29, a dignidade está muitas vezes associada ao autogoverno. Os direitos dos doentes a assumirem o controlo de suas vidas e de tomarem as suas próprias decisões autónomas estão em sintonia com a tradição filosófica e política da Inglaterra. A proteção do direito individual à liberdade perante as autoridades públicas está estabelecida desde a Magna Carta em 1215. Como mencionado noutro sítio 30, este direito tem sido apoiado por importantes pensadores ingleses como John Locke, que alegou que nenhuma autoridade deveria intervir na vida privada de uma pessoa 31, e John Stuart Mill, segundo o qual uma pessoa deve ser livre para atuar de forma autónoma, enquanto não restringir a liberdade dos outros 32.

Como veremos na próxima secção, a França adota uma abordagem diferente para a dignidade. No contexto francês, a pessoa está mais integrada na sociedade e a ênfase situa-se na igualdade de direitos de todos os membros da comunidade, mais do que nos direitos individuais 33.

Dignidade no contexto francês de fim-de-vida: políticas e diretrizes

O mais antigo significado da palavra “dignidade” refere-se a um conjunto de qualidades e distinções possuído pelas pessoas da nobreza e dos quadros superiores da sociedade. Reis, ministros, bispos e médicos tinham dignidades especiais resultantes dos seus papéis e posições 34. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), aprovada na sequência da Revolução Francesa, contestou esta definição. Estendeu as dignidades a todas as pessoas independentemente da sua classe ou posto, baseando-se na ideia de que todos os seres humanos compartilham uma natureza comum e são iguais aos olhos da lei. De acordo com o artigo 6.º:

A lei é a expressão da vontade geral… Deve ser a mesma para todos, tanto a proteger como a punir. Todos os cidadãos são iguais aos olhos da lei, são igualmente elegíveis para todas as dignidades e para todos os cargos públicos e profissões, de acordo com as suas capacidades e sem outra distinção do que a das suas virtudes e talentos 35.

Como mostra Christopher McCrudden, o respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos é central no republicanismo francês, fortemente influenciado pela noção de contrato social de Jean-Jacques Rousseau 36. O Estado republicano – que, segundo Rousseau, representa a vontade geral de cada cidadão – assume um papel especial na defesa da igualdade e garante os direitos de todos. A filosofia de Rousseau parece ter contribuído para um entendimento da dignidade mais igualitário ou comunitário. Citando Paolo G. Carozza, McCrudden aponta para os aspetos distintivos do entendimento comunitário da dignidade, o qual é conhecido por “‘mostrar mais preocupação pela igualdade e fraternidade e menos ênfase exclusiva na liberdade’ do que o que acontece nas tradições norte-americanas” 37.

Este significado particular de dignidade e o papel do Estado na proteção da dignidade dos seus cidadãos, independentemente da sua raça, idade, sexo, crenças ou condição física, ainda é percetível nos atuais debates jurídicos, éticos e políticos em França 38.

Em 1994, a dignidade foi introduzida no Direito francês como um “princípio de valor constitucional”. Foram aprovadas, nesse ano, três leis sobre bioética (dites lois de bioéthique) que regem a proteção de dados pessoais, o respeito pelo corpo humano e a doação e utilização de partes do corpo; estas leis referem-se à dignidade como um valor intrínseco a cada pessoa. Desde então, o artigo 16.º do Código Civil determinou que a lei proíbe qualquer ofensa à dignidade da pessoa e garante o respeito de todo o ser humano, desde o início da sua vida. Também desde 1995, o artigo 38.º do Código de Deontologia Médica (Code de Déontologie Médicale) salienta que é dever do médico garantir a dignidade do doente que está a morrer, sem porém antecipar intencionalmente a sua morte. Este artigo está integrado no Código da Saúde Pública (artigo L.1111-4).

Em 2000, o Conselho Nacional de Ética francês (Conseil Consultatif National d’Ethique) publicou um relatório sobre “fim-de-vida, terminar a vida, eutanásia” (fin de vie, arrêt de vie, euthanasie) em que salienta o valor intrínseco da dignidade humana, que deve ser protegida pelos médicos 39. De acordo com o Conselho, os médicos são representantes da sociedade (corps social) e o seu papel é “defender e promover os valores comuns, sem o que não haveria nem grupos nem sociedade” 40.

