Stéphane Courtois
Tradução parcial do original sito em Le
consultant en éthique médicale : quel statut? quel rôle ?, Université du Québec à Trois-Rivières
(…)
Quais
são, de facto, as tarefas mais vezes citadas pelos consultores de ética médica
quando questionados sobre qual é o papel da consulta de ética? Aponto aqui as
principais caraterísticas geralmente mencionadas de forma desordenada e sem me
preocupar ainda com questões normativas:
1. O
consultor de ética médica tem um papel de árbitro a desempenhar em conflitos e
disputas que possam surgir, quer entre partes interessadas da equipe médica,
quer entre esta e o paciente.
2. O
consultor de ética médica tem a desempenhar o papel de “ativador” de discussões
de conteúdo ético (seminários, reuniões de discussão ética em unidades de
cuidados, etc.).
3. O
consultor de ética médica é um “articulador” que induz os membros da equipa
clínica (ou da comissão de ética) a esclarecerem a natureza de suas
preocupações sobre um caso clínico e expressarem as suas opiniões, evitando que
um problema recorrente volte a acontecer.
4. O
consultor de ética médica é também um analista: esmiúça conceitos éticos
subjacentes às preocupações expressas em 3, clarifica valores, normas morais e
legais, etc.
5. É
também o que se poderia chamar um “advogado da moralidade”: tem de encontrar a
solução mais imparcial possível quando há um conflito de interesses ou valores,
seja entre os membros da equipa médica sobre o que fazer numa determinada
situação, seja entre eles e o hospital ou entre eles e o paciente (ou seu representante),
etc.
6. O
consultor de ética é um promotor de “aprendizagem ativa”: pode confrontar os
médicos com uma visão diferente das suas, levando-os a reconsiderar a sua
interpretação de um caso clínico.
7. O
consultor de ética é um conselheiro, tanto para a tomada de decisões clínicas
como na redação de políticas de ética do hospital, no desenvolvimento de
protocolos, diretrizes, etc.
8. O
consultor de ética pode dar apoio emocional, tanto a profissionais como a
pacientes em situações críticas.
9. O
consultor de ética age muitas vezes como guia espiritual de doentes, sobretudo
se tem formação em teologia.
(…)
Segundo
ele, um “código de ética para os consultores de ética” devia preencher os
seguintes cinco objetivos principais:
1.
Permitiria identificar os padrões mínimos de conduta ética destinados a
consultores e proporcionar critérios claros e precisos para distinguir entre
comportamento correto e incorreto. Como mencionei anteriormente, Freedman
acredita que mesmo o especialista em ética clínica pode mentir, enganar,
iludir, etc. Não é nem mais nem menos propenso à negligência do que qualquer
outra categoria profissional.
2. Um
código de ética seria um guia para a resolução de dilemas éticos. Mais uma vez,
até mesmo os consultores de ética são, segundo Freedman, expostos a tais
dilemas: mesmo o pensador mais astuto pode cometer erros de julgamento,
experienciar conflitos de valor ou interesse, etc., de modo que as suas
recomendações não são infalíveis.
3. Um
código de ética poderá ser um instrumento de educação profissional: a ética
clínica guia os consultores em situações morais difíceis, fora dos percursos
académicos próprios de teólogos ou filósofos, e um código pode ser usado para
consultores em fase de aprendizagem.
4. Um
código de ética alimenta a cultura profissional e reflete-a. Poderia ser a
personificação do “ethos” da prática da consulta de ética para todos aqueles
que aspiram a prestar este serviço.
5. Um
código de ética, finalmente, poderia ser usado para especificar o que,
exatamente, se espera de um bom consultor de ética, um consultor de “competente”,
para distinguir as práticas cuja responsabilidade lhes deve sem imputada das
que o não devem ser. Tal coisa está longe de ser algo de supérfluo, dada a
incerteza em torno desta prática.
(…)
3. Conclusão Como eu mencionei, parece-me que o
consultor de ética mais “competente” é aquele que consegue, através da
educação, tornar as pessoas que recorrem à consulta de ética autónomas no plano
moral, capacitá-las a tomar suas próprias decisões de forma independente. Por
outras palavras, o padrão último pelo qual devemos medir os resultados, bons ou
maus, da consulta de ética é a autonomia do consulente, a sua capacidade de se emancipar da própria
consulta de ética. O objetivo da consulta de ética deve ser o de assegurar que este
serviço não é mais necessário. Esta é a razão fundamental pela qual a
profissionalização do trabalho em consulta de ética me parece ser irrelevante.
Isto não é simplesmente uma dificuldade passageira, mas um óbice de princípio. Reconhecer uma tal profissão seria,
em minha opinião - e eu estou aqui de acordo com G. Scofield, A. L. Caplan ou
F. Baylis - confundir as componentes técnicas e as componentes de avaliação do conhecimento
humano, quando apenas as primeiras podem ser profissionalizadas, e não as
segundas.
