Timothy E. Quill e Bernard Sussman, Hastings Center
A questão de saber se os doentes gravemente
doentes têm direito à ajuda de um médico para acabar com o seu sofrimento,
pondo fim às suas vidas, tem sido debatida desde a antiguidade. O Juramento
Hipocrático sugeriu que isto estava fora das responsabilidades profissionais do
médico, mas mesmo nessa altura houve um desacordo considerável. Na era moderna,
há provas consistentes de uma prática secreta da morte medicamente ajudada (MMA)
nos países ocidentais onde é proibida. A profissão médica e a lei tendem a
olhar para o outro lado, desde que não se torne pública (“Don’t ask, don’t
tell” – “Não pergunte, não diga”). Esta prática secreta foi revelada nos
anos 90 quando Jack Kevorkian ajudou na morte de aproximadamente 150 doentes.
Embora tenha perdido a sua licença profissional no processo (era patologista,
não clínico), não foi processado com sucesso até que praticou eutanásia ativa a
pedido de um doente e foi subsequentemente preso durante mais de oito anos.
Nos Estados Unidos, na maioria
das jurisdições, proíbe-se os médicos de ajudar à morte seja em diplomas legais
específicos, seja pela aplicação judicial de leis gerais. Tem havido tentativas
de alterar a lei através de diversos métodos:
·
Petições legais federais sobre
a constitucionalidade das proibições, sem vencimento, nomeadamente em dois
casos no Supremo Tribunal tratados em conjunto (Washington vs. Glucksberg e Quill vs. Vacco). O Supremo Tribunal dos EUA, embora não tenha
reconhecido qualquer direito constitucional à MMA, sugeriu que este assunto
deveria ser decidido ao nível dos Estados.
·
Referendo estadual – enquanto
vários desafios às proibições da MMA falharam, a Morte com Dignidade foi
decretada no Oregon em 1997 e no Estado de Washington em 2008. Ambas as leis
sobreviveram a uma variedade de recursos legais.
- Ação
legislativa: Vermont (2013), Califórnia (2015), Colorado (2016), o Distrito de
Colúmbia (2017), Havai (2018) e New Jersey (2019) aprovaram leis que legalizam
a MMA através de iniciativas legislativas.
- Há recursos constitucionais estatais a
correr em vários tribunais estaduais, mas nenhum foi bem-sucedido na sua
legalização.
Persiste alguma controvérsia sobre como
designar essa prática. O entendimento comum da palavra suicídio equipara-a a
doença mental e comportamento irracional e a obrigação médica seria, portanto,
prevenir estes atos, se possível. Os doentes prestes a morrer que veem as suas
vidas serem destruídas pela doença tendem, por vezes, a considerar a morte como
a única forma de escapar ao seu sofrimento e, portanto, a vê-la como um meio de
autopreservação – o oposto do suicídio. Os Estados onde foi legalizado
chamam-lhe agora morte ajudada por médico, ajuda médica, ou assistência médica
ao morrer.
O público continua profundamente dividido
sobre a questão de saber se deve permitir legalmente a MMA. Na maioria dos
inquéritos, aproximadamente dois terços da população dos EUA aprovam-no como
uma opção para doentes terminais com sofrimento intratável. Mas quando a
questão da legalização chega a uma votação, os resultados são normalmente mais
próximos de 50/50. Esta divisão reflete as tensões inerentes ao debate. Por um
lado, muitas pessoas conhecem casos de sofrimento grave, mesmo com excelentes
cuidados paliativos, onde a necessidade de alguma fuga previsível é mais
convincente. Por outro lado, teme-se que a MMA possa ser utilizada como um
desvio que evite cuidados paliativos eficazes ou como uma forma de eliminar o
sofrimento de doentes vulneráveis, eliminando quem sofre. Do mesmo modo, a
maioria dos médicos está a favor do acesso legal à MMA, mas apenas uns 30%
estariam dispostos a prestar diretamente essa ajuda, mesmo que legalmente
permitida.
