James Rachels
Capítulo 2 do livro A Companion to Bioethics (páginas
15-23)
Editado por Helga Kuhse e Peter Singer,
Blackwell Publishers. Oxford, 2001.
Blackwell Companions to Philosophy
ver tradução completa AQUI
Este armazém foi criado para guardar e partilhar textos (e contextos) que tenho escrito ou traduzido, quase todos ao longo da “terceira” metade da minha vida, mas também antes. Até aos 35 anos formei-me e cresci, até aos 70 exerci e aprendi, agora deu-me para isto... 😊
James Rachels
Capítulo 2 do livro A Companion to Bioethics (páginas
15-23)
Editado por Helga Kuhse e Peter Singer,
Blackwell Publishers. Oxford, 2001.
Blackwell Companions to Philosophy
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Adeus e felicidades! Gillian Bennett (*)
Tradução do depoimento Good bye & Good Luck!
18 de agosto de 2014 – A minha vida vai acabar hoje por volta de meio-dia. É a
hora. A demência está a tomar conta de mim e estou quase a perder. Estou quase
perdida mesmo com Jonathan, o mais firme e mais luminoso dos homens, ao meu
lado como testemunha amorosa.
Percebi que tenho demência, uma perda progressiva de
memória e de raciocínio, há cerca de três anos. É uma doença furtiva, obstinada
e muito conhecida. Preferia ter uma enfermidade bizarra com um nome muito
sonante, mas o que tenho é inteiramente banal. Acho que esta é uma doença muito
aborrecida e, apesar de a minha família ser tão gentil e bem-educada, estou
ciente de como eles a acham chata também. E é tão pesada para o meu marido,
Jonathan. Acho que só meu querido gato ainda não reparou, mas não tenho certeza
disso.
A demência não dá descanso e não admite discussões. A
investigação diz-nos que é uma “doença silenciosa” que se pode esconder durante
anos ou mesmo décadas antes de seus sintomas se tornarem óbvios. Gradualmente
no início, muito mais rapidamente depois, e eis-me transformada num vegetal. É
difícil lembrar-me se a minha neta chega daqui a três dias ou hoje. “Onde está
X?” (o café / a batedeira / a tecla de apagar no meu teclado / o livro que
estava a ler), estou sempre a perguntar. Tenho constantemente de verificar o
que digo para ver se não faço asneira.
Há um momento, no decurso da demência, em que se não é
mais capaz de tratar dos próprios assuntos. Espero que me possa aperceber da
situação ou consiga pôr termo à minha vida. Vai chegar o momento em que
simplesmente tenho de decidir perante a deterioração da minha saúde física. Não
gosto de hospitais – são locais sujos. Qualquer médico nos dirá que fiquemos
longe deles desde que possamos. Eu não quereria que uma queda, um acidente
vascular cerebral ou uma qualquer complicação imprevista atrapalhasse a minha
decisão de gastar o menos possível ao meu país nos meus anos de declínio.
Compreendam que não estou a desistir de nada por cometer
suicídio. Tudo o que perco é um número indeterminado de anos como vegetal num
ambiente hospitalar, a gastar o dinheiro do país mas sem ter a mínima ideia de
quem eu sou.
Cada um de nós é único ao nascer e ao morrer. Penso o
morrer como uma aventura final com um final previsível e abrupto. Sei quando é
hora de partir e isso não me assusta.
Há tantas coisas que nos preocupam durante a vida. Parece
que temos necessidade de fazer as coisas certas. Devemos levar uma garrafa de
vinho ou algumas flores para a festa? Visto uns jeans e calço as botas novas ou isso é demasiado informal? Como
hei de encontrar uma nova companhia?
Não falamos muito sobre a forma como vamos morrer.
Enfrentar a morte é, apesar disso, bastante interessante e desafiante. Tenho
escolhas sobre que meditei – algumas acolhi, outras rejeitei. Penso ter
encontrado a escolha certa para mim.
Falei sobre isso com amigos e familiares. Não é um tema
proibido. Antes pelo contrário.