Há três relatórios parlamentares sobre os problemas de fim-de-vida que discutem os diferentes conceitos de dignidade nos debates sobre fim-de-vida e eutanásia 41,42,43. A dignidade pode ser entendida de um modo individualista quando indica as opiniões de cada pessoa relativamente ao valor da vida. Um relatório reconhece que muitos defensores da eutanásia utilizam esta definição de dignidade para apoiarem os seus argumentos. Num entendimento alternativo, no entanto, a noção de dignidade significa uma característica intrínseca da vida humana, uma qualidade indisponível que todos os humanos partilham e que não pode ser perdida ou diminuída. Esta é a noção de dignidade que os opositores da eutanásia geralmente invocam.

Todos os três relatórios tendem a favorecer o significado de dignidade como uma qualidade intrínseca da vida humana. Como afirma Vincent Lamanda, presidente do Supremo Tribunal de Recurso francês: “A dignidade humana não implica a liberdade de escolha entre a própria vida e a morte mas é a própria condição da liberdade… o princípio da dignidade justifica a limitação da liberdade de uma pessoa” 44.

O Conselho Nacional de Ética francês, num relatório de 2013, afirma que os diferentes significados de dignidade não são a priori opostos uns aos outros 45. Quando uma pessoa se apercebe que a sua situação é indigna, o Conselho, os poderes públicos e a sociedade deviam mobilizar-se para resolver tais situações: “a mais indigna das situações seria considerar o outro como sendo indigno porque é doente, diferente, sozinho, improdutivo, dispendioso” 46. O Conselho defende ainda que a ideia de que a dignidade da pessoa pode ser restaurada ajudando-a a morrer ofende o significado de dignidade que garante a igualdade de valor de cada ser humano, independentemente de sua condição.

O entendimento da dignidade como um valor que é intrínseco a cada ser humano, e deve ser protegido pelos poderes públicos ou representantes da sociedade, condiciona não apenas o debate mas também o direito e as políticas em matéria de práticas no fim-de-vida em França.

Dadas as diferenças no modo como a dignidade é entendida em Inglaterra e França, vale a pena olhar mais para estas duas diferentes conceções do termo.

O difícil significado de dignidade

A dignidade é muitas vezes descrita como um conceito vago 47. Nomeadamente, distinguir os conceitos de autonomia e de dignidade tem representado um desafio significativo para muitos estudiosos. Alguns autores argumentam que as duas noções se contrapõem frequentemente. Por conseguinte, porque a autonomia é muito mais fácil de definir, tem sido sugerido que o conceito de dignidade é redundante e devia ser evitado 48.

Muitos filósofos têm chamado a si a tarefa de formular o significado exato de dignidade e propuseram um certo número de diferentes definições para o termo 49,50,51,52,53,54. Há duas noções de dignidade que parecem emergir quando olhamos para os debates sobre fim-de-vida em Inglaterra e França: dignidade como o respeito para com a humanidade e dignidade como o respeito pela autonomia.

Dignidade como o respeito pela humanidade

Immanuel Kant foi o filósofo que pôs a dignidade e o respeito pelas pessoas no centro da teoria moral. Para Kant, a dignidade humana (Menschenwürde) é o valor supremo que todos os seres humanos possuem em virtude da sua humanidade – ou seja, em virtude da sua natureza racional, serem seres capazes de pensamento racional, de escolhas autónomas e de ações morais 55. São estas capacidades, inatas à natureza humana, que fazem da dignidade um valor da vida humana fundamental e indisponível. A dignidade da pessoa não pode ser nem perdida nem diminuída 56. Como nota Michael Neumann, uma pessoa “tem todo o valor e dignidade moral que pode ter… apenas por agir de acordo com princípios universais e necessários, os mesmos para todos os seres racionais” 57. É essa capacidade de autorregulação, mais do que a capacidade para perseguir objetivos individuais, que confere dignidade a todos os humanos.

Dignidade como o respeito pela humanidade é um valor que tem sido usado para defender situações em que decisões e direitos individuais estejam ameaçados. Um dos casos mais famosos em que a dignidade humana foi invocada, foi o do lançamento de anões em França. Embora Manuel Wackenheim, o anão que ganhava a vida alugando-se a si mesmo para ser atirado, tenha recorrido e até levado o caso ao Comité Internacional de Direitos Civis e Políticos, o comité contrariou-o com o fundamento de que a proibição do lançamento de anões era necessária para a proteção da dignidade humana 58.