Para
voltar à importante distinção feita pelo filósofo alemão Jürgen Habermas, a perícia ética é um saber-fazer que expressa uma “competência
humana universal” – todos são capazes de discernimento moral. Já a perícia
profissional corresponde a um saber-fazer que expressa uma “competência
especial” ou seja, é compartilhada apenas por determinados grupos de indivíduos
em detrimento de outros. Dito de outro modo: enquanto não há perícia
profissional fora da experiência profissional, ou seja, fora do conhecimento
adquirido através da formação académica própria de um campo profissional (por
exemplo, medicina), há uma competência moral fora da formação ética académica,
ou mesmo fora da experiência adquirida pelo consultor de ética junto à
cabeceira do paciente. A “perícia ética” não pode, portanto, ser reduzida e
limitada ao conhecimento académico teórico, ou à experiência prática adquirida
em situações muito específicas, como situações clínicas. Em suma, para usar
desta vez a linguagem de Caplan, não há e não pode haver “especialistas” em
questões morais, pessoas com um corpo de conhecimentos esotéricos em ética a
que acedem de modo exclusivo, de modo profissional. Existe, pelo contrário, a “perícia
moral”, que não está reservada apenas aos especialistas em ética – é algo que é
de todos.
Certamente,
alguns dirão que há graus de competência ética. Os seguidores da Kohlberg, por
exemplo, provavelmente diriam que a real “experiência ética” é a capacidade de
raciocinar moralmente aos mais altos níveis do desenvolvimento moral
(pós-convencional). Nem todos terão, assim, esta perícia. Mas um pouco de
reflexão mostra que essa teoria confirma, mais do que desmente, o meu ponto: a “perícia
ética” assim descrita está aberta a todos, é a expressão mais avançada de um
saber-fazer próprio de todos. Não é o resultado de uma formação académica
especial, mas o resultado de um processo de aprendizagem natural na nossa
capacidade de resolver problemas no plano moral.
Do
exposto, deve ser concluído, na minha opinião, o seguinte: se há diferença
alguma entre a competência moral dos chamados especialistas em ética e a das
pessoas comuns, a resposta apropriada não é ampliar esta lacuna através da
criação de uma ordem profissional, mas antes tentar preenchê-la educando os
outros a pensar por si mesmos e tornar irrelevante, pelo menos no longo prazo,
a necessidade de consultores de ética. Esta é a objeção central que importa
valorizar, parece-me, contra qualquer projeto de profissionalizar essa atividade
de serviço que é, e deve continuar a ser, a consulta de ética. A presença cada
vez mais importante de consultores de ética nos nossos hospitais (ou outros
sectores profissionais), oriundos de diversos centros de consulta de ética,
oferecendo serviços profissionais, bem como a existência de associações de
ética que reivindicam um estatuto profissional, tudo isso é, obviamente, uma
situação de facto que não podemos contestar e com que devemos, ao que parece,
conviver cada vez mais nos próximos anos. A única conclusão plausível parece
ser tomar as medidas adequadas para regular essas atividades e combater os
efeitos potencialmente prejudiciais tanto para os potenciais consulentes como
para os próprios consultores. Daí as recomendações que fiz em favor de um
código de ética.
Em face
do exposto, sou forçado a admitir que a consulta de ética, pelo menos na sua
forma atual, partilha, pelo menos, uma coisa em comum com a atividade
profissional: a necessidade de ser regida por regras que protegem profissionais
e clientes. Mas aqui a analogia cessa. Para mim, a consulta de ética será, quando
muito, uma “quase profissão”. Enquanto a atividade profissional tem por base a
assimetria existente entre o profissional e o cliente, em que o primeiro tem
uma experiência que o segundo não tem, esta assimetria desaparece ao fazer-se
da autonomia do cliente, assim como da sua capacidade para se libertar
permanentemente do serviço do especialista em ética, o critério de excelência
da consulta de ética, como sugiro. Nesta perspetiva, um código de ética
concebido para eticistas teria, a meu ver, que cumprir um papel adicional em relação
aos códigos de conduta comuns: teria de definir os objetivos da consulta de
ética de modo que ficasse claro que este trabalho tem de obedecer a padrões diferentes dos que regem outras profissões,
padrões a que eu chamo cívicos e educacionais (como o fazem as regras de ética
que eu elenquei anteriormente, por exemplo a regras números 3 e 5). Ajudar os
outros a juntar-se à maioria, no sentido em que o entendia Kant, para se
tornarem cidadãos adultos responsáveis pelas suas ações e decisões, não é
servir os interesses de uma profissão, é servir a democracia, é servir os
interesses públicos, é trabalhar para colmatar o fosso entre os cidadãos
adultos, moralmente autónomos, e outros – os que, com toda a probabilidade, ainda
não o são. Um código de ética para os especialistas em ética teria, finalmente,
a missão de circunscrever os limites
da
consulta de ética, os limites que são os da própria profissionalização. Penso que esses limites mereceriam
ser explicados numa regra de conduta, por exemplo a seguinte (regra n.º 6): “A
consulta de ética deve continuar a ser uma atividade de serviço desempenhada de
forma voluntária por pessoas que pertencem a ordens profissionais que já
contenham em si finalidades de educação moral e cívica de outros profissionais ou
dos seus clientes, e não deve levar à criação de um órgão profissional
independente”. Penso, também, por essa razão, que um código de ética para
especialistas em ética deve ser concebido de modo que não “perpetue” o trabalho
da consulta. Pode-se presumir que tal código irá desaparecer um dia juntamente com
a necessidade de haver consultas de ética.