***
Cada dia que passa perco pedaços de mim e é óbvio que
caminho em direção ao ponto onde todos os doentes com demência acabam por
chegar: não saber quem sou e necessitada de cuidados a tempo inteiro. Sei,
enquanto escrevo estas palavras, que dentro de seis ou nove ou doze meses, eu,
Gillian, já não estarei aqui. O que farão com o meu corpo? Ele estará
fisicamente vivo mas não haverá ninguém no seu interior.
Fiz o meu trabalho de casa. Estudei as minhas opções:
Ter cuidados que tratem do meu corpo sem mente. Isto
implica dificuldades financeiras para os que vêm depois de mim ou envolvê-los
numa freima aparentemente interminável de tarefas que poderá perturbar ainda
mais as suas recordações de mim.
1. Pedir qualquer tipo de cuidado que o governo possa
prestar. (Os serviços vão acolher o meu marido, filhos, netos, nas visitas em
que muitas vezes agradecerão aos profissionais quão bem olham pelo meu corpo.
Ainda bem, mas não é o que desejo à minha família.)
2. Terminar a minha própria vida tomando os barbitúricos
adequados antes que a minha mente totalmente se desvaneça. Eticamente,
parece-me a coisa certa a fazer.
Posso viver ou vegetar talvez uns dez anos no hospital a
expensas do Canadá, custando qualquer coisa entre 50.000 e 75.000 dólares por
ano. Mas isto é só o princípio do erro. Os enfermeiros, que pensam ingressar
numa carreira que tinha grande significado, acabam a mudar-me eternamente as
fraldas e a registar as mudanças físicas de uma carcaça vazia. É ridículo,
supérfluo e injusto.
Os meus familiares, que são todos racionais e também
divertidos, não irão visitar-me no hospital, porque sabem que eu não o quero.
***
O mundo está pressionado pelo envelhecimento da
população. Estamos a viver mais tempo e a nossa esperança de vida continuam a
crescer. Em 2045, a proporção de cidadãos em idade de trabalhar face aos seus
dependentes idosos tornar-se-á cada vez mais onerosa em quase todo o mundo. No
Canadá e nos EUA, é esperado haver dezasseis trabalhadores por cada dez idosos
dependentes. É um desastre social e económico.
É assim mesmo que a maioria das pessoas diga que gostaria
de viver 90, 100 anos ou mesmo mais.
Há muitas questões éticas aqui: o prolongamento da vida
altera radicalmente a noção que as pessoas têm do que é um ser humano – e não
no melhor sentido. Como nós, os mais idosos, são submetidos a múltiplas
operações e degradam-se numa cama de hospital, enquanto os nossos netos veem
drasticamente esmagadas as suas oportunidades de escolaridade ou de educação
física e cultural.
O cerne do problema é aritmético: o Estado Social do após
II Guerra Mundial, criado quando os frutos da explosão demográfica ainda
estavam na barriga das suas mães, está construído sobre um esquema geracional
de tipo pirâmide. Com a expectativa de vida a aumentar e as taxas de natalidade
a baixar, a pirâmide populacional está a ficar invertida e em alguns países
está a provocar a ruína da economia.
***
Toda a gente mentalmente capaz, por volta dos cinquenta
anos de idade, devia fazer um Testamento Vital onde estabelecesse como deseja
morrer, as circunstâncias em que não deseja ser reanimado, etc. E acrescentar
uma declaração em que diga: “Se estiver doente e frágil, com uma pneumonia ou
outra infeção, não tentem restaurar-me a vida com antibióticos. Peço que me
deixem partir. Não dou a quaisquer familiares, ou a quaisquer médicos ou
psiquiatras, o direito de se oporem a esta decisão.” Os médicos assistentes,
clínicos gerais, deveriam ter uma cópia deste documento.
Legalmente, todos deviam ter a obrigação de fazer um
testamento que seja guardado eletronicamente, não possa ser apagado e fique
disponível automaticamente para qualquer hospital no mundo.
E se uma pessoa se recusar a fazer um testamento? Deveria
haver um testamento de recurso que se aplicasse a quem não cumpriu o seu dever
cívico. Não tenho todas as respostas, mas acho que estou a levantar questões
que precisam de ser levantadas.
