01 outubro 2015

Morte medicamente ajudada

 

Morte medicamente ajudada
Timothy E. Quill e Bernard Sussman, Hastings Center

Tradução espontânea do artigo Medical aid-in-dying 

 Enquadramento

A questão de saber se os doentes gravemente doentes têm direito à ajuda de um médico para acabar com o seu sofrimento, pondo fim às suas vidas, tem sido debatida desde a antiguidade. O Juramento Hipocrático sugeriu que isto estava fora das responsabilidades profissionais do médico, mas mesmo nessa altura houve um desacordo considerável. Na era moderna, há provas consistentes de uma prática secreta da morte medicamente ajudada (MMA) nos países ocidentais onde é proibida. A profissão médica e a lei tendem a olhar para o outro lado, desde que não se torne pública (“Don’t ask, don’t tell” – “Não pergunte, não diga”). Esta prática secreta foi revelada nos anos 90 quando Jack Kevorkian ajudou na morte de aproximadamente 150 doentes. Embora tenha perdido a sua licença profissional no processo (era patologista, não clínico), não foi processado com sucesso até que praticou eutanásia ativa a pedido de um doente e foi subsequentemente preso durante mais de oito anos.

Nos Estados Unidos, na maioria das jurisdições, proíbe-se os médicos de ajudar à morte seja em diplomas legais específicos, seja pela aplicação judicial de leis gerais. Tem havido tentativas de alterar a lei através de diversos métodos:

·         Petições legais federais sobre a constitucionalidade das proibições, sem vencimento, nomeadamente em dois casos no Supremo Tribunal tratados em conjunto (Washington vs. Glucksberg e Quill vs. Vacco). O Supremo Tribunal dos EUA, embora não tenha reconhecido qualquer direito constitucional à MMA, sugeriu que este assunto deveria ser decidido ao nível dos Estados.

·       Referendo estadual – enquanto vários desafios às proibições da MMA falharam, a Morte com Dignidade foi decretada no Oregon em 1997 e no Estado de Washington em 2008. Ambas as leis sobreviveram a uma variedade de recursos legais.

- Ação legislativa: Vermont (2013), Califórnia (2015), Colorado (2016), o Distrito de Colúmbia (2017), Havai (2018) e New Jersey (2019) aprovaram leis que legalizam a MMA através de iniciativas legislativas.

- Há recursos constitucionais estatais a correr em vários tribunais estaduais, mas nenhum foi bem-sucedido na sua legalização.

Persiste alguma controvérsia sobre como designar essa prática. O entendimento comum da palavra suicídio equipara-a a doença mental e comportamento irracional e a obrigação médica seria, portanto, prevenir estes atos, se possível. Os doentes prestes a morrer que veem as suas vidas serem destruídas pela doença tendem, por vezes, a considerar a morte como a única forma de escapar ao seu sofrimento e, portanto, a vê-la como um meio de autopreservação – o oposto do suicídio. Os Estados onde foi legalizado chamam-lhe agora morte ajudada por médico, ajuda médica, ou assistência médica ao morrer.

O público continua profundamente dividido sobre a questão de saber se deve permitir legalmente a MMA. Na maioria dos inquéritos, aproximadamente dois terços da população dos EUA aprovam-no como uma opção para doentes terminais com sofrimento intratável. Mas quando a questão da legalização chega a uma votação, os resultados são normalmente mais próximos de 50/50. Esta divisão reflete as tensões inerentes ao debate. Por um lado, muitas pessoas conhecem casos de sofrimento grave, mesmo com excelentes cuidados paliativos, onde a necessidade de alguma fuga previsível é mais convincente. Por outro lado, teme-se que a MMA possa ser utilizada como um desvio que evite cuidados paliativos eficazes ou como uma forma de eliminar o sofrimento de doentes vulneráveis, eliminando quem sofre. Do mesmo modo, a maioria dos médicos está a favor do acesso legal à MMA, mas apenas uns 30% estariam dispostos a prestar diretamente essa ajuda, mesmo que legalmente permitida.