A tendência da França para prescindir dos direitos individuais a fim de proteger a coesão social e o igualitarismo enquadra--se com um entendimento da dignidade que se reclama do respeito pela humanidade como um todo. Respeitar a dignidade significa respeitar a humanidade de cada pessoa que dela faz parte, mais do que o direito de cada indivíduo a agir de forma independente.

Dignidade como o respeito pela autonomia

É a estreita relação entre as noções de humanidade e de autonomia que deu origem ao segundo entendimento da dignidade que discutimos neste artigo: o da dignidade como o respeito pela autonomia 59.

Autonomia vem do grego palavras αυτός [autos] que significa “auto”, e νόμος [nomos] que significa “lei”. Uma pessoa autónoma é uma pessoa que decide e é responsável pelas suas ações. Kant descreveu a autonomia como a capacidade humana para reger a vida em conformidade com princípios racionais 60. Mas, segundo Kant, é a razão prática, exercida através da autonomia, que nos determina às obrigações morais para nós mesmos e para os outros 61. Para Mill, no entanto, a autonomia é a base do valor intrínseco independente da razão prática. Ele defendia que a capacidade de ser autónomo era uma das principais características que distinguia os seres humanos dos outros animais e que também conferia especial valor moral à vida humana 62.

Na teoria de Mill, a autonomia está subjacente à dignidade humana:

Aquele que permite que seja o mundo, ou parte dele, a escolher o seu plano de vida não tem necessidade de qualquer outra faculdade senão a da imitação, como fazem os macacos. Tem de usar a observação para ver, o raciocínio e o julgamento para prever, o juntar fundamentos e discernimento para decidir e, quando decide, a firmeza e o autocontrolo para manter a decisão tomada. E são muito grandes as qualidades de que precisa e que usa na conduta por si determinada, no seu próprio julgamento e sentir. É possível que se oriente por bons caminhos e se desvie de maus sem qualquer uma dessas coisas. Mas qual será o seu valor como ser humano? 63

O modelo inglês de cuidados de fim-de-vida parece ser mais a favor da perspetiva da dignidade como o respeito pela autonomia. A melhor maneira de honrar a seres humanos e mostrar o devido apreço pela sua dignidade é reconhecê-los como indivíduos autónomos e permitir-lhes que procurem alcançar os seus próprios objetivos e sonhos. Quando se trata de doentes que se aproximam do final de suas vidas, a forma adequada de lidar com eles é a que lhes permite continuarem a desenvolver as suas próprias interpretações individuais acerca que é uma boa vida até o fim e mesmo para além dela.

Conclusão

A nossa análise dos fundamentos teóricos das atitudes inglesa e francesa em relação às decisões de fim-de-vida revela uma diferença nas interpretações sobre dignidade adotadas nos dois países. No contexto inglês, dignidade é principalmente, mas não exclusivamente, entendida como o respeito pela autonomia da pessoa. Isto levou a leis e práticas que salvaguardam a autonomia decisional dos doentes e que reconhecem a primazia dos direitos individuais sobre os interesses da sociedade.

No contexto francês, dignidade parece sobretudo significar o respeito para com a humanidade. Como diz Charles Bernard Renouvier, o ideal republicano “concilia os interesses e a dignidade de cada indivíduo com os interesses e a dignidade de todos” 64. A ênfase está assim sobre o respeito pelo valor intrínseco da vida humana, qualidade inalienável que é igualmente partilhada por todos os seres humanos. A responsabilidade do Estado é preservar a ordem pública através da proteção da dignidade humana, mesmo que isso signifique limitar as liberdades individuais. Aplicadas às decisões de fim-de-vida e à relação médico-doente, as escolhas individuais dos doentes dão lugar à responsabilidade dos médicos em promoverem valores sociais, como a proteção do bem-estar dos doentes.

Proteger e respeitar a dignidade humana é central em muitas declarações e normas de orientação europeias e internacionais relativas a problemas de fim-de-vida. Dado que o papel dessas normas é o aproximar das leis às práticas em todos os países, compreender o significado contextual de conceitos centrais como a dignidade ajudará a antecipar o modo como essas orientações poderão ser aplicadas localmente.

[ver referências no original]