Morte medicamente ajudada na
prática
Os cuidados
paliativos – incluindo a melhor gestão da dor e dos sintomas, o apoio
psicossocial aos doentes e famílias, e assistência nas decisões difíceis –
devem fazer parte do padrão de cuidados para todos as pessoas gravemente
doentes. Muitos estudos demonstraram uma
lacuna significativa entre o potencial dos tratamentos paliativos no alívio do
sofrimento e a prática real. Se alguém considerar a MMA, o primeiro passo deve
ser que os médicos garantam que o doente está a receber o tratamento paliativo
ideal. Mas mesmo com os melhores cuidados paliativos e apoio possíveis, haverá
provavelmente uma pequena percentagem de casos em que os sintomas se tornam
intratáveis, apesar dos esforços mais competentes para ajudar. Além disso, o
sofrimento do doente não pode ser limitado ao domínio físico e deve incluir
dimensões psicológicas, sociais, existenciais e espirituais. A profissão médica
reconhece que esse sofrimento inaceitável existe por vezes quando os médicos
falam com os doentes sobre a paragem dos suportes de vida, mas quando não há
suporte de vida para parar, a profissão médica pode assumir que tanto o doente
como o médico não se esforçaram o suficiente com medidas paliativas padrão.
Quanto mais predomina o sofrimento não-físico, menos consenso existe sobre o
direito do doente a seguramente morrer.
Em circunstâncias de sofrimento intratável, há provas de que alguns
médicos nos EUA por vezes ajudam na morte dos doentes. Isto não é facilmente estudado porque, para
reconhecer a participação, o médico teria de admitir um crime na maioria das
jurisdições. No entanto, vários estudos imperfeitos da prática nos EUA sugerem
que, em estados onde é ilegal, a MMA pode ser responsável por cerca de 1-2% das
mortes.
A prática legítima da
MMA nos EUA está mais bem estudada no Oregon, onde é legal desde 1997 para
doentes terminais com capacidade de decisão que têm um sofrimento inaceitável.
Os dados recolhidos pelo Departamento de Saúde do Oregon mostram que a prática
aumentou ao longo desse tempo de aproximadamente 1 em 1000 mortes para
aproximadamente 1 em 300 mortes. Cerca de 2/3 dos doentes que recebem uma
prescrição potencialmente letal morrem depois de a tomarem, enquanto cerca de
um terço não toma a sua prescrição letal e morre por outras causas. Embora a MMA seja responsável por uma
percentagem relativamente pequena de mortes no Oregon, aproximadamente 1 em
cada 50 doentes fala com os seus médicos sobre a opção e 1 em cada 6 fala com
as suas famílias sobre a possibilidade. Sabemos também que a gestão da dor e a
utilização de hospícios melhoraram no Oregon desde a aprovação da Lei de Morte
com Dignidade, e existe um programa de âmbito estadual para registar as
vontades dos doentes sobre reanimação cardiopulmonar e outras intervenções
médicas (Patients Orders for Life Sustaining Therapy, ou POLST).
Nos Países Baixos, a
MMA e a eutanásia ativa voluntária eram abertamente autorizadas durante mais de
30 anos antes de terem sido legalizadas em 2002. As práticas foram objeto de
vários estudos importantes, que mostraram taxas relativamente estáveis de MMA
(0,2-0,3%) e de eutanásia ativa voluntária (1,8-2,5%), bem como o aumento da
informação pública ao longo do tempo (agora mais de 50%). As conclusões mais
controversas têm sido um número pequeno mas persistente de "atos que terminam
com a vida sem pedidos explícitos" (0,7-0,8%). Tem havido muita discussão sobre estes casos.
Os defensores argumentam que os doentes estavam em fase terminal, que estavam com
um sofrimento intratável, que tinham perdido capacidade de decisão e que os
seus médicos tinham agido adequadamente para acabar com o sofrimento. Os
críticos sugerem que estes casos são provas claras da rampa escorregadia de uma
prática fora de controlo. Os críticos
também têm visto perigos de uma rampa escorregadia na aceitação de diagnósticos
psicossociais vagos (por ex. "cansado de viver") como justificação
para a eutanásia ativa voluntária e MMA.
