Ruth Horn (investigadora de Sociologia), Angeliki Kerasidou (investigadora de Filosofia e Teologia)
Tradução espontânea do artigo
“The Concept of Dignity and Its Use in End-of-Life Debates in England and France”
Introdução
Dignidade é um conceito muito
discutível. Muitos significados diferentes têm sido propostos nos debates
éticos e políticos, mas não foi alcançado um consenso 1. A falta de
uma definição clara de dignidade deu origem a controvérsias e confusões. Alguns
autores defendem o termo 2,3,4, outros rejeitam-no por inútil em bioética 5. No
entanto, a dignidade continua a ser um conceito proeminente em orientações e
regulamentos internacionais de bioética. Por exemplo, a Convenção Europeia
sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina (1997) 6, a Declaração
Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO (1997) 7 e a Declaração
Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) 8, todas
invocam a dignidade humana e a obrigação de a respeitar como fundamento de
restrições e obrigações na prática biomédica.
O respeito pela dignidade é
invocado como um dos princípios fundamentais dos debates e diretrizes morais
internacionais sobre problemas de fim-de-vida. Mais especificamente, o artigo
5.º da Convenção
Europeia sobre Direitos Humanos e Biomedicina estabelece a obrigação de procurar
o consentimento do doente para cada intervenção em saúde, o que implica o
direito de recusar o tratamento, como uma forma de respeito pela dignidade e
pelas liberdades individuais. A convenção é apoiada pela maioria dos países
europeus, incluindo Inglaterra e França. Estes países têm a obrigação de
implementar as diretivas da convenção a nível nacional. No entanto, as
abordagens nacionais dessa aplicação podem diferir consideravelmente. Uma das
razões para esta discrepância entre os países pode ser os diferentes
significados do termo “dignidade” e as diferentes formas que o respeito pela dignidade
humana podem tomar 9. Portanto, é importante explorar os diferentes
significados da dignidade numa tentativa para clarificar o seu uso nos debates 10 e assim
facilitar o diálogo entre países 11.
Neste artigo
concentramo-nos em dois países, Inglaterra e França, e na forma como as
diretrizes internacionais em matéria de respeito pela dignidade têm sido
traduzidas a nível nacional. Analisamos as questões legais das práticas no
fim-de-vida em Inglaterra e França e também investigamos o significado do termo
“dignidade” tal como aparece nas políticas públicas e diretrizes nacionais.
Defendemos que em Inglaterra o
respeito pela dignidade é essencialmente entendido como o respeito pela
autonomia, enquanto em França o respeito pela dignidade é sobretudo entendido
como o respeito pela humanidade, a solidariedade e a ordem pública. Concluímos
que as diretrizes internacionais que invoquem termos discutíveis como
“dignidade” não podem conduzir a uma harmonização de políticas e práticas a
nível europeu e indicam que, para que a harmonização das políticas e práticas
seja alcançada, o significado do termo tem de ser mais bem definido.
Abordagem legal das práticas
de fim-de-vida em Inglaterra
Os esforços para estabelecer o
respeito pela dignidade do doente já constam de documentos internacionais. Como
mencionado anteriormente, a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e a Biomedicina salienta a obrigação de
procurar o consentimento livre e esclarecido dos doentes, antes de qualquer
intervenção em saúde (artigo 5.º), como elemento essencial para o respeito pela
dignidade dos doentes e pelas liberdades (artigo 1.º). Além disso, a convenção
obriga a que os prestadores de cuidados de saúde mostrem respeito pela
dignidade e pela liberdade dos doentes, tendo em conta os seus desejos quanto
aos tratamentos em fim-de-vida. No entanto, França e Inglaterra adotaram diferentes
maneiras de cumprir esta obrigação, ao atribuir um estatuto jurídico diferente
à vontade dos doentes que recusam tratamentos 12.