Morte medicamente ajudada na prática

Os cuidados paliativos – incluindo a melhor gestão da dor e dos sintomas, o apoio psicossocial aos doentes e famílias, e assistência nas decisões difíceis – devem fazer parte do padrão de cuidados para todos as pessoas gravemente doentes.  Muitos estudos demonstraram uma lacuna significativa entre o potencial dos tratamentos paliativos no alívio do sofrimento e a prática real. Se alguém considerar a MMA, o primeiro passo deve ser que os médicos garantam que o doente está a receber o tratamento paliativo ideal. Mas mesmo com os melhores cuidados paliativos e apoio possíveis, haverá provavelmente uma pequena percentagem de casos em que os sintomas se tornam intratáveis, apesar dos esforços mais competentes para ajudar. Além disso, o sofrimento do doente não pode ser limitado ao domínio físico e deve incluir dimensões psicológicas, sociais, existenciais e espirituais. A profissão médica reconhece que esse sofrimento inaceitável existe por vezes quando os médicos falam com os doentes sobre a paragem dos suportes de vida, mas quando não há suporte de vida para parar, a profissão médica pode assumir que tanto o doente como o médico não se esforçaram o suficiente com medidas paliativas padrão. Quanto mais predomina o sofrimento não-físico, menos consenso existe sobre o direito do doente a seguramente morrer.  Em circunstâncias de sofrimento intratável, há provas de que alguns médicos nos EUA por vezes ajudam na morte dos doentes.  Isto não é facilmente estudado porque, para reconhecer a participação, o médico teria de admitir um crime na maioria das jurisdições. No entanto, vários estudos imperfeitos da prática nos EUA sugerem que, em estados onde é ilegal, a MMA pode ser responsável por cerca de 1-2% das mortes.

A prática legítima da MMA nos EUA está mais bem estudada no Oregon, onde é legal desde 1997 para doentes terminais com capacidade de decisão que têm um sofrimento inaceitável. Os dados recolhidos pelo Departamento de Saúde do Oregon mostram que a prática aumentou ao longo desse tempo de aproximadamente 1 em 1000 mortes para aproximadamente 1 em 300 mortes. Cerca de 2/3 dos doentes que recebem uma prescrição potencialmente letal morrem depois de a tomarem, enquanto cerca de um terço não toma a sua prescrição letal e morre por outras causas.  Embora a MMA seja responsável por uma percentagem relativamente pequena de mortes no Oregon, aproximadamente 1 em cada 50 doentes fala com os seus médicos sobre a opção e 1 em cada 6 fala com as suas famílias sobre a possibilidade. Sabemos também que a gestão da dor e a utilização de hospícios melhoraram no Oregon desde a aprovação da Lei de Morte com Dignidade, e existe um programa de âmbito estadual para registar as vontades dos doentes sobre reanimação cardiopulmonar e outras intervenções médicas (Patients Orders for Life Sustaining Therapy, ou POLST).

Nos Países Baixos, a MMA e a eutanásia ativa voluntária eram abertamente autorizadas durante mais de 30 anos antes de terem sido legalizadas em 2002. As práticas foram objeto de vários estudos importantes, que mostraram taxas relativamente estáveis de MMA (0,2-0,3%) e de eutanásia ativa voluntária (1,8-2,5%), bem como o aumento da informação pública ao longo do tempo (agora mais de 50%). As conclusões mais controversas têm sido um número pequeno mas persistente de "atos que terminam com a vida sem pedidos explícitos" (0,7-0,8%).  Tem havido muita discussão sobre estes casos. Os defensores argumentam que os doentes estavam em fase terminal, que estavam com um sofrimento intratável, que tinham perdido capacidade de decisão e que os seus médicos tinham agido adequadamente para acabar com o sofrimento. Os críticos sugerem que estes casos são provas claras da rampa escorregadia de uma prática fora de controlo.  Os críticos também têm visto perigos de uma rampa escorregadia na aceitação de diagnósticos psicossociais vagos (por ex. "cansado de viver") como justificação para a eutanásia ativa voluntária e MMA.  Nos Países Baixos, existe um preconceito cultural de que a responsabilidade de conter o sofrimento de um doente individual supera a obrigação de obedecer à lei nestes casos difíceis ("força maior").

