06 janeiro 2016

Teoria ética e bioética

 

Teoria ética e bioética

James Rachels

Capítulo 2 do livro A Companion to Bioethics (páginas 15-23) 

Editado por Helga Kuhse e Peter Singer, Blackwell Publishers. Oxford, 2001. 

Blackwell Companions to Philosophy

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03 janeiro 2016

Adeus e felicidades!

 

Adeus e felicidades! Gillian Bennett (*) 

Tradução do depoimento Good bye & Good Luck!

18 de agosto de 2014 – A minha vida vai acabar hoje por volta de meio-dia. É a hora. A demência está a tomar conta de mim e estou quase a perder. Estou quase perdida mesmo com Jonathan, o mais firme e mais luminoso dos homens, ao meu lado como testemunha amorosa.

Percebi que tenho demência, uma perda progressiva de memória e de raciocínio, há cerca de três anos. É uma doença furtiva, obstinada e muito conhecida. Preferia ter uma enfermidade bizarra com um nome muito sonante, mas o que tenho é inteiramente banal. Acho que esta é uma doença muito aborrecida e, apesar de a minha família ser tão gentil e bem-educada, estou ciente de como eles a acham chata também. E é tão pesada para o meu marido, Jonathan. Acho que só meu querido gato ainda não reparou, mas não tenho certeza disso.

A demência não dá descanso e não admite discussões. A investigação diz-nos que é uma “doença silenciosa” que se pode esconder durante anos ou mesmo décadas antes de seus sintomas se tornarem óbvios. Gradualmente no início, muito mais rapidamente depois, e eis-me transformada num vegetal. É difícil lembrar-me se a minha neta chega daqui a três dias ou hoje. “Onde está X?” (o café / a batedeira / a tecla de apagar no meu teclado / o livro que estava a ler), estou sempre a perguntar. Tenho constantemente de verificar o que digo para ver se não faço asneira.

Há um momento, no decurso da demência, em que se não é mais capaz de tratar dos próprios assuntos. Espero que me possa aperceber da situação ou consiga pôr termo à minha vida. Vai chegar o momento em que simplesmente tenho de decidir perante a deterioração da minha saúde física. Não gosto de hospitais – são locais sujos. Qualquer médico nos dirá que fiquemos longe deles desde que possamos. Eu não quereria que uma queda, um acidente vascular cerebral ou uma qualquer complicação imprevista atrapalhasse a minha decisão de gastar o menos possível ao meu país nos meus anos de declínio.

Compreendam que não estou a desistir de nada por cometer suicídio. Tudo o que perco é um número indeterminado de anos como vegetal num ambiente hospitalar, a gastar o dinheiro do país mas sem ter a mínima ideia de quem eu sou.

Cada um de nós é único ao nascer e ao morrer. Penso o morrer como uma aventura final com um final previsível e abrupto. Sei quando é hora de partir e isso não me assusta.

Há tantas coisas que nos preocupam durante a vida. Parece que temos necessidade de fazer as coisas certas. Devemos levar uma garrafa de vinho ou algumas flores para a festa? Visto uns jeans e calço as botas novas ou isso é demasiado informal? Como hei de encontrar uma nova companhia?

Não falamos muito sobre a forma como vamos morrer. Enfrentar a morte é, apesar disso, bastante interessante e desafiante. Tenho escolhas sobre que meditei – algumas acolhi, outras rejeitei. Penso ter encontrado a escolha certa para mim.

Falei sobre isso com amigos e familiares. Não é um tema proibido. Antes pelo contrário.

***

Cada dia que passa perco pedaços de mim e é óbvio que caminho em direção ao ponto onde todos os doentes com demência acabam por chegar: não saber quem sou e necessitada de cuidados a tempo inteiro. Sei, enquanto escrevo estas palavras, que dentro de seis ou nove ou doze meses, eu, Gillian, já não estarei aqui. O que farão com o meu corpo? Ele estará fisicamente vivo mas não haverá ninguém no seu interior.