No Direito inglês, o direito de
um doente recusar tratamentos baseia-se no princípio da integridade física,
introduzido pela primeira vez em 1765 por William Blackstone 13. Conquanto
sejam devidamente informados e tenham compreendido as consequências da sua
decisão, os doentes não têm de explicar em pormenor as razões por que pretendem
recusar um tratamento. Os doentes podem recusar qualquer tratamento, mesmo
tratamentos para manter a sua vida, “por razões racionais, irracionais ou sem
quaisquer razões” 14. No caso de doentes incapazes, são juridicamente
vinculativas, no Direito inglês, as declarações antecipadas de recusa de
tratamentos específicos, desde que o doente tenha compreensão suficiente da
situação quando a declaração foi feita 15. Apenas nas situações em que existam dúvidas sobre a
coerência e a clareza do desejo anteriormente expresso é que o tribunal pode
decidir ignorar a decisão antecipada do doente que recusa tratamentos 16.
Desde a Lei da Capacidade
Mental de 2005, que entrou em vigor em Inglaterra e no País de Gales em 2007,
as decisões antecipadas de recusa de tratamentos escritas são também
juridicamente vinculativas ao abrigo da lei, desde que certos critérios se
verifiquem. A lei de 2005 introduziu as decisões antecipadas como uma forma de
reforçar a autonomia dos doentes que fiquem incapazes. Na ausência de uma tal
decisão antecipada, de acordo com a secção 4 da lei, o tratamento de um doente
incapaz deve ser feito no seu “melhor interesse”; isto significa que o médico
deve contrabalançar os benefícios clínicos com as vontades passadas e presentes
da pessoa, seus sentimentos, crenças, valores e com qualquer outro fator que a
pessoa teria em conta se fosse capaz de o fazer. O médico deve também ter em
conta as opiniões de outras pessoas, como familiares e amigos próximos, que
possam contribuir para se determinar quais seriam os melhores interesses dessa
pessoa em concreto.
Abordagem legal das práticas
de fim-de-vida em França
Em França, a lei sobre os
direitos dos doentes [loi sur les droits des patients] de 2002 (lei n.º
2002-303) introduziu o direito à recusa de tratamentos 17. Muitos
médicos franceses, no entanto, alegaram que era dúbia quanto à questão de se
saber se este direito incluía o direito de interromper ou recusar tratamentos
de apoio vital 18. A lei de 2005 sobre os direitos dos doentes e o
fim-de-vida [loi sur les droits des patients et la fin de vie] (lei n.º
2005-370) [alteração] surgiu como uma tentativa de esclarecer esta
confusão. Ficou estipulado que o doente tem o direito a recusar qualquer tratamento,
incluindo nutrição e hidratação clinicamente ajudadas (Código
da Saúde Pública no artigo L.1111-4) 19. Embora a lei de 2005 especifique que o médico tem de
respeitar os desejos do doente, também declara que, se a recusa de tratamento
puser em risco a vida do doente, o médico deve “fazer tudo o que for possível a
fim de convencer o doente” a continuar o tratamento. Não é especificado o que
significa “fazer tudo o que for possível”, ou quão longe o médico deve ir para
convencer o doente a continuar o tratamento. “Em qualquer caso”, diz a lei, “o
doente tem de repetir a sua decisão após um lapso de tempo razoável” (Código da
Saúde Pública no artigo L.1111-4). Como assinala Dominique Thouvenin, estas
restrições expressam ambivalência quanto ao reconhecimento subjetivo dos
direitos dos doentes – isto é, no sentido do reconhecimento do doente como o
verdadeiro titular do direito 20.
A relutância em confiar na
escolha do doente é também evidente no estatuto jurídico das decisões
antecipadas de recusa de tratamento em França. A lei de 2005 estipula que todas
as doentes podem redigir um tal documento. No entanto, diferentemente da
Inglaterra, as decisões prévias não são hoje juridicamente vinculativas na
França. O artigo L.1111-11 do Código da
Saúde Pública. Afirma que elas
“devem ser tidas em conta” pelo médico. Antes de ter em conta a decisão
antecipada, o médico é aconselhado a consultar um colega, bem como o
representante do doente, familiares ou amigos próximos. No entanto, é claro que
é apenas o médico quem toma a decisão de interromper ou não iniciar tratamentos
que mantêm a vida. Apesar de muitas tentativas nos últimos anos para reforçar
os direitos dos doentes em França, um forte empenho em proteger a pessoa vulnerável
e delegar responsabilidades no médico continua a ser o principal elemento na
regulação das decisões de fim-de-vida 21.