Três grandes instituições – a profissão médica, a lei e a
Igreja – contestam e contrariam qualquer mudança transformadora. Mesmo assim,
todos nós ouvimos falar de alterações em cada uma delas que sugerem uma
abordagem empática mais ampla, orientada e informada. Espero que todas essas
instituições continuem a transformar-se e que a profissão médica permita,
segundo protocolos exigentes e apropriados, a administração de uma dose letal
que acabe com o sofrimento de um paciente terminal, de acordo com a sua vontade
antecipadamente manifestada.
***
A vida parece um pouco como uma festa onde fui parar. No
início, eu estava envergonhada e desajeitada e não conhecia as regras. Tinha
medo de fazer coisas erradas. Depois percebi que estava lá para me divertir e
não sabia o que fazer. Alguém simpático falou comigo e fez-me rir. Comecei a
perceber que realmente tinha de ter as minhas próprias regras e de viver com
elas.
Apercebi-me que precisava de saber quando sair e é agora.
Todos os membros da minha família imediata estão em
Vancouver: filha, filho, duas netas e quatro netos. Todos sabem que é
importante para mim não me tornar uma sobrecarga para eles ou para o Canadá.
Debati a minha situação com todos eles. Na nossa família reconhece-se a
qualquer adulto o direito de tomar as suas próprias decisões.
Caso alguém seja tentado a pensar que tenho de ter
coragem para acabar comigo, quero que saibam que sou uma grande chorona. Tenho
muito medo de ficar sozinha no escuro. Assusto-me com qualquer coisa. Não quero
morrer sozinha. Se o meu gato estivesse a fraquejar do mesmo modo que eu,
gostava de misturar alguns comprimidos para dormir num prato de carne da boa e,
quando estiver bem sonolento, levá-lo amorosamente para o jardim e fazer o
resto. Quem quer morrer rodeado por estranhos, mesmo sob cuidados competentes e
excelentes?
Tive um marido incomparável e filhos e netos que me
superaram largamente. Desde os sete anos tenho amigos maravilhosos, que adorei
e ainda adoro.
Tudo isto é muito mais difícil para o Jonathan do que
devia ser e não queria que ele tivesse de ficar sozinho junto do corpo da sua
esposa. A lei canadiana considera crime que qualquer pessoa ajude outra a
cometer suicídio, por isso Jonathan de modo algum vai ajudar. Os nossos filhos,
Sara e Guy, de bom grado ficarão com o seu pai, mas as leis são o que são e não
os vamos pôr em risco.
Hoje, agora, vou contente e agradecida para essa noite
boa. Jonathan, corajoso, dedicado, autêntico e amoroso, abraça-me com a sua
presença. Não preciso de mais.
É quase meio-dia.
(*) Gillian
Bennett, cujo apelido de solteira era Quentin-Baxter, nasceu em 1930 em
Christchurch, Nova Zelândia. Em Canterbury University, namorou com Jonathan
Bennett, colega como estudante de Filosofia. Em 1954, Gillian recebeu uma bolsa
para estudar em Bona, Alemanha. Jonathan e Gillian casaram em Cambridge,
Inglaterra, em 1957. A Nova Zelândia é um país de beleza selvagem e
profundidade infinita. Muitas vezes tiverem vontade de lá voltar mas, desde
cedo, aceitaram o que as suas carreiras determinaram e o regresso foi sempre
adiado. “Like a toi toi arrow
shot in the air. Never no more. Never no more.” Nos quarenta anos seguintes, Gillian e Jonathan viveram
em Cambridge (Inglaterra), Vancouver (Canadá) e Siracusa (EUA). Em Siracusa,
Gillian fez formação como psicanalista e depois exerceu e ensinou terapia de
grupo e individual. Os principais mentores de Gillian foram Richard Erskine e
Rebecca Trautmann. Em 1996, Gillian e Jonathan, depois de aposentados, foram
para Bowen Island, perto da costa da Colúmbia Britânica. Tiveram dois filhos,
seis netos e dois bisnetos, felizmente todos bem-sucedidos. Gillian Bennett pôs
termo à vida às 11 horas do dia 18 de agosto de 2014.