Fiz o meu trabalho de casa. Estudei as minhas opções:

Ter cuidados que tratem do meu corpo sem mente. Isto implica dificuldades financeiras para os que vêm depois de mim ou envolvê-los numa freima aparentemente interminável de tarefas que poderá perturbar ainda mais as suas recordações de mim.

1. Pedir qualquer tipo de cuidado que o governo possa prestar. (Os serviços vão acolher o meu marido, filhos, netos, nas visitas em que muitas vezes agradecerão aos profissionais quão bem olham pelo meu corpo. Ainda bem, mas não é o que desejo à minha família.)

2. Terminar a minha própria vida tomando os barbitúricos adequados antes que a minha mente totalmente se desvaneça. Eticamente, parece-me a coisa certa a fazer.

Posso viver ou vegetar talvez uns dez anos no hospital a expensas do Canadá, custando qualquer coisa entre 50.000 e 75.000 dólares por ano. Mas isto é só o princípio do erro. Os enfermeiros, que pensam ingressar numa carreira que tinha grande significado, acabam a mudar-me eternamente as fraldas e a registar as mudanças físicas de uma carcaça vazia. É ridículo, supérfluo e injusto.

Os meus familiares, que são todos racionais e também divertidos, não irão visitar-me no hospital, porque sabem que eu não o quero.

***

O mundo está pressionado pelo envelhecimento da população. Estamos a viver mais tempo e a nossa esperança de vida continuam a crescer. Em 2045, a proporção de cidadãos em idade de trabalhar face aos seus dependentes idosos tornar-se-á cada vez mais onerosa em quase todo o mundo. No Canadá e nos EUA, é esperado haver dezasseis trabalhadores por cada dez idosos dependentes. É um desastre social e económico.

É assim mesmo que a maioria das pessoas diga que gostaria de viver 90, 100 anos ou mesmo mais.

Há muitas questões éticas aqui: o prolongamento da vida altera radicalmente a noção que as pessoas têm do que é um ser humano – e não no melhor sentido. Como nós, os mais idosos, são submetidos a múltiplas operações e degradam-se numa cama de hospital, enquanto os nossos netos veem drasticamente esmagadas as suas oportunidades de escolaridade ou de educação física e cultural.

O cerne do problema é aritmético: o Estado Social do após II Guerra Mundial, criado quando os frutos da explosão demográfica ainda estavam na barriga das suas mães, está construído sobre um esquema geracional de tipo pirâmide. Com a expectativa de vida a aumentar e as taxas de natalidade a baixar, a pirâmide populacional está a ficar invertida e em alguns países está a provocar a ruína da economia.

***

Toda a gente mentalmente capaz, por volta dos cinquenta anos de idade, devia fazer um Testamento Vital onde estabelecesse como deseja morrer, as circunstâncias em que não deseja ser reanimado, etc. E acrescentar uma declaração em que diga: “Se estiver doente e frágil, com uma pneumonia ou outra infeção, não tentem restaurar-me a vida com antibióticos. Peço que me deixem partir. Não dou a quaisquer familiares, ou a quaisquer médicos ou psiquiatras, o direito de se oporem a esta decisão.” Os médicos assistentes, clínicos gerais, deveriam ter uma cópia deste documento.

Legalmente, todos deviam ter a obrigação de fazer um testamento que seja guardado eletronicamente, não possa ser apagado e fique disponível automaticamente para qualquer hospital no mundo.

E se uma pessoa se recusar a fazer um testamento? Deveria haver um testamento de recurso que se aplicasse a quem não cumpriu o seu dever cívico. Não tenho todas as respostas, mas acho que estou a levantar questões que precisam de ser levantadas.