Olhando para o panorama
jurídico sobre práticas de fim-de-vida e decisões antecipadas em Inglaterra e
França, poderá argumentar-se que, embora ambos os países estejam empenhados em
proteger a dignidade do doente nos cuidados de fim-de-vida, o modo de alcançar
este objetivo é diferente. Na Inglaterra, os direitos do doente parecem
desempenhar um papel central, enquanto em França o dever de os médicos
protegerem as pessoas vulneráveis é mais forte 22,23. É
importante focar a nossa atenção na forma como o termo “dignidade” é comummente
usado em relatórios de bioética e diretrizes médicas nestes dois países, pois é
o apelo ao respeito pela dignidade que primordialmente condiciona decisões e
políticas referentes aos tratamentos de fim-de-vida.
Dignidade no contexto inglês
de fim-de-vida: políticas e diretrizes
Uma definição útil para
sabermos como a dignidade é entendida no contexto médico inglês é a dada pelo Nuffield Council on Bioethics.
Num relatório de 2002, o Conselho afirma que “um elemento essencial do conceito
de dignidade humana é a presunção de que cada um de nós é uma pessoa cujas
ações, ideias e preocupações são intrinsecamente merecedoras de respeito, pois
foram escolhidas, organizadas e orientadas de um modo que faz todo o sentido de
um ponto de vista puramente individual” 24. De acordo com esta definição, o valor intrínseco de
uma pessoa, a sua dignidade, assenta na sua capacidade de autonomia e
autodeterminação. O mesmo entendimento de dignidade é repetido pelo General
Medical Council. O GMC pede aos médicos que trabalham em cuidados de
fim-de-vida que “tratem os doentes como indivíduos e respeitem a sua
dignidade”, ouçam e respondam às suas preocupações, dando-lhes informações de
forma adequada e respeitando o seu direito a tomar as suas próprias decisões 25. Tanto
para o Nuffield Council como para o GMC tratar as pessoas com dignidade
é sobretudo entendido como facilitar, apoiar e promover as suas capacidades e,
por extensão, o seu direito a escolherem por si mesmas e a verem as suas escolhas
respeitadas.
Em 2008, “relatos
confrangedores de pessoas que não eram tratadas com dignidade e respeito e (o
facto de) muitas pessoas não morrerem onde escolheriam” 26 estimularam
a publicação do relatório intitulado “Estratégia de Fim-de-Vida”. Embora outras
facetas da dignidade, como os procedimentos com os falecidos ou o respeito pelo
direito de uma pessoa a ter uma convicção religiosa, estejam mencionados na
“Estratégia de Fim-de-Vida”, a importância de tratar alguém como um indivíduo
com as suas escolhas e preferências permanece como a principal mensagem desse
relatório 27.
Além disso, o direito do
indivíduo à autodeterminação foi defendido com êxito por Lorde Donaldson de
Lymington no julgamento do caso Bland:
O interesse do doente consiste
no seu direito à autodeterminação…, mesmo que isso prejudique a sua saúde ou o
leve à morte prematura. O interesse da sociedade é defender que toda a vida
humana é sagrada e deve ser preservada, se for possível. Está bem estabelecido
que, em última instância, o direito do indivíduo prevalece 28.
No contexto da cultura inglesa
liberal, baseada no Direito 29, a dignidade está muitas vezes associada ao
autogoverno. Os direitos dos doentes a assumirem o controlo de suas vidas e de
tomarem as suas próprias decisões autónomas estão em sintonia com a tradição
filosófica e política da Inglaterra. A proteção do direito individual à
liberdade perante as autoridades públicas está estabelecida desde a Magna Carta
em 1215. Como mencionado noutro sítio 30, este direito tem sido apoiado por importantes
pensadores ingleses como John Locke, que alegou que nenhuma autoridade deveria
intervir na vida privada de uma pessoa 31, e John Stuart Mill, segundo o qual uma pessoa deve
ser livre para atuar de forma autónoma, enquanto não restringir a liberdade dos
outros 32.