Nos Países Baixos, existe um preconceito cultural de que a
responsabilidade de conter o sofrimento de um doente individual supera a
obrigação de obedecer à lei nestes casos difíceis ("força maior").
Legalizar a morte
medicamente ajudada
Proponentes e
críticos da MMA têm diferentes razões éticas para defender as suas posições. Os
principais argumentos a favor da legalização são:
A autonomia do doente. Um doente deve ter
o direito de controlar as circunstâncias da sua própria morte e de determinar
quanto sofrimento é demasiado.
Misericórdia. Se a dor e o
sofrimento de um doente não puderem ser suficientemente aliviados com cuidados
paliativos de última geração, então o médico tem a obrigação de fazer tudo o
que estiver ao seu alcance para aliviar esse sofrimento, até ao ponto de
apressar a morte se não houver alternativas realistas aceitáveis para o doente.
Não abandono. A obrigação do
médico para com o seu doente e a sua família de acompanhar o processo de morte
e de ser o mais atencioso possível, prevalece sobre outras obrigações e
restrições nestas circunstâncias preocupantes.
Os principais
argumentos contra permitir o acesso legal ao DAP são:
Matar é um erro. Ajudar
propositadamente um doente a morrer é categoricamente errado em quaisquer
circunstâncias; os cuidados paliativos excelentes não incluem a MMA.
Integridade do médico. Os médicos fazem o
juramento sagrado de nunca prejudicar intencionalmente um doente, e a MMA
violaria as normas profissionais e minaria a confiança entre o médico e o
doente.
Risco de abuso (rampa
escorregadia). Permitir a MMA representa um risco demasiado elevado para os
doentes vulneráveis. As suas vidas poderiam eventualmente acabar contra a sua
vontade ou ainda que havendo abordagens alternativas para aliviar o sofrimento
poderiam ser dispendiosas ou o sofrimento fosse difícil de tratar.
Enquanto a maioria
dos clínicos experientes reconhece que há casos relativamente raros que podem
justificar a MMA, há duas questões empíricas principais sobre o efeito da
legalização. Será que uma abordagem aberta e regulamentada legalmente tornaria
a prática da MMA mais segura, mais previsível e relativamente rara (como parece
ser o caso até agora no Oregon)? Ou será que corroeria os ganhos obtidos nos
cuidados paliativos e hospitalares, tornando o ambiente mais arriscado e
assustador para os nossos doentes mais vulneráveis (como os casos de eutanásia
involuntária e de eutanásia voluntária para uma vaga aflição psicossocial na
Holanda parecem sugerir)?
Glossário da
Morte Medicamente Ajudada
Morte
ajudada por médico: a prática de um médico que proporciona os meios a uma pessoa com
capacidade de decisão para possa terminar a sua própria vida, geralmente com
uma prescrição de barbitúricos com que o doente se suicida; por vezes também
chamada de suicídio ajudado por médico, ajuda médica e morte antecipada por
administração pelo doente)
Eutanásia: matar sem dor ou
permitir a morte de indivíduos que estão doentes ou feridos sem esperança de
recuperação.
Eutanásia
ativa voluntária: apressar a própria morte através do uso de fármacos ou outros meios, com
a ajuda direta de um médico.
Eutanásia
passiva:
apressar a morte, retirando o tratamento que sustenta a vida e deixando a
natureza seguir o seu curso
Eutanásia
involuntária: causar ou apressar a morte de alguém que não tenha pedido ajuda para
morrer, como por exemplo, um doente que perdeu a consciência e é pouco provável
que a recupere ou que carece de capacidade de decisão por outras razões.
Opções de Último
Recurso
Os cuidados paliativos de última geração continuam a
ser o padrão de cuidados para qualquer sofrimento em fim de vida e as opções de
último recurso só devem ser consideradas quando tais tratamentos são
ineficazes. Não estão disponíveis bons serviços de cuidados paliativos em todos
os locais; estão a ser feitos esforços para aumentar a educação e a
proliferação destes serviços por grupos médicos e outros grupos profissionais,
em iniciativas estaduais, sistemas inovadores de cuidados de saúde e por provedores
dos doentes.
