O exemplo da Consulta de Ética
Judith Andre / University of North Carolina Press / 2002
Tradução espontânea de um extrato do livro Bioethics as Practice acedido AQUI
(…)
Muitas comissões de ética hospitalares disponibilizam
hoje o serviço de Consulta de Ética – e a escolha da palavra “serviço” é
deliberada. As “comissões de ética hospitalares” não são corpos disciplinares.
Em vez disso, os seus objetivos são ajudar os hospitais a compreender e cumprir
padrões éticos atualizados. O serviço da Consulta de Ética destina-se a tratar
de incertezas ou desacordos em casos especiais. Quem faz consultas participa
naqueles objetivos; na verdade, todos falamos uns com os outros, escrevemos uns
aos outros, assistimos às mesmas conferências, e assim por diante. Este
consenso foi recentemente articulado por um grupo de trabalho da Sociedade
Americana de Bioética e Humanidades (ASBH), a maior organização profissional da
área. As suas orientações incluem uma secção intitulada “Natureza e finalidades
da Consulta de Ética”. Procuro usar uma formulação diferente, abaixo descrita,
a qual ajudei a escrever, por coincidência, pela mesma altura, num grupo de
trabalho do Hospital Sparrow, em Lansing, Michigan, e mais tarde foi publicada
no Journal
of Clinical Ethics6. As semelhanças entre versões nacionais e locais
demonstram um consenso sobre o tema.
Finalidade
1. “Oferecer
uma solução ética para o caso concreto.” Este primeiro objetivo diz respeito
às perguntas imediatas, aquelas que motivaram a consulta: No caso da D. Bactri,
alcançar uma solução ética significou encorajar o médico a respeitar a sua
recusa. Avançar para este tipo de solução exige análise moral, para a qual os
filósofos estão vocacionados, mas também muito daquilo que Haavi Morreim chama “trabalho
de detetive”, para o que nós não estamos treinados. “Trabalho de detetive”
significa descobrir o que realmente se está a passar. Neste exemplo, um
psiquiatra sénior dissera que a senhora estava incapaz para tomar as suas
decisões. Como se viu depois, ela estava demasiado sonolenta quando o
psiquiatra a observou. Ou seja, não se pronunciou sobre as suas capacidades
quando ela estava desperta, as quais se verificou depois serem normais. Um
detetive precisa conhecer o consenso nacional sobre estes temas e o estado da
arte em termos legais. Nem o consenso nem a lei são decisivos, mas uma das
nossas responsabilidades oficiais é disponibilizar ambos.
Em geral, o objetivo é menos teórico do que parece.
Quando o nosso grupo de trabalho esclareceu o que, na prática, o seu
significado, deu as seguintes orientações:
-
Confirme se o doente pode falar por si.
- Se o
doente estiver capaz disso, fale com ele.
- Incite
o doente ou o seu representante a informar-se completamente sobre as diferentes
possibilidades e sobre as prováveis consequências de cada uma.
- Ajude
o doente e os familiares a classificar a importância relativa das implicações
práticas e éticas das suas escolhas.
-
Procure um padrão das opções de vida do doente.
-
Descubra se o doente escolheu um procurador de cuidados de saúde formal.
Finalidade
2. “Criar
condições para uma comunicação respeitosa e aceitável entre as partes
envolvidas”. Este segundo objetivo reconhece que decisões
subsequentes podem ter de ser adiadas. Os seres humanos são agentes morais,
responsáveis por decidir, depois de pensar, as suas ações segundo os seus
princípios. Também encarnam várias necessidades emocionais e limitações. Além
disso, os casos ocorrem como sendo parte de relacionamentos dinâmicos e não
como acontecimentos isolados. Por todas essas razões, uma consulta bem-sucedida
ajudará quem for capaz de se ajustar ao desenrolar das histórias. Quando
conhecemos Catherine Bactri tentámos olhar para o futuro. A sua mãe
provavelmente tinha uma pneumonia de aspiração – será que quereria que fosse
tratada com antibióticos? Contudo, não podíamos antecipar todas as
possibilidades. Idealmente deveríamos tratar de algumas das tensões entre o
médico, a doente e a família, de modo que pudessem, mais tarde, lidar melhor
com as decisões a tomar. Não tenho a certeza de o termos conseguido. E nada
havia na minha formação que me ajudasse.
Finalidade
3. “Ajudar
as pessoas implicadas a aprender a superar incertezas e discordâncias éticas
por si mesmas”.
Aqui temos de olhar para lá do caso concreto, antecipar
situações que envolvam o mesmo tipo de assuntos. Este objetivo explora o meu
treino em filosofia, pois exige que eu elabore uma argumentação clara para as
recomendações. No entanto, é também verdade que muitas pessoas sem treino em
filosofia o fazem e bem. Por outro lado, algumas das perguntas que precisam ser
respondidas nada têm a ver com filosofia. (Nomeadamente: qual a melhor maneira
de formar os profissionais de saúde envolvidos? Podem estar ávidos de teoria ou
isso pouco lhes interessar; podem querer pensar com profundidade no tema ou
simplesmente obter algo que os proteja legalmente).
Finalidade
4. “Ajudar
a instituição a reconhecer os padrões éticos que necessitam de atenção”. Tais
padrões podem ser individuais (um médico que nunca se encontrou com a família),
de âmbito local (uma unidade de cuidados intensivos onde aos doentes nunca é
permitida a recusa de tratamentos) ou de âmbito hospitalar (uma política
institucional obscura sobre “Decisões de Não Reanimar”). Atingir este objetivo
requer um bom discernimento prático, assim como uma consciência das origens do
problema (psicologia individual, uma gestão de risco intrusiva, treino
inadequado do pessoal).
Não é somente nas Consultas de Ética que a Bioética exige
competências fora do âmbito da filosofia. Não se pode trabalhar bem em Bioética
sem se saber bem como funciona o mundo, quer isso signifique saber como se
expressa o genoma, conhecer as realidades financeiras das companhias
farmacêuticas ou perceber o prognóstico de recém-nascidos com baixo peso.
(Muitas vezes parece suficiente conhecer estas coisas pelo menos
superficialmente, uma questão a que voltarei no capítulo 10, dedicado ao
trabalho interdisciplinar.) Outro exemplo é o da necessidade de compreender e
saber lidar com o assunto que se quer regular quando da formulação de códigos
de conduta, regulamentos e políticas institucionais.
(…)