Como veremos na próxima secção,
a França adota uma abordagem diferente para a dignidade. No contexto francês, a
pessoa está mais integrada na sociedade e a ênfase situa-se na igualdade de
direitos de todos os membros da comunidade, mais do que nos direitos
individuais 33.
Dignidade no contexto
francês de fim-de-vida: políticas e diretrizes
O mais antigo significado da
palavra “dignidade” refere-se a um conjunto de qualidades e distinções possuído
pelas pessoas da nobreza e dos quadros superiores da sociedade. Reis,
ministros, bispos e médicos tinham dignidades especiais resultantes dos seus
papéis e posições 34. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), aprovada na sequência da Revolução Francesa, contestou esta definição.
Estendeu as dignidades a todas as pessoas independentemente da sua classe ou
posto, baseando-se na ideia de que todos os seres humanos compartilham uma
natureza comum e são iguais aos olhos da lei. De acordo com o artigo 6.º:
A lei é a expressão da vontade
geral… Deve ser a mesma para todos, tanto a proteger como a punir. Todos os
cidadãos são iguais aos olhos da lei, são igualmente elegíveis para todas as
dignidades e para todos os cargos públicos e profissões, de acordo com as suas
capacidades e sem outra distinção do que a das suas virtudes e talentos 35.
Como mostra Christopher McCrudden,
o respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos é central no
republicanismo francês, fortemente influenciado pela noção de contrato social
de Jean-Jacques Rousseau 36. O Estado republicano – que, segundo Rousseau,
representa a vontade geral de cada cidadão – assume um papel especial na defesa
da igualdade e garante os direitos de todos. A filosofia de Rousseau parece ter
contribuído para um entendimento da dignidade mais igualitário ou comunitário.
Citando Paolo G. Carozza, McCrudden aponta para os aspetos distintivos do
entendimento comunitário da dignidade, o qual é conhecido por “‘mostrar mais
preocupação pela igualdade e fraternidade e menos ênfase exclusiva na
liberdade’ do que o que acontece nas tradições norte-americanas” 37.
Este significado particular de
dignidade e o papel do Estado na proteção da dignidade dos seus cidadãos, independentemente
da sua raça, idade, sexo, crenças ou condição física, ainda é percetível nos
atuais debates jurídicos, éticos e políticos em França 38.
Em 1994, a dignidade foi
introduzida no Direito francês como um “princípio de valor constitucional”.
Foram aprovadas, nesse ano, três leis sobre bioética (dites lois de
bioéthique) que regem a proteção de dados pessoais, o respeito pelo corpo
humano e a doação e utilização de partes do corpo; estas leis referem-se à
dignidade como um valor intrínseco a cada pessoa. Desde então, o artigo 16.º do
Código Civil determinou que a lei proíbe qualquer ofensa à dignidade da pessoa
e garante o respeito de todo o ser humano, desde o início da sua vida. Também
desde 1995, o artigo 38.º do Código de Deontologia Médica (Code de
Déontologie Médicale) salienta que é dever do médico garantir a dignidade
do doente que está a morrer, sem porém antecipar intencionalmente a sua morte.
Este artigo está integrado no Código da Saúde Pública (artigo L.1111-4).
Em 2000, o Conselho Nacional de
Ética francês (Conseil Consultatif National d’Ethique) publicou um
relatório sobre “fim-de-vida, terminar a vida, eutanásia” (fin de vie, arrêt
de vie, euthanasie) em que salienta o valor intrínseco da dignidade humana,
que deve ser protegida pelos médicos 39. De acordo com o Conselho, os médicos são
representantes da sociedade (corps social) e o seu papel é “defender e
promover os valores comuns, sem o que não haveria nem grupos nem sociedade” 40.
Há três relatórios
parlamentares sobre os problemas de fim-de-vida que discutem os diferentes
conceitos de dignidade nos debates sobre fim-de-vida e eutanásia 41,42,43. A
dignidade pode ser entendida de um modo individualista quando indica as
opiniões de cada pessoa relativamente ao valor da vida. Um relatório reconhece
que muitos defensores da eutanásia utilizam esta definição de dignidade para
apoiarem os seus argumentos. Num entendimento alternativo, no entanto, a noção
de dignidade significa uma característica intrínseca da vida humana, uma
qualidade indisponível que todos os humanos partilham e que não pode ser
perdida ou diminuída. Esta é a noção de dignidade que os opositores da
eutanásia geralmente invocam.