Ao considerar casos de sofrimento intratável face a
excelentes cuidados paliativos, quer a MMA seja legal ou não, os clínicos devem
estar plenamente conscientes das opções alternativas de "último
recurso" que podem ser preferíveis e sobre as quais existe um maior
consenso moral. A prescrição de medicamentos para a gestão agressiva da dor e
outros sintomas, mesmo em doses que possam apressar involuntariamente a morte,
tem ampla aceitação ética, legal e profissional. Esta prática pode ser
justificada por razões éticas pela doutrina do duplo efeito, que defende que,
embora seja errado tirar intencionalmente a vida a alguém, pode ser admissível
correr o risco previsível de apressar a morte de alguém, desde que a intenção
seja aliviar o sofrimento.
Outra opção de último recurso com ampla aceitação é
que os doentes parem (ou não comecem) qualquer terapia potencialmente
sustentadora da vida se esta não atingir o seu objetivo, mesmo que o seu
objetivo na recusa de tratamento seja o de escapar ao sofrimento através de uma
morte mais precoce. A decisão dos doentes de parar voluntariamente de comer e
beber para escapar ao sofrimento intolerável é aceite por muitos hospícios e
tem um apoio ético e legal considerável. A justificação ética para estas opções
é que preservam o direito dos doentes à integridade corporal e à
autodeterminação – para dizerem o que querem que aconteça ao seu próprio corpo.
Uma resposta de último recurso para alguns dos casos
mais complexos e difíceis é a de os médicos sedarem um doente potencialmente ao
ponto de inconsciência para permitir que a pessoa escape ao sofrimento físico,
de outro modo intratável, no fim da vida. O apoio jurídico a esta prática
inclui as decisões do Supremo Tribunal de 1997 em Washington v. Glucksberg e
Quill v. Vacco, que reconheceram o direito a uma boa gestão da dor, mesmo que
esta requeira doses que possam apressar a morte. A justificação desta prática
invoca uma combinação da regra do duplo efeito e do direito à integridade
física. Em julho de 2008 a Associação Médica Americana declarou que "é
obrigação ética de um médico oferecer sedação paliativa até à inconsciência
como opção para o alívio de sintomas intratáveis" no final da vida quando
"os sintomas não podem ser diminuídos através de todos os outros meios de
paliação". [NT: ver sobre sedação paliativa a Lei
n.º 31/2018]
Dar aos médicos e doentes um acesso mais aberto e uma
maior consciência das opções de último recurso pode ter vários efeitos
benéficos. Um efeito potencial é uma maior oportunidade para os doentes obterem
segundas opiniões de clínicos qualificados em cuidados paliativos para terem a
certeza de que outras vias menos extremas para abordar o sofrimento
aparentemente intratável foram consideradas. Outro benefício é a garantia às
pessoas gravemente doentes que receiam ter sofrimentos em fim de vida de que
existem algumas vias de fuga que podem ser seguidas de forma aberta e
previsível. Estas outras opções de último recurso podem diminuir o desejo e a
necessidade da MMA. Alguns doentes no Oregon e nos Países Baixos estão a
escolher estas outras alternativas de último recurso, embora tenham acesso a
MMA porque, em algumas circunstâncias, estas abordagens são mais capazes de
responder às suas necessidades particulares e podem ser mais congruentes com os
seus valores pessoais. Finalmente, as alternativas acrescentadas aumentam a
consciência, tanto dos clínicos como da sociedade, da sua obrigação de lidar
com o sofrimento intolerável quando este se lhes depara.
Timothy
E. Quill, MD,
é o diretor fundador do Programa de Cuidados Paliativos no Centro
Médico da Universidade de Rochester.
Bernard
Sussman, MD, é membro do Programa de Cuidados
Paliativos e da Divisão de Humanidades Médicas e Bioética do Centro Médico da
Universidade de Rochester
.