O que devem
fazer os médicos se pais profundamente religiosos quiserem manter uma criança
viva a qualquer custo, mesmo que a criança esteja em sofrimento e não haja
qualquer hipótese de sobreviver? Num polémico artigo no
Journal of Medical Ethics, dois
pediatras e o capelão do Hospital de Great Ormond Street, em Londres, apelam a
uma mudança na lei.
Os
autores temem que crenças profundamente enraizadas estejam a levar mais pais – especialmente
cristãos fundamentalistas da África subsaariana – a insistir em tratamentos
agressivos que não são, em última análise, no melhor interesse da criança
doente. De 203 decisões de fim de vida, em três anos, 17 casais recusaram
firmemente um acordo para suspender tratamentos agressivos mas, no final de
contas, inúteis. Destes, 11 invocaram motivos religiosos. Os autores referem o
islamismo, o judaísmo e o cristianismo e que, muitas vezes, os casais se
recusaram a ouvir os conselhos das suas próprias autoridades religiosas. “Todas
essas famílias explicitaram expectativas de uma ‘cura milagrosa’ para o seu
filho, e, como tal, todos consideravam a informação científica médica como
sendo de utilidade limitada.”
Como
devem estes conflitos ser resolvidos? É aqui que as coisas começam a ficar
interessantes. A proposta dos autores é que a posição padrão legal deve ser a
interrupção do tratamento quando as negociações entre pais e médicos fracassam
face à esperança de uma cura milagrosa. O modelo que propõem é a solução usada
para os filhos de Testemunhas de Jeová que precisam de uma transfusão de
sangue: uma ordem judicial que permite a transfusão, por ser no melhor
interesse da criança. Continuar o tratamento pode até ser uma violação do
artigo três da Convenção Europeia de Direitos Humanos que proíbe a tortura.
Contudo,
como reconhecem, a analogia não é exata porque o “melhor interesse” do filho de
Testemunhas de Jeová é a vida, enquanto o “melhor interesse” do filho de
fundamentalistas teimosos é a morte. É um pouco complicado pelo que procuram
outros argumentos. Citando Richard Dawkins, argumentam que uma criança pequena
não tem idade suficiente para ter crenças religiosas. Em seguida, sublinham
que, ainda que a criança sobreviva, ela vai ter, de qualquer modo, uma baixa
qualidade de vida. Finalmente, sugerem que manter o apoio à criança é um
desperdício de recursos escassos.
As
respostas no Journal of Medical Ethics são fascinantes. O seu editor,
Julian Savulescu, um utilitarista de Oxford, argumenta que o artigo erra
completamente o alvo. É realmente uma questão de alocação de recursos escassos.
“Embora eu possa querer um tratamento com uma probabilidade de cura de 1 num
milhão, a sociedade tem o direito de dizer que tal tratamento não pode ser
disponibilizado, num sistema de saúde público, ainda que haja uma pequena
probabilidade de cura. Tal probabilidade é de facto muito pequena.”
Outro
especialista em Ética de Oxford, Mark Sheehan, diz que a religião faz desviar a
atenção do assunto central no debate. “Considerando a história cultural e
política do Islão e de África ao longo dos últimos 100 anos, não é de estranhar
que os pais que não vejam uma recuperação não tenham confiança numa mistura de
medicina ocidental, representantes religiosos ocidentais e a visão laica dos
médicos.”
Steve
Clarke, também de Oxford, analisa algumas questões controversas. O melhor
interesse da criança: “Haverá maior interesse de uma criança que está a morrer
do que ser milagrosamente salva?” Milagres: “Ninguém provou que os milagres são
impossíveis; de facto, isso seria muito difícil já que há importantes
argumentos académicos que concluem que os milagres são possíveis.”
Assim,
sugeriu que, em vez de declarar guerra contra as crenças religiosas dos pais, o
melhor seria fazê-los participar usando os seus próprios termos. Deus pode já
ter decidido e esperar mais tempo não vai mudar isso; Deus podia curar
milagrosamente a criança após a cessação do tratamento; ou Deus podia mesmo
devolver a vida à criança.
Finalmente, Charles Foster, um advogado cuja especialidade é a suspensão de tratamentos de suporte de vida, sugere que os autores são ignorantes legais que não compreendem o conceito de “melhor interesse” ou o sentido atual da lei. Segundo escreveu, “parecem pensar que, porque nos estamos tornando uma ‘sociedade laica’, cada vez mais há uma espécie de mandato democrático que nos condena a impor valores seculares a todos”. “Os autores levantam a questão: ‘As crenças religiosas permitem contrariar uma abordagem laica de suspender e não iniciar tratamentos em crianças?’ É uma pergunta curiosa. A ortodoxia legal e ética é que as crenças, religiosas ou laicas, não devem contrariar os melhores interesses da criança.”