Todos os três relatórios tendem
a favorecer o significado de dignidade como uma qualidade intrínseca da vida
humana. Como afirma Vincent Lamanda, presidente do Supremo Tribunal de Recurso
francês: “A dignidade humana não implica a liberdade de escolha entre a própria
vida e a morte mas é a própria condição da liberdade… o princípio da dignidade
justifica a limitação da liberdade de uma pessoa” 44.
O Conselho Nacional de Ética
francês, num relatório de 2013, afirma que os diferentes significados de
dignidade não são a priori opostos uns aos outros 45. Quando
uma pessoa se apercebe que a sua situação é indigna, o Conselho, os poderes
públicos e a sociedade deviam mobilizar-se para resolver tais situações: “a
mais indigna das situações seria considerar o outro como sendo indigno porque é
doente, diferente, sozinho, improdutivo, dispendioso” 46. O
Conselho defende ainda que a ideia de que a dignidade da pessoa pode ser
restaurada ajudando-a a morrer ofende o significado de dignidade que garante a
igualdade de valor de cada ser humano, independentemente de sua condição.
O entendimento da dignidade
como um valor que é intrínseco a cada ser humano, e deve ser protegido pelos
poderes públicos ou representantes da sociedade, condiciona não apenas o debate
mas também o direito e as políticas em matéria de práticas no fim-de-vida em
França.
Dadas as diferenças no modo
como a dignidade é entendida em Inglaterra e França, vale a pena olhar mais
para estas duas diferentes conceções do termo.
O difícil significado de
dignidade
A dignidade é muitas vezes
descrita como um conceito vago 47. Nomeadamente, distinguir os conceitos de autonomia e
de dignidade tem representado um desafio significativo para muitos estudiosos.
Alguns autores argumentam que as duas noções se contrapõem frequentemente. Por
conseguinte, porque a autonomia é muito mais fácil de definir, tem sido sugerido
que o conceito de dignidade é redundante e devia ser evitado 48.
Muitos filósofos têm chamado a
si a tarefa de formular o significado exato de dignidade e propuseram um certo
número de diferentes definições para o termo 49,50,51,52,53,54. Há duas
noções de dignidade que parecem emergir quando olhamos para os debates sobre
fim-de-vida em Inglaterra e França: dignidade como o respeito para com a
humanidade e dignidade como o respeito pela autonomia.
Dignidade como o respeito
pela humanidade
Immanuel Kant foi o filósofo
que pôs a dignidade e o respeito pelas pessoas no centro da teoria moral. Para
Kant, a dignidade humana (Menschenwürde) é o valor supremo que todos os
seres humanos possuem em virtude da sua humanidade – ou seja, em virtude da sua
natureza racional, serem seres capazes de pensamento racional, de escolhas
autónomas e de ações morais 55. São estas capacidades, inatas à natureza humana, que
fazem da dignidade um valor da vida humana fundamental e indisponível. A
dignidade da pessoa não pode ser nem perdida nem diminuída 56. Como nota
Michael Neumann, uma pessoa “tem todo o valor e dignidade moral que pode ter…
apenas por agir de acordo com princípios universais e necessários, os mesmos
para todos os seres racionais” 57. É essa capacidade de autorregulação, mais do que a
capacidade para perseguir objetivos individuais, que confere dignidade a todos
os humanos.
Dignidade como o respeito pela
humanidade é um valor que tem sido usado para defender situações em que
decisões e direitos individuais estejam ameaçados. Um dos casos mais famosos em
que a dignidade humana foi invocada, foi o do lançamento de anões em França.
Embora Manuel Wackenheim, o anão que ganhava a vida alugando-se a si mesmo para
ser atirado, tenha recorrido e até levado o caso ao Comité Internacional de
Direitos Civis e Políticos, o comité contrariou-o com o fundamento de que a
proibição do lançamento de anões era necessária para a proteção da dignidade
humana 58.