Três grandes instituições – a profissão médica, a lei e a Igreja – contestam e contrariam qualquer mudança transformadora. Mesmo assim, todos nós ouvimos falar de alterações em cada uma delas que sugerem uma abordagem empática mais ampla, orientada e informada. Espero que todas essas instituições continuem a transformar-se e que a profissão médica permita, segundo protocolos exigentes e apropriados, a administração de uma dose letal que acabe com o sofrimento de um paciente terminal, de acordo com a sua vontade antecipadamente manifestada.

***

A vida parece um pouco como uma festa onde fui parar. No início, eu estava envergonhada e desajeitada e não conhecia as regras. Tinha medo de fazer coisas erradas. Depois percebi que estava lá para me divertir e não sabia o que fazer. Alguém simpático falou comigo e fez-me rir. Comecei a perceber que realmente tinha de ter as minhas próprias regras e de viver com elas.

Apercebi-me que precisava de saber quando sair e é agora.

Todos os membros da minha família imediata estão em Vancouver: filha, filho, duas netas e quatro netos. Todos sabem que é importante para mim não me tornar uma sobrecarga para eles ou para o Canadá. Debati a minha situação com todos eles. Na nossa família reconhece-se a qualquer adulto o direito de tomar as suas próprias decisões.

Caso alguém seja tentado a pensar que tenho de ter coragem para acabar comigo, quero que saibam que sou uma grande chorona. Tenho muito medo de ficar sozinha no escuro. Assusto-me com qualquer coisa. Não quero morrer sozinha. Se o meu gato estivesse a fraquejar do mesmo modo que eu, gostava de misturar alguns comprimidos para dormir num prato de carne da boa e, quando estiver bem sonolento, levá-lo amorosamente para o jardim e fazer o resto. Quem quer morrer rodeado por estranhos, mesmo sob cuidados competentes e excelentes?

Tive um marido incomparável e filhos e netos que me superaram largamente. Desde os sete anos tenho amigos maravilhosos, que adorei e ainda adoro.

Tudo isto é muito mais difícil para o Jonathan do que devia ser e não queria que ele tivesse de ficar sozinho junto do corpo da sua esposa. A lei canadiana considera crime que qualquer pessoa ajude outra a cometer suicídio, por isso Jonathan de modo algum vai ajudar. Os nossos filhos, Sara e Guy, de bom grado ficarão com o seu pai, mas as leis são o que são e não os vamos pôr em risco.

Hoje, agora, vou contente e agradecida para essa noite boa. Jonathan, corajoso, dedicado, autêntico e amoroso, abraça-me com a sua presença. Não preciso de mais.

É quase meio-dia.

 (*) Gillian Bennett, cujo apelido de solteira era Quentin-Baxter, nasceu em 1930 em Christchurch, Nova Zelândia. Em Canterbury University, namorou com Jonathan Bennett, colega como estudante de Filosofia. Em 1954, Gillian recebeu uma bolsa para estudar em Bona, Alemanha. Jonathan e Gillian casaram em Cambridge, Inglaterra, em 1957. A Nova Zelândia é um país de beleza selvagem e profundidade infinita. Muitas vezes tiverem vontade de lá voltar mas, desde cedo, aceitaram o que as suas carreiras determinaram e o regresso foi sempre adiado. “Like a toi toi arrow shot in the air. Never no more. Never no more.” Nos quarenta anos seguintes, Gillian e Jonathan viveram em Cambridge (Inglaterra), Vancouver (Canadá) e Siracusa (EUA). Em Siracusa, Gillian fez formação como psicanalista e depois exerceu e ensinou terapia de grupo e individual. Os principais mentores de Gillian foram Richard Erskine e Rebecca Trautmann. Em 1996, Gillian e Jonathan, depois de aposentados, foram para Bowen Island, perto da costa da Colúmbia Britânica. Tiveram dois filhos, seis netos e dois bisnetos, felizmente todos bem-sucedidos. Gillian Bennett pôs termo à vida às 11 horas do dia 18 de agosto de 2014.