Legalizar a morte medicamente ajudada

Proponentes e críticos da MMA têm diferentes razões éticas para defender as suas posições. Os principais argumentos a favor da legalização são:

A autonomia do doente. Um doente deve ter o direito de controlar as circunstâncias da sua própria morte e de determinar quanto sofrimento é demasiado.

Misericórdia. Se a dor e o sofrimento de um doente não puderem ser suficientemente aliviados com cuidados paliativos de última geração, então o médico tem a obrigação de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para aliviar esse sofrimento, até ao ponto de apressar a morte se não houver alternativas realistas aceitáveis para o doente.

Não abandono. A obrigação do médico para com o seu doente e a sua família de acompanhar o processo de morte e de ser o mais atencioso possível, prevalece sobre outras obrigações e restrições nestas circunstâncias preocupantes.

Os principais argumentos contra permitir o acesso legal ao DAP são:

Matar é um erro. Ajudar propositadamente um doente a morrer é categoricamente errado em quaisquer circunstâncias; os cuidados paliativos excelentes não incluem a MMA.

Integridade do médico. Os médicos fazem o juramento sagrado de nunca prejudicar intencionalmente um doente, e a MMA violaria as normas profissionais e minaria a confiança entre o médico e o doente.

Risco de abuso (rampa escorregadia). Permitir a MMA representa um risco demasiado elevado para os doentes vulneráveis. As suas vidas poderiam eventualmente acabar contra a sua vontade ou ainda que havendo abordagens alternativas para aliviar o sofrimento poderiam ser dispendiosas ou o sofrimento fosse difícil de tratar.

Enquanto a maioria dos clínicos experientes reconhece que há casos relativamente raros que podem justificar a MMA, há duas questões empíricas principais sobre o efeito da legalização. Será que uma abordagem aberta e regulamentada legalmente tornaria a prática da MMA mais segura, mais previsível e relativamente rara (como parece ser o caso até agora no Oregon)? Ou será que corroeria os ganhos obtidos nos cuidados paliativos e hospitalares, tornando o ambiente mais arriscado e assustador para os nossos doentes mais vulneráveis (como os casos de eutanásia involuntária e de eutanásia voluntária para uma vaga aflição psicossocial na Holanda parecem sugerir)?

Glossário da Morte Medicamente Ajudada

Morte ajudada por médico: a prática de um médico que proporciona os meios a uma pessoa com capacidade de decisão para possa terminar a sua própria vida, geralmente com uma prescrição de barbitúricos com que o doente se suicida; por vezes também chamada de suicídio ajudado por médico, ajuda médica e morte antecipada por administração pelo doente)

Eutanásia: matar sem dor ou permitir a morte de indivíduos que estão doentes ou feridos sem esperança de recuperação.

Eutanásia ativa voluntária: apressar a própria morte através do uso de fármacos ou outros meios, com a ajuda direta de um médico.

Eutanásia passiva: apressar a morte, retirando o tratamento que sustenta a vida e deixando a natureza seguir o seu curso

Eutanásia involuntária: causar ou apressar a morte de alguém que não tenha pedido ajuda para morrer, como por exemplo, um doente que perdeu a consciência e é pouco provável que a recupere ou que carece de capacidade de decisão por outras razões.

Opções de Último Recurso

Os cuidados paliativos de última geração continuam a ser o padrão de cuidados para qualquer sofrimento em fim de vida e as opções de último recurso só devem ser consideradas quando tais tratamentos são ineficazes. Não estão disponíveis bons serviços de cuidados paliativos em todos os locais; estão a ser feitos esforços para aumentar a educação e a proliferação destes serviços por grupos médicos e outros grupos profissionais, em iniciativas estaduais, sistemas inovadores de cuidados de saúde e por provedores dos doentes.