A tendência da França para
prescindir dos direitos individuais a fim de proteger a coesão social e o
igualitarismo enquadra--se com um entendimento da dignidade que se reclama do
respeito pela humanidade como um todo. Respeitar a dignidade significa respeitar
a humanidade de cada pessoa que dela faz parte, mais do que o direito de cada
indivíduo a agir de forma independente.
Dignidade como o respeito
pela autonomia
É a estreita relação entre as
noções de humanidade e de autonomia que deu origem ao segundo entendimento da
dignidade que discutimos neste artigo: o da dignidade como o respeito pela
autonomia 59.
Autonomia vem do grego palavras
αυτός
[autos] que significa “auto”, e νόμος [nomos] que significa “lei”. Uma pessoa autónoma é uma
pessoa que decide e é responsável pelas suas ações. Kant descreveu a autonomia
como a capacidade humana para reger a vida em conformidade com princípios
racionais 60. Mas, segundo Kant, é a razão prática, exercida
através da autonomia, que nos determina às obrigações morais para nós mesmos e
para os outros 61. Para Mill, no entanto, a autonomia é a base do valor
intrínseco independente da razão prática. Ele defendia que a capacidade de ser
autónomo era uma das principais características que distinguia os seres humanos
dos outros animais e que também conferia especial valor moral à vida humana 62.
Na teoria de Mill, a autonomia
está subjacente à dignidade humana:
Aquele que permite que seja o
mundo, ou parte dele, a escolher o seu plano de vida não tem necessidade de qualquer
outra faculdade senão a da imitação, como fazem os macacos. Tem de usar a
observação para ver, o raciocínio e o julgamento para prever, o juntar
fundamentos e discernimento para decidir e, quando decide, a firmeza e o
autocontrolo para manter a decisão tomada. E são muito grandes as qualidades de
que precisa e que usa na conduta por si determinada, no seu próprio julgamento
e sentir. É possível que se oriente por bons caminhos e se desvie de maus sem
qualquer uma dessas coisas. Mas qual será o seu valor como ser humano? 63
O modelo inglês de cuidados de
fim-de-vida parece ser mais a favor da perspetiva da dignidade como o respeito
pela autonomia. A melhor maneira de honrar a seres humanos e mostrar o devido
apreço pela sua dignidade é reconhecê-los como indivíduos autónomos e
permitir-lhes que procurem alcançar os seus próprios objetivos e sonhos. Quando
se trata de doentes que se aproximam do final de suas vidas, a forma adequada
de lidar com eles é a que lhes permite continuarem a desenvolver as suas
próprias interpretações individuais acerca que é uma boa vida até o fim e mesmo
para além dela.
Conclusão
A nossa análise dos fundamentos
teóricos das atitudes inglesa e francesa em relação às decisões de fim-de-vida
revela uma diferença nas interpretações sobre dignidade adotadas nos dois
países. No contexto inglês, dignidade é principalmente, mas não exclusivamente,
entendida como o respeito pela autonomia da pessoa. Isto levou a leis e
práticas que salvaguardam a autonomia decisional dos doentes e que reconhecem a
primazia dos direitos individuais sobre os interesses da sociedade.
No contexto francês, dignidade
parece sobretudo significar o respeito para com a humanidade. Como diz Charles
Bernard Renouvier, o ideal republicano “concilia os interesses e a dignidade de
cada indivíduo com os interesses e a dignidade de todos” 64. A ênfase
está assim sobre o respeito pelo valor intrínseco da vida humana, qualidade
inalienável que é igualmente partilhada por todos os seres humanos. A
responsabilidade do Estado é preservar a ordem pública através da proteção da
dignidade humana, mesmo que isso signifique limitar as liberdades individuais.
Aplicadas às decisões de fim-de-vida e à relação médico-doente, as escolhas individuais
dos doentes dão lugar à responsabilidade dos médicos em promoverem valores
sociais, como a proteção do bem-estar dos doentes.
Proteger e respeitar a dignidade humana é central em muitas declarações e normas de orientação europeias e internacionais relativas a problemas de fim-de-vida. Dado que o papel dessas normas é o aproximar das leis às práticas em todos os países, compreender o significado contextual de conceitos centrais como a dignidade ajudará a antecipar o modo como essas orientações poderão ser aplicadas localmente.
[ver referências no original]