Ao considerar casos de sofrimento intratável face a excelentes cuidados paliativos, quer a MMA seja legal ou não, os clínicos devem estar plenamente conscientes das opções alternativas de "último recurso" que podem ser preferíveis e sobre as quais existe um maior consenso moral. A prescrição de medicamentos para a gestão agressiva da dor e outros sintomas, mesmo em doses que possam apressar involuntariamente a morte, tem ampla aceitação ética, legal e profissional. Esta prática pode ser justificada por razões éticas pela doutrina do duplo efeito, que defende que, embora seja errado tirar intencionalmente a vida a alguém, pode ser admissível correr o risco previsível de apressar a morte de alguém, desde que a intenção seja aliviar o sofrimento.

Outra opção de último recurso com ampla aceitação é que os doentes parem (ou não comecem) qualquer terapia potencialmente sustentadora da vida se esta não atingir o seu objetivo, mesmo que o seu objetivo na recusa de tratamento seja o de escapar ao sofrimento através de uma morte mais precoce. A decisão dos doentes de parar voluntariamente de comer e beber para escapar ao sofrimento intolerável é aceite por muitos hospícios e tem um apoio ético e legal considerável. A justificação ética para estas opções é que preservam o direito dos doentes à integridade corporal e à autodeterminação – para dizerem o que querem que aconteça ao seu próprio corpo.

Uma resposta de último recurso para alguns dos casos mais complexos e difíceis é a de os médicos sedarem um doente potencialmente ao ponto de inconsciência para permitir que a pessoa escape ao sofrimento físico, de outro modo intratável, no fim da vida. O apoio jurídico a esta prática inclui as decisões do Supremo Tribunal de 1997 em Washington v. Glucksberg e Quill v. Vacco, que reconheceram o direito a uma boa gestão da dor, mesmo que esta requeira doses que possam apressar a morte. A justificação desta prática invoca uma combinação da regra do duplo efeito e do direito à integridade física. Em julho de 2008 a Associação Médica Americana declarou que "é obrigação ética de um médico oferecer sedação paliativa até à inconsciência como opção para o alívio de sintomas intratáveis" no final da vida quando "os sintomas não podem ser diminuídos através de todos os outros meios de paliação". [NT: ver sobre sedação paliativa a Lei n.º 31/2018]

Dar aos médicos e doentes um acesso mais aberto e uma maior consciência das opções de último recurso pode ter vários efeitos benéficos. Um efeito potencial é uma maior oportunidade para os doentes obterem segundas opiniões de clínicos qualificados em cuidados paliativos para terem a certeza de que outras vias menos extremas para abordar o sofrimento aparentemente intratável foram consideradas. Outro benefício é a garantia às pessoas gravemente doentes que receiam ter sofrimentos em fim de vida de que existem algumas vias de fuga que podem ser seguidas de forma aberta e previsível. Estas outras opções de último recurso podem diminuir o desejo e a necessidade da MMA. Alguns doentes no Oregon e nos Países Baixos estão a escolher estas outras alternativas de último recurso, embora tenham acesso a MMA porque, em algumas circunstâncias, estas abordagens são mais capazes de responder às suas necessidades particulares e podem ser mais congruentes com os seus valores pessoais. Finalmente, as alternativas acrescentadas aumentam a consciência, tanto dos clínicos como da sociedade, da sua obrigação de lidar com o sofrimento intolerável quando este se lhes depara.


Timothy E. Quill, MD, é o diretor fundador do Programa de Cuidados Paliativos no Centro Médico da Universidade de  Rochester.

Bernard Sussman, MD, é membro do Programa de Cuidados Paliativos e da Divisão de Humanidades Médicas e Bioética do Centro Médico da Universidade